24/11/2014,
[*] Fausto Giudice, Basta! Journal de Marche Zapatiste
Multilangue
Traduzido
pelo pessoal da Vila Vudu
Resenha de: Wissam Alhaj, Nicolas Dot-Pouillard e Eugénie Rébillard, De la théologie à la libération –
Histoire du Jihad islamique palestinien [Da teologia à libertação – História
da Jihad islâmica palestina], out., 2014, Paris: La Découverte, 214 p. 18 €.
No mundo polarizado no qual nos
debatemos, o pensamento-único dominante é binário: “ou estão conosco ou estão
contra nós”. E no caso da situação na qual se vê presa aquela pobre Palestina,
esse pensamento binário é posto a rodar com a artilharia pesada, em sentido
literal e em sentido figurado. Também se tornou habitual apresentar os atores
palestinos sempre reduzidos à dupla de irmãos-inimigos Fatah-Hamás, os
primeiros já tornados apresentáveis e cooptáveis no conjunto dos partidos “de
Estado”, porque pressupostos laicos, democráticos e pacíficos; e os segundos
deixados encerrados no próprio gueto de Gaza, regularmente atacados por
tempestades de ferro, fogo e sangue, e quase hermeticamente lá trancados há
oito anos, além de estarem incluídos nas listas – construídas pelas potências
do “mundo livre” já lançadas em novas cruzadas – de organizações terroristas.
Ao mesmo
tempo, até esse pensamento binário já está sendo posto em causa por Netanyahu e
seus acólitos, que tentam convencer seus aliados USA-norte-americanos e
europeus de que “tudo isso” – o conjunto dos partidos e movimentos palestinos –
não passa de único e o mesmo bando de exterminadores de judeus.
Se se
procura nos buscadores de informação por internet mais conhecidos, o que se
encontra é o seguinte:
Palavra-chave |
Ocorrência
nos “buscadores” internet
|
|
Em caracteres latinos
|
Em árabe
|
|
Hamás
|
6.330.000
|
16.000.000
|
Fatah
|
42.600.000
|
32.400.000
|
OLP
|
23.300.000
|
1.120.000
|
Jihad islâmica palestina
|
180.000
|
1.600.000
|
Como se
vê, nada de fotos: a organização da Jihad islâmica palestina é praticamente uma
fantasma midiático. É preciso pois receber com entusiasmo o trabalho de
pesquisa feito por três autores que pertencem, dois deles, à nova geração de
“islamólogos/orientalistas” franceses; e o terceiro, à diáspora palestina.
Esses autores reúnem as três condições mínimas exigidas para uma abordagem
racional/científica de um movimento político árabe: conhecem a língua árabe;
conhecem pessoalmente os protagonistas; e têm cultura geral suficientemente
ampla para poderem realocar em contexto histórico, político, cultural, social,
militar e religioso os atos e discursos dos atores estudados.
Para todos
e todas que nunca se cansam de meter os movimentos de resistência “islamistas”
no grande caldeirão dos “barbudos doidos (a zombar) de Deus”, bons para a geena, o livro
de Wissam Alhaj, Nicolas Dot-Pouillard e Eugénie Rébillard, De la théologie à la libération – Histoire du Jihad islamique
palestinien [Da
teologia à libertação – História da Jihad islâmica palestina], out.,
2014, Paris: La Découverte,
214 p. 18 €), permitirá um mergulho num mundo e numa história desconhecidos de
99% dos ocidentais, inclusive os pró-Palestina, com doses equilibradas de
empatia e de distanciamento crítico. É livro cuja leitura se tem de recomendar,
sobretudo aos militantes franceses de esquerda, partidários incondicionais do
Fatah, aos quais a simples existência do Hamas e do Hezbollah provoca engulhos, quando
não lhes provoca urticárias e comichões: verão que as coisas não são tão
simples, e que o Fatah é muito mais “islamista” do que lhes agrada ver.
Messali Hadj |
Como foi o
caso da Frente de Libertação Nacional da Argélia e, antes dela, da Estrela
Africana/MTLD de Messali Hadj, que conseguiu a proeza de ser, simultaneamente,
dirigente próximo da Internacional Comunista e de ver-se indicado Califa por um
congresso de Islâmico no Cairo, nos anos 1930. Como foi também o caso de
Bourguiba, Néo-Destour,
apresentado em geral como exemplo máximo de laicismo, mas do qual já se
esqueceu completamente que, naqueles mesmos anos 1930, ele distribuía panfletos
pelas mesquitas cujos imãs pregavam que a participação numa ou noutra greve,
numa ou outra manifestação de rua era dever de todos os muçulmanos.
De volta
ao caso dos palestinos, impõe-se uma primeira constatação: todos, seja qual for
a ideologia que declarem e ostentem, são palestinos, antes de serem
“islamistas”, “esquerdistas”, “nacionalistas árabes” ou outros, e todos, inclusive
os cristãos, vivem imersos em cultura ambiente muçulmana. Esse patriotismo
“estreito”, comum, de fato, a todos os povos árabes, que foi interiorizado nas
fronteiras nacionais herdadas pelos colonialismos e protetorados é, é claro,
particularmente exacerbado entre aqueles cuja terra natal esteja ocupada há já
quase um século por colonos judeus ou que se dizem judeus.
Corolário
desse patriotismo é o anti-imperialismo, que passou por várias fases ao longo
dos eventos do mundo e da região.
Ao
analisarem muito corretamente o projeto sionista e sua implantação como
emanação das potências coloniais – Grã-Bretanha e França – que passaram, na
sequência, o bastão aos EUA, os palestinos voltam-se “naturalmente” na direção
dos que, naquele mundo, pareciam combater aquelas potências: a URSS, a China, o
Vietnã e Cuba.
Yasser Arafat |
O
entusiasmo pela URSS já esfriara um pouco, quando os soviéticos votaram, na
ONU, a favor do plano de partilha da Palestina do dia 29/11/1947; as simpatias
e afinidades ideológicas encaminham-se progressivamente na direção de Pequim, Hanói
e Havana. Mas dois eventos mudariam tudo: a revolução iraniana de janeiro de
1979; e a “entrada do Exército Vermelho no Afeganistão, dia 25/12/1979, que
viria a resolver à tiros de kalachnikov
o conflito entre os comunistas afegãos no poder. Aquele mesmo ano de 1979 viu
eclodir também uma guerra entre a China, já dirigida pelo “pragmático” herdeiro
de Mao, Deng Xiao Ping, homem ao qual pouco importava a cor do gato, desde que
apanhasse o camundongo, o Vietnã, ocupado na guerra para eliminar os Khmers vermelhos maoístas do Camboja.
Teerã, então, se converteu, repentinamente, em nova Meca dos
revolucionários palestinos – com Yasser Arafat incluído. [1]
O impacto
da revolução iraniana é enorme no mundo árabe-muçulmano, principalmente nos
grupos e movimentos político-militares palestinos e libaneses e, mais
amplamente sobre a juventude, em particular sobre os estudantes.
Um grupo
de estudantes palestinos, originários quase todos de Gaza, bolsistas no Egito,
constituem um primeiro núcleo do que virá a ser o Movimento da Jihad islâmica palestina, nascida oficialmente em
outubro de 1987, pela primeira ação militar desse grupo contra um acantonamento
israelense no quarteirão do Shujaayia em Gaza, prelúcio da 1ª. Intifada, que
eclodirá dia 9/12/1987. O mesmo quarteirão no qual, em julho de 2014, os
soldados israelenses conheceriam sua primeira grande derrota tática da Operação
“Franja de Proteção”.
Anwar el-Sadat em 1981 |
Entre a
“divina surpresa” de 1979, e 1987, dois eventos foram decisivos para
recentralizar o combate dos palestinos sobre o território da pátria ocupada: o
assassinato do presidente Sadat em 1981, que desencadeia uma caça aos
islamistas, sem poupar os palestinos, apesar de nada terem tido a ver com o
assassinato; e a ocupação do Líbano, por Israel, em 1982, que obrigou a evacuar
combatentes e funcionários palestinos para a Tunísia, Argélia, Iraque ou Iêmen.
Os
militantes da Jihad islâmica concentram sua atenção sobre Gaza
e prosseguem no trabalho discreto de construir uma vanguarda revolucionária,
tentando amalgamar a própria bagagem teórica heteróclita, reagrupando
progressivamente militantes vindos da esquerda marxistizante e/ou nacionalista
árabe, ao mesmo tempo que preservavam relações complexas ao mesmo tempo com os
Irmãos muçulmanos , que haviam frequentado no Egito, e frações islâmicas do
Fatah. Os Irmãos da Fraternidade Muçulmana de Gaza só se decidiriam a passar à
luta política – e portanto militar – no momento da 1ª. Intifada, quando criaram
oficialmente o Hamas, beneficiando-se da rede pacientemente tecida nas
mesquitas e nos serviços de atendimento caritativo aos mais necessitados.
27 anos
mais tarde, a Jihad islâmica é o terceiro movimento
político-militar palestino por ordem de importância. Teve papel importante na
resistência contra a mais recente ofensiva de Israel contra Gaza e continua
como “um estranho soldado” na paisagem palestina, com exército “de sombras”
estimado em 5.000 combatentes, dirigidos por comandantes que, todos eles, leram
e discutiram de Antonio Gramsci e Ibn Khaldoun a Mao e Che Guevara, passando
por Khomeini e Ali Shariati, o tradutor de Franz Fanon para o persa.
Atualmente, com relações complexas de “fraternidade conflitual” com o Fatah e
com o Hamas, esse movimento, que se pode qualificar como “islamo-nacionalista
revolucionário” goza de grande prestígio entre os palestinos de todos os
grupos, primeiro lugar porque por muito tempo cumpriu as funções de mediação e
conciliação entre os dois grandes irmãos inimigos.
Olivier Roy |
Para saber
mais, só falta ler essa obra da qual Olivier Roy diz, em prefácio, que:
(...)
traz contribuição extremamente original:
a análise das trajetórias militantes dos fundadores e dos quadros do movimento.
Um maoísta ateu pode tornar-se islamista em nome da fusão com as massas; um
islamista da Umma pode
inscrever sua luta no quadro de um nacionalismo palestino, e acabar por
rejeitar o internacionalismo islamista porque vê aí um pretexto para ignorar as
lutas nacionais e, e voltar a refugiar-se em um universo panislamista. Os
caminhos se cruzam, os militantes evoluem. Com certeza muitos jogaram ao lixo o
bebê Marx com a água soviética do banho.
A influência profunda do marxismo em
muitos dos fundadores do Movimento da Jihad Islâmica
Palestina (MJIP) – e do Hezbollah – explica tanto a originalidade quanto a
eficácia na ação, desse(s) movimento(s).
[Wissam
Alhaj, Nicolas Dot-Pouillard e Eugénie Rébillard, De la théologie à la libération –
Histoire du Jihad islamique palestinien [Da
teologia à libertação – História da Jihad islâmica palestina], out., 2014,
Paris: La Découverte,
214 p. 18 €, p. 9].
Café-debate: Apresentação do livro, com Nicolas
Dot-Pouillard e Eugénie Rébillard, que coordenaram a edição, está marcada para
2ª-feira, 24/11/2014, às 19h, pela Associação UniT (“Union pour la Tunisie”), no Myanis (132
boulevard de Ménilmontant, 75020 Paris).
Nota de rodapé
Aiatolá Khomeini |
[1] Khomeyni é nosso Imã, nosso chefe, o dirigente de todos os mujahidins, seremos dois povos em um só,
duas revoluções numa só e cada fedai,
cada mujahid, cada revolucionário
iraniano será o embaixador da Palestina no Irã. Nós libertamos o Irã, nós
libertaremos a Palestina. Continuaremos nossos esforços até o momento em que
tenhamos derrotado o imperialismo e o sionismo; o combate feito contra o Xá
pelos iranianos é idêntico ao combate dos palestinos contra Israel”. (Yasser
ARAFAT, jornal Libération,
20/2/1979, citado por Zahra BANISADR, “L’Iran
et la question palestinienne” [O Irã e a questão palestina], em Revue d’études palestiniennes, n.
24, Éditions de Minuit, 1987, p. 5, retomado por Nicolas Dot-Pouillard, “De Pékin à Téhéran, en regardant vers Jérusalem
: la singulière conversion à l’islamisme des “Maos du Fatah’” [De Pequim a
Teerã, com olhos postos em Jerusalém, a singular conversão ao Islamismo, dos “Mãos”
do Fatah] (Religioscope,
2008).
De 1972 a 1982, um encontro
singular entre jovens militantes maoístas libaneses e quadros palestinos do
Fatah levará pouco a pouco a uma experiência simultaneamente intelectual e
militante – a Brigada de Estudantes do Fatah – que resultará, aos poucos em
nada menos que a passagem definitiva, para o Islã político, na continuidade da Revolução
Iraniana de 1979.
A morte de um Khalil Akkaoui,
em Trípoli, simbolizará as esperanças e os fracassos dos membros de uma geração
política hoje dispersa. Adeptos da “linha de massa” maoísta, partidos feitos da
implantação popular nos quarteirões pobres de Beirute e nos campos de
refugiados palestinos, o grupo que seria conhecido como “os Maos do Fatah”
permite compreender melhor, retrospectivamente, os traços de continuidade, de
ontem até hoje, entre o Islã político e o terceiro-mundismo marxista ou
nacionalista: mística do povo em luta, eventualismo revolucionário messiânico,
teologia da libertação em filigrana, centralidade da questão nacional e
identitária compõem uma verdadeira “ideologia implícita” comum, em forma “de
afinidades eletivas” [Nota acrescida pelos tradutores,
para (algum) esclarecimento dos leitores da tradução ao português do Brasil].
____________________________
[*] Fausto Giudice
(nascido em Roma-Itália em 1949) é jornalista, escritor, tradutor e editor
italiano que escreve habitualmente em francês, italiano, espanhol, alemão,
sueco e inglês. Vive hoje na Tunísia onde passou toda sua infância e adolescência.
É membro fundador do Coletivo de Tradutores (2005) Tlaxcala, um grupo de
tradutores de grande diversidade linguística e cyber-jornalismo. É, também, co-fundador
da Alliance Zapatiste de Libération
Sociale e em 2003 do Collectif Guantánamo.
Já em 2012 fundou em Túnis a editora Éditions workshop19 – uma oficina Tunisiana de Criação
Publicações:
- Têtes de Turc en France, enquêtes sur l'apartheid à la française, com Michel Roux, Yann Moulier-Boutang et Denis Ruellan, prefácio de Günter Wallraff, Ed. La Découverte, 1989.
- Arabicides, une chronique française (1970-1991), Ed. La Découverte, 1992.
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