segunda-feira, 24 de novembro de 2014

E que fim levaram os “humanitários” que iam salvar os líbios com bombas e drones?!

11/11/2014, [*] Gleen Greenwald e [**] Murtaza Hussain, The Intercept
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

David Cameron (E), Mustafa Abdul Jalil (C) e Nicolas Sarkozy os "herois" de fancaria na Líbia
Apenas três anos depois da intervenção militar pela OTAN contra a Líbia e com a intervenção elogiada pelos interventores como se tivesse sido retumbante sucesso, a Líbia é país em colapso total. A violência e a anarquia são de tal modo disseminadas, que “praticamente nenhum líbio consegue viver vida normal” – escreveu Stephen Kinzer, da Brown University, no Boston Globe, semana passada.

Mês passado, o Parlamento líbio, sem exército funcional que lhe garanta proteção contra milícias fortemente armadas, foi obrigado a fugir de Trípoli e abrigar-se num barco grego.

O New York Times noticiou em setembro que

(...) o governo da Líbia declarou (...) que perdeu o controle de seus ministérios para uma coalizão de milícias que tomou a capital, Trípoli, em mais um sinal claro do esfacelamento do estado.

A luta sectária e atraso nos pagamentos destruíram quaisquer tentativas que EUA e Grã-Bretanha tenham feito para treinar soldados líbios, o que levou os dois países, semana passada, a abandonar completamente programas futuros:

(...) nenhum único soldado foi treinado pelos EUA, porque o governo líbio não compareceu com o dinheiro prometido.

A Agência Associated Press noticia hoje que uma cidade inteira, Derna, rendeu-se e jurou fidelidade ao Estado Islâmico no Iraque e Levante [ing. ISIS],

(...) tornando-se a primeira cidade fora do Iraque e da Síria a unir-se ao ‘califado’ anunciado pelo grupo extremista.

Derna, invadida pelo ISIS, fica entre Benghazi e Tripoli
Relatório distribuído pela ONG Anistia Internacional há duas semanas, documentava que

(...) milícias foras-da-lei e grupos ilegalmente armados de todos os lados do conflito na Líbia ocidental, cometem cada vez mais e maiores crimes de abusos de direitos humanos, inclusive crimes de guerra.

Em suma, é quase impossível exagerar os horrores que os líbios são obrigados a enfrentar diariamente, e a miséria tomou conta do país.

Tudo isso leva a uma pergunta óbvia: que fim levaram todos os “humanitários” que tanto insistiram que seriam movidos por profunda e nobre preocupação pelo bem-estar do povo líbio, quando clamavam a favor da intervenção pela OTAN? Quase sem exceção, os que advogavam a favor de ação militar da OTAN em campo na Líbia sempre disseram que a ação seria motivada, não por objetivos primariamente estratégicos, ou pelos recursos naturais líbios, mas por puro altruísmo.

Nicholas Kristof, do New York Times, escreveu:

(...) a Líbia nos faz lembrar que às vezes é possível usar ferramentas militares para fazer avançar causas humanitárias.

Anne-Marie Slaughter, ex-assessora do governo Obama, clamava que

(...) a intervenção tinha a ver com manter “valores universais” os quais, por sua vez, encaminhariam na direção de alcançar os objetivos estratégicos dos EUA.

ISIS/ISIL chega em Derna, Líbia 
Ao justificar a guerra ante os norte-americanