22/11/2014,
Sergey Lavrov na 22ª. Assembleia do
Conselho de Política Externa e Defesa, Moscou,
Traduzido
pelo pessoal da Vila Vudu
COMENTÁRIO do Saker em: The Vineyard
of the Saker, 26/11/2014:
(...)
No discurso
[adiante] de Lavrov, negritei as partes que considero mais importantes. Quero
acrescentar ainda, o seguinte:
1)
Lavrov é considerado muito “moderado” e a linguagem dele sempre é estritamente
diplomática. Portanto, ao lerem essas declarações, imaginem o que “a rua” russa
e outros ministros estão pensando.
2)
Lavrov não faz segredo do que pensa dos EUA e dos planos dos EUA para o futuro
do planeta. Ao lerem as palavras de Lavrov, tentem relembrar o que sente e
pensa um neoconservador norte-americano, e vocês imediatamente verão por que as
elites norte-americanas simultaneamente odeiam e temem a Rússia.
3)
Finalmente Lavrov admite abertamente que Rússia e China firmaram aliança
estratégica de longo prazo (provando que erraram todos os que previam que a
China apunhalaria a Rússia pelas costas). Essa aliança estratégica, diria eu, é
o desenvolvimento estratégico mais importante dos últimos dez anos.
4)
Para concluir, observem o claro desprezo que Lavrov manifesta por um “ocidente”
pseudo-cristão, que não se levanta na defesa de cristãos perseguidos, nega suas
próprias raízes e não mostra qualquer respeito sequer pelas suas próprias
tradições. Amigos,
O que todos temos aí, ante nossos
olhos, não é apenas “mais uma” declaração sobre Ucrânia ou sobre sanções: é a
plena admissão, por Lavrov, de um “choque de civilizações” fundamental, mas não
entre um “ocidente cristão” e um Islã fantasiado ou imaginado, mas entre a
Rússia cristã e o ocidente pós-cristão.
A Rússia nunca quis esse
conflito. A Rússia fez tudo que pôde para impedir que esse conflito se
configurasse. Mas o ocidente não deixou qualquer escolha à Rússia. A Rússia
então está aí declarando que lutará até vencer.
The Saker
COMENTÁRIO de
Pepe Escobar: Facebook (25/11/2014):
Minha interpretação é ligeiramente diferente
da do Saker. Para mim, o mais absolutamente crucial é como Lavrov salienta que
a aliança estratégica de longo prazo Rússia-China é realmente A COISA, hoje, no
mundo. Escrevo há meses sobre isso.
E, sim: para grande
perplexidade-medo-confusão manifestados pelo Empire of Chaos, [essa parceria Rússia-China] é o mais
importante divisor de águas na história estratégica da década.
Faaaaaaaaaaaala,
Lavrov! (*Documento IMPERDÍVEL*) Ministro Sergey Lavrov, das Relações
Exteriores da Rússia
Observações do
Ministro de Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov:
“Carecemos de uma nova versão de interdependência. Uma nova ordem mundial
tem necessariamente de ser policêntrica e refletir a diversidade de culturas e
civilizações no mundo contemporâneo. A Rússia é hoje o país pioneiro na
promoção da democracia, da justiça, do estado de direito e do respeito à lei”.
Sergey Lavrov, MRE da Federação da Rússia |
Sinto-me
feliz por falar nessa Assembleia Anual do Conselho de Política Exterior e
Defesa [ab. em ru., SVOP]. É sempre
grande prazer para mim, encontrar as pessoas e sentir essa potência
intelectual, que permite que o Conselho, seus líderes e representantes,
analisem os desenvolvimentos globais e respondam a eles. As análises produzidas
por esse conselho sempre são livres de qualquer traço de histeria, os analistas
oferecem sempre argumentos sólidos e bem fundamentados, com um passo de
distanciamento, porque quem se deixa prender no calor e na névoa dos eventos
não consegue manter, sem desvios, nem a própria perspectiva. Somos
inevitavelmente influenciados pelos eventos, o que torna as observações, análises,
discurso e sugestões deste conselho cada vez mais valiosos para nós.
Pelo que
sei, a Assembleia esse ano trabalhará sobre as possibilidades de acelerar o crescimento
doméstico na Rússia. Não há dúvida de que esses esforços concertados, por toda
a nossa sociedade, para fazer acontecer desenvolvimento amplo, econômico,
social e espiritual, são pré-requisito para tornar sustentável o futuro da
Rússia.
Isso posto,
em função das minhas obrigações profissionais, tenho de focar questões de
política externa, também relevantes para a agenda dessa Assembleia, porque
nesse mundo globalizado, interconectado, é impossível isolar o desenvolvimento
interno e o mundo externo.
O
presidente Vladimir Putin da Rússia ofereceu análise detalhada dos
desenvolvimentos internacionais durante o encontro do Clube Valdai em Sochi e em várias entrevistas durante sua
recente viagem à Ásia. Por essa razão, não me preocuparei com observações
conceituais, porque o que importa já está dito. Mas gostaria de partilhar com
vocês algumas considerações baseadas na experiência que acumulamos em nossos
esforços diários de política externa. Não é meu objetivo apresentar quadro
completo, nem perfeitamente claro, porque no momento que atravessamos tudo são
só previsões e, assim, provisórias, não importa de onde venham. Além do mais, é
trabalho dos diplomatas influenciar os eventos, não apenas contemplá-los.
Começo,
naturalmente, pela Ucrânia. Muito
antes de o país ser jogado na atual crise, já havia um sentimento no ar de que
as relações da Rússia com a União Europeia (UE) e com o Ocidente aproximavam-se
do momento da verdade. Era claro que não podíamos continuar a empurrar para o
fundo do forno questões prementes nas nossas relações, e que era absolutamente
necessário decidir: ou se fazia parceria genuína, ou, como se diz, se “quebravam
os pratos”. Como todos sabem, a Rússia optou pela primeira alternativa;
nossos parceiros ocidentais, infelizmente, decidiram-se, consciente ou
inconscientemente, pela segunda. De fato, expuseram-se completamente na Ucrânia
e apoiaram extremistas – o que implica que atropelaram até os próprios
princípios deles, de mudança democrática de regime.
O que se
viu, nisso tudo, foi a tentativa de provocar a Rússia, como em brincadeira de
crianças, ver quem piscaria primeiro. Como dizem os provocadores, esperavam
forçar a Rússia a “afinar” (e não encontro melhor palavra no vocabulário deles): esperavam que engoliríamos
calados a humilhação dos russos e falantes de russo que vivem na Ucrânia.
Leslie Gelb, que
vocês conhecem bem, escreveu que o Acordo de Associação da Ucrânia na União
Europeia nada tinha a ver com convidar a Ucrânia a unir-se à EU; que só tinha a
ver com, no curto prazo, conseguir impedir que o país se unisse à União
Aduaneira. Isso foi o que disse alguém imparcial e de visão não deformada.
Quando afinal decidiram escalar na Ucrânia, esqueceram várias coisas, inclusive
de considerar como tais movimentos seriam vistos na Rússia. Esqueceram o
conselho, por exemplo, de Otto von Bismarck, que sabia que subestimar os
milhões de russos do grande povo russo seria o maior dos erros políticos.
O
presidente Vladimir Putin disse, há alguns dias, que ninguém na história jamais
conseguiu subjugar o povo russo e submetê-lo a algum poder externo. Não é
opinião: é fato. Pois o que se está vendo agora é um atentado com esse tipo de
objetivo, tentativa de aplacar a sede de expandir o espaço geopolítico
controlado pelo ocidente, movida pelo medo de perder as últimas migalhas do
que, do outro lado do Atlântico, eles mesmos se convenceram de que teria sido
vitória deles na Guerra Fria.
De
novidade, na situação de hoje, é que tudo se encaixou imediatamente, o quadro
tornou-se logo claro, e o “plano” por trás dos movimentos do ocidente foi logo
exposto, apesar da pretensa efetividade com que teriam construído uma segurança
comum, um lar europeu comum. Citando o verso de Bulat Okudzhava, “O passado está ficando cada vez
mais claro, mais claro...”. A clareza vai-se tornando mais tangível.
Hoje,
nossa tarefa não é só ver com clareza o passado (por mais que tenha de ser
feito), mas, mais importante, nossa tarefa é pensar sobre o futuro.
Conversas
sobre o “isolamento” da Rússia não merecem discussão séria. Absolutamente nem
preciso citar essas coisas nesse plenário. Claro, podem prejudicar nossa
economia e, sim, estão prejudicando, mas ao custo de prejudicarem-se também
eles mesmos, os que tomam essas medidas e, também importante, estão destruindo
o sistema de relações econômicas internacionais, os princípios nos quais se
baseia. Antes, quando se aplicavam
sanções (e eu servia na missão russa na ONU naquela época), nossos parceiros
ocidentais, quando discutiam a República Popular Democrática da Coreia [Coreia
do Norte], o Irã e outros estados, diziam que era necessário formular as
restrições de modo tal que se mantivessem dentro de limites humanitários e não
causassem dano no plano social, e à economia; e o alvo buscado era
exclusivamente a elite. Hoje, é exatamente o contrário: os líderes ocidentais
não se cansam de repetir publicamente que as sanções com certeza destruirão a
economia e desencadearão “protestos de rua”.
Assim se
conclui que, no que tenha a ver com a abordagem conceitual para o uso de
medidas coercitivas, o ocidente
demonstra inequivocamente que não busca mudar só a política russa (o que é, em
si, fantasia), mas aspira a mudar o regime russo – e praticamente não há uma
única autoridade ocidental que negue isso.
O
presidente Vladimir Putin, falando recentemente com
jornalistas, disse que os líderes ocidentais têm hoje horizonte de
planificação muito limitado. E, claro, é sempre perigoso, quando decisões em
questões chaves do desenvolvimento do mundo e do futuro da humanidade tenham de
ser tomadas em atenção a ciclos eleitorais muito curtos: nos EUA, os ciclos
eleitorais são de apenas dois anos; a cada dois anos, eles têm de pensar ou
fazer alguma coisa (qualquer coisa) que interesse, principalmente, a reeleição
de quem esteja no poder. Esse é o lado mais negativo do processo democrático,
mas ninguém pode pagar o preço de fingir que esse problema não existiria.
Nós simplesmente
não podemos aceitar a “lógica” dos que nos dizem para nos calar, nos resignar,
relaxar e dar alguma coisa por imutável... “porque” todos teríamos de padecer “porque”
há eleições de dois em dois anos nos EUA. Não faz sentido. Não está certo. Não
nos resignamos, porque o que vemos em jogo é valioso demais, as apostas estão
altas demais na luta contra o terror; a ameaça de proliferação de armas de
destruição em massa é grave demais; e muitos conflitos sangrentos têm impacto
negativo, que vai muito além dos contornos dos correspondentes estados e
regiões. O desejo de fazer alguma coisa para obter ganhos unilaterais, ou para
pintar autorretrato que agrade aos eleitores às vésperas de mais essa ou aquela
eleição, leva ao caos e à confusão nas relações internacionais.
Ouvimos
diariamente repetido o mantra de que Washington “é consciente” de sua “excepcionalidade”,
do “dever” de carregar às costas o “peso” de liderar o resto do mundo. Rudyard
Kipling fez versos sobre “a carga às costas do homem branco”. Espero que não
seja essa a força que move os EUA e os norte-americanos.
O mundo
hoje não é branco ou negro, mas multicor e heterogêneo. Nesse mundo, nenhuma
liderança se manterá como tal, se se apoiar apenas no autoconvencimento da
própria “excepcionalidade” e de um dever, que aquele “líder” teria recebido de
Deus. Nada disso. Hoje, só há liderança se houver capacidade, competência e talento
para construir consensos.
Seria
maravilhoso se os parceiros norte-americanos aplicassem para construir
consensos o poder que eles têm. A Rússia estaria ativamente empenhada em
ajudá-los.
Mas até
aqui, os recursos administrativos dos EUA continuam a funcionar só no quadro da
OTAN, e mesmo aí com substanciais reservas; e não têm alcance algum além da
Aliança do Atlântico Norte. Uma prova disso são os resultados das tentativas,
pelos EUA, para fazer a comunidade mundial seguir sua orientação, no que tenha
a ver com princípios e com sanções anti-Rússia. Já falei mais de uma vez sobre
isso, e temos muitas provas do fato
de que embaixadores e enviados dos EUA por todo o mundo procuram encontros no
mais alto nível, ocasião em que se põem a insistir que os correspondentes
países seriam obrigados a punir a Rússia, somando-se aos EUA, ou haverá
consequências. Está sendo feito em todos os países, inclusive nos aliados
mais íntimos da Rússia (o que fala muito eloquentemente sobre a baixa qualidade
dos analistas com os quais Washington conta).
Uma ampla
maioria dos estados com os quais temos diálogo continuado sem qualquer
restrição e nenhum “isolamento”, como os senhores veem, valorizam o papel
independente que a Rússia tem na arena internacional. Não porque gostem quando
alguém desafia os EUA, mas porque se dão conta de que a ordem mundial nada
ganhará em estabilidade, se as pessoas tiverem de ser “autorizadas” ou não, a
manifestar a própria opinião. (De fato, a maioria, sim, diz exatamente o que
pensa disso tudo, mas só privadamente, não em público, de medo do “castigo” que
venha de Washington).
Muitos
analistas racionais compreendem que há distância, que sempre aumenta, entre as
ambições globais do governo dos EUA e o real potencial do país. O mundo está mudando e, como sempre
aconteceu na história, em algum ponto a influência e o poder de alguém sempre
alcançam o pico e, então, alguém começa a desenvolver-se ainda mais depressa e
mais efetivamente. É preciso estudar a história e partir dos fatos. As sete
economias em desenvolvimentos lideradas pelos chamados países BRICS já têm PIB
maior que o do G7 ocidental. É indispensável partir dos fatos, não de alguma
fantasia que alguém alimente da própria grandeur.
Virou moda
“declarar” que a Rússia estaria fazendo uma espécie de “guerra híbrida” na Crimeia
e na Ucrânia.
É termo
interessante, mas se aplica sobretudo aos EUA e à estratégia de guerra deles –
fazem lá guerra verdadeiramente híbrida, que visa menos a derrotar militarmente
o inimigo, e mais a “mudar os regimes” nos estados que sigam alguma política
que não agrade a Washington. Estão usando pressão financeira e econômica,
ataques informacionais, servindo-se de outros países na periferia do estado
atacado, como “procuradores locais” (traidores, Nrc); e
também, claro, fazem pressão informacional e ideológica, servindo-se, para
isso, de organizações não governamentais financiadas de fora dos países
atacados (Greenpeace, Human Rights Watch,
International Amnesty, RSF, MSF, NED, e dezenas de outras, Nrc). É
processo híbrido. E é também o que se conhece como “guerra”.
Seria
interessante discutir o conceito de guerra híbrida, para verificar quem faz guerra híbrida e se é algo além de ficção dos “homenzinhos verdes” de Washington. Tudo leva a crer que a
caixa de ferramentas [de guerra] de nossos parceiros norte-americanos, que se servem
dela cada vez com mais frequência, é bem maior.
No esforço
para fixar a preeminência deles, num momento em que novos centros econômicos,
financeiros e políticos estão emergindo, os norte-americanos só fazem provocar
a contrarreação, comprovando a 3ª lei de Newton e contribuindo para a
emergência de estruturas, mecanismos e movimentos que buscam alternativas para
as receitas norte-americanas para resolver problemas graves.
Não falo
aqui de antiamericanismo, muito menos de nos pormos a formar “coalizões” contra
os EUA. Falo só do desejo natural de número crescente de países de proteger
seus interesses vitais e de conseguir fazer o que entendam que seja o mais
certo, não o que lhes chegue do outro lado do Atlântico.
Ninguém se porá
a jogar jogos anti-EUA só para despeitar os EUA. Enfrentamos hoje tentativas e
fatos consumados de uso extraterritorial da lei norte-americana; sequestro de
nossos cidadãos, apesar dos tratados vigentes com Washington. E essas questões
têm de ser resolvidas mediante a aplicação da lei, ouvidos os corpos judiciais.
Segundo
sua própria doutrina de segurança nacional, os EUA teriam o direito de usar a
força em qualquer ponto do mundo, a qualquer momento, sem necessidade de
esperar a aprovação pelo Conselho de Segurança da ONU.
Formou-se
uma coalizão contra o Estado Islâmico, sem que o Conselho de Segurança fosse
ouvido. Perguntei ao Secretário de Estado John Kerry por que não consultara o
Conselho de Segurança da ONU. Ele disse-me que, se houvesse a consulta, teriam
de, de algum modo, declarar o status [de presidente] do Presidente da Síria,
Bashar al-Assad. Ora. É claro que teriam de declará-lo, porque a Síria é estado
soberano e ainda é membro da ONU (a Síria não perdeu o status de membro da
ONU). O secretário Kerry discordou. Disse que não, porque os EUA estão
combatendo o terrorismo, e o regime do presidente al-Assad seria o principal
fator que estaria galvanizando terroristas de todo o mundo e atuando como ímã
que os atraía para a região, num esforço para derrubar o regime sírio.
Para mim,
essa lógica é perversa. Falando sobre precedentes (o sistema jurídico dos EUA
leva em alta conta os precedentes), vale a pena lembrar o desarmamento químico
na Síria, no qual o regime do presidente Assad foi parceiro perfeitamente
legítimo dos EUA, da Rússia, da Organização para Proibição de Armas Químicas da
ONU (ing. OPCW-UM) e de outros.
Os EUA mantêm conversações também até com os Talibã. Onde os EUA entrevejam
possibilidade de arrancar algum proveito de alguma coisa, eles agem
pragmaticamente. Não entendi ainda muito bem como foi que aconteceu que, dessa
vez, o movimento ideologicamente motivado assumiu o comando e os EUA resolveram
acreditar que Assad não poderia ser parceiro. O mais provável é que as coisas consistam,
aí, de uma ação contra o Estado Islâmico, que pavimentaria o caminho para
tentarem derrubar o presidente Assad, disfarçados como agentes de operação
contraterrorismo.
Francis
Fukuyama escreveu recentemente Political
Order and Political Decay [Ordem
política e decadência política (2011), que no Brasil recebeu título “higienizado”
de Origens
da Ordem Política (?!)], no qual
diz que a eficiência da administração pública nos EUA está em declínio, e as
tradições da governança democrática estão sendo gradualmente substituídas por
métodos da relação de servidão feudal. É parte da discussão sobre alguém que,
tendo telhado de vidro, vive de jogar pedras no telhado dos outros.
Tudo isso
acontece entre os desafios e os problemas sempre crescentes do mundo moderno.
Vemos uma continuada disputa de “cabo-de-guerra” na Ucrânia. Os problemas
fervem na fronteira sul da União Europeia. Não acredito que os problemas do
Oriente Médio e do Norte da África sumirão sem mais nem menos, por eles mesmos.
A União Europeia formou nova Comissão. Emergiram novos atores estrangeiros, que
encararão disputa duríssima sobre para onde mandar seus recursos básicos: para
a continuação de imundos esquemas na Ucrânia, Moldávia, etc., dentro da
Parceria Oriental (como prega uma agressiva minoria dentro da UE), ou darão
ouvidos aos países do sul da Europa e focar-se-ão no que está acontecendo no
outro lado do Mediterrâneo?
Essa é
questão importantíssima para a União Europeia. Até aqui, só se veem os que não
se deixam guiar por problemas objetivos, mas por um desejo de passar a mão o
mais rapidamente possível em qualquer recurso que surja à superfície da terra.
É deplorável. Exportar revoluções – democráticas, comunistas, qualquer revolução
– nunca traz bem algum.
Por toda a
região do Oriente Médio/Norte da África [ing.
Middle East/North Africa, MENA],
as estruturas públicas e civilizacionais estão realmente desmoronando. A
energia destrutiva liberada naquele processo pode contaminar estados
localizados bem longe dali. Terroristas (inclusive o Estado Islâmico) já
reclamam status nacional. Além disso, estão prontos a
começar a criar corpos quase-governamentais para fazerem trabalho
administrativo.
Contra
esse pano de fundo, minorias, inclusive cristãs, estão sendo banidas. Na
Europa, essas questões são desqualificadas como “politicamente incorretas”. A
Europa fica com vergonha quando nós os convidamos a fazer algo juntos, contra o
banimento de cristãos, no âmbito da Organização de Segurança e Cooperação da
Europa (OTSC). E querem saber por que nos focamos especificamente nos cristãos.
Por quê? O que há neles de tão especial?
A OTSC
organizou séries de eventos dedicados a registrar e manter vivas as lembranças
do Holocausto de judeus. Há poucos anos, a OTSC começou a realizar eventos contra a
islamofobia. Em dezembro próximo, apresentaremos oficialmente nossa avaliação
dos processos que estão levando, hoje, à cristianofobia.
Esse ano
(2014), as reuniões em nível ministerial da OTSC acontecerão dias 4-5 de
dezembro, em Basel, ocasião em que a Rússia apresentará essa proposta. A
maioria dos membros da União Europeia foge desse tópico, porque têm vergonha de
falar dele. Exatamente como tiveram vergonha, também de incluir no projeto de
Constituição Europeia que Valery Giscard d'Estaing estava redigindo, uma frase
na qual a Europa reconhecia suas raízes cristãs.
Se você não
lembra nem respeita as próprias raízes e tradições, como saberá respeitar as
tradições e os valores de outros povos? É o que ensina e demonstra a lógica
mais simples e direta. Comparando o que se vê acontecer hoje no Oriente Médio e
um período de guerras religiosas na Europa, um cientista social israelense, Uri
Avneri, disse que o atual torvelinho dificilmente terá fim com o que o ocidente
tem em mente quando diz “reformas democráticas”.
O conflito
árabe-israelense foi abandonado, como se estivesse morto. É difícil atuar em
vários barcos ao mesmo tempo. Os EUA tentam, mas não funciona. Em 2013,
demoraram nove meses para fazer alguma coisa, com o conflito israelense-palestino
em plena explosão. Não discutirei as razões, que são bem conhecidas, mas o fato
é que fracassaram também ali. Agora, querem mais tempo para tentar obter algum
progresso antes do final de 2014, para que os palestinos não vão à ONU nem
subscrevam o Estatuto da Corte Criminal Internacional, etc..
E
repentinamente, transpirou que haveria avanços nas negociações sobre o Irã. O
Departamento de Estado dos EUA descartou a Palestina, para focar-se no Irã.
O Secretário
de Estado dos EUA John Kerry e eu vamos em breve discutir esse assunto. É
importante compreender que não se pode manter o problema dos palestinos
congelado para sempre. O fracasso de todos que não resolveram esse problema
durante quase 70anos tem sido o principal argumento dos que recrutam
extremistas: “não há justiça. Prometeram criar dois estados. Criaram o estado judeu,
mas jamais criaram o estado árabe.” Usado numa rua árabe faminta, esses
argumentos soam muito plausíveis. E a rua árabe começou a usar outros métodos
para exigir justiça.
Na reunião
do Clube Valdai, o presidente russo Vladimir Putin disse que carecemos de uma nova versão de interdependência. É
declaração pontual, muito clara.
As grandes
potências têm de voltar à mesa de negociações e definir um novo contexto que
considere os legítimos interesses das principais partes (não sei que nome deve
ter essa reunião, mas tem de ser baseada na Carta da ONU); definir e aceitar
algumas restrições autoimpostas para gerenciamento do risco coletivo num
sistema de relações internacionais construído sobre valores democráticos.
Nossos
parceiros ocidentais promovem respeito à lei, à democracia e à opinião das
minorias dentro dos países, mas esquecem tudo isso, completamente, nos assuntos
internacionais.
A Rússia é
hoje, portanto, país pioneiro na promoção da democracia, da justiça, do estado
de direito e do respeito à lei. Uma nova ordem mundial tem necessariamente de
ser policêntrica e refletir a diversidade de culturas e civilizações no mundo
contemporâneo.
Os
senhores conhecem bem o compromisso assumido pela Rússia, de apoiar a
indivisibilidade da segurança em assuntos internacionais e de fazer vigente
esse princípio, na lei internacional. Sobre isso, não preciso estender-me.
Gostaria
de reforçar o ponto, no qual esse Conselho de Política Exterior e Defesa (SVOP)
tem insistido, de que a Rússia não conseguirá converter-se em grande potência,
bem-sucedida e confiante para o século 21, sem desenvolver as regiões leste.
Sergei Karaganov foi dos primeiros a formatar essa ideia, e concordo
integralmente. Prioridade absoluta é, também, levar para novo nível as relações
entre Rússia e países do Pacífico. A Rússia já trabalhou nessa linha nas
reuniões da APEC em Pequim, e no fórum dos países do G20. Continuaremos a trabalhar nessa
direção, no novo ambiente criado pela União Econômica Eurasiana (UEE) [orig. Eurasian Economic Union (EAEU)] a partir de 1/1/2015.
Os russos
temos sido tratados como “subumanos”. Por mais de uma
década, a Rússia tem tentado estabelecer parcerias com a OTAN através da
Organização do Tratado de Segurança Coletiva, OTSC [orig. Collective Security Treaty Organization, CSTO]. Esses
esforços não se limitavam a cuidar só de pôr OTAN e OTSC “na mesma liga”.
De fato, a
OTSC trabalha hoje só para pegar traficantes de drogas e migrantes ilegais na
área da fronteira afegã. E a OTAN é a espinha dorsal das forças internacionais
de segurança. Dentre outras coisas, a OTAN tem a missão de combater a ameaça
terrorista e eliminar seus esquemas financeiros – que também envolvem tráfico
de drogas. Tentamos de tudo: pedimos, depois solicitamos formalmente algum
contato em tempo real, de modo tal que, tão logo a OTAN detecte uma caravana
que transporte drogas e não consiga detê-la, nós sejamos alertados do outro
lado da fronteira, e as forças da OTSC possam interceptar a caravana.
Simplesmente se recusaram a falar conosco.
Em
conversas privadas, nossos respeitosos amigos da OTAN (e digo-o sem ironia, em
sentido positivo) nos disseram que a OTAN estava impedida de operar com a OTSC
como parceiro em condições de igualdade, por razões ideológicas.
Até
recentemente, temos encontrado a mesma atitude de conformismo arrogante nos
nossos contatos, também no que tenha a ver com a integração econômica
eurasiana. E isso apesar do fato de que países que têm planos para integrar-se
à União Econômica Eurasiana (UEE) têm muito mais em comum, em termos das
respectivas economias, história e culturas, que muitos dos membros da União
Europeia. Essa união não visa a erguer barreiras contra seja quem for. Sempre
repetimos e repetimos que essa união está sendo construída para ser
completamente aberta. Acredito firmemente que estamos construindo uma ponte
significativa entre Europa e Pacífico Asiático.
Não posso
deixar de me referir à ampla parceria que a Rússia já mantém com a China.
Importantes decisões bilaterais já foram tomadas, pavimentando a via para uma
aliança no campo da energia, entre Rússia e China. Mas há mais que isso.
Agora já
se pode até falar sobre a aliança
emergente no campo da tecnologia entre os
dois países. Relações harmônicas e produtivas entre Rússia e Pequim são fator
crucial para garantir a estabilidade internacional e, pelo menos, algum
equilíbrio nas relações internacionais, bem como para garantir o respeito à
ordem legal internacional. Daremos
pleno uso às nossas relações com Índia e Vietnã, parceiros estratégicos da
Rússia, e também com as nações do sudeste da Ásia reunidos na ASEAN. Também estamos abertos para
ampliar nossa cooperação com o Japão, tão logo nossos vizinhos japoneses
consigam olhar mais pelos seus próprios interesses nacionais e parem de olhar
para trás, na direção das velhas potências tradicionais.
Não há
dúvidas de que a União Europeia é nossa maior parceira coletiva. Ninguém aqui
tem planos de dar “tiro no próprio pé”, renunciando à cooperação com a Europa –
embora já seja hoje bem claro que fazer negócios como sempre fizemos já não é
opção possível. Isso é o que nos dizem nossos parceiros europeus, mas nem nós
temos qualquer interesse em operar à moda antiga. Eles supunham que a Rússia
devesse alguma coisa a eles; nós queremos negócios em pés de igualdade. Por
isso, as coisas nunca mais serão como antes. Isto posto, tenho confiança de que
conseguiremos superar essa época, há lições a aprender e, disso tudo, emergirão
novas bases para nossas relações.
A ideia de
criar um único espaço contínuo econômico e
humanitário, de Lisboa a Vladivostok, já começa a ser ouvida
aqui e ali e ganha tração. O Ministro de Relações Exteriores da Alemanha,
Frank-Walter Steinmeier, disse publicamente (embora, de fato, ele já venha
dizendo o mesmo há muito tempo) que a UE e a União Econômica Eurasiana (UEE)
devem iniciar um diálogo. A proposta que o presidente Vladimir Putin expôs em
Bruxelas em janeiro de 2014, quando propôs o primeiro passo e lançou
negociações para a criação de uma zona de livre comércio entre a UE e a União
Aduaneira, já com olhos postos em 2020, já não é tratada como coisa exótica.
Todas essas propostas já são itens de discussão diplomática e política real.
Embora por hora sejam só itens de discussão, creio firmemente que um dia alcançaremos
o que já se chama “A integração das integrações”. Esse é um dos tópicos chaves
que queremos promover na OSCE, no Conselho Ministerial em Basel.
A Rússia está às vésperas de assumir a
presidência dos BRICS e da Organização de Segurança e Cooperação da Europa
(OSCE). As duas organizações terão reuniões de cúpula [orig. in UFA (?)]. São organizações muito promissoras,
para os novos tempos. Não são blocos (especialmente os BRICS), mas grupos
cujos membros partilham os mesmos interesses, representando países de todos os
continentes que partilham abordagens comuns sobre o futuro da economia,
finanças e políticas globais.
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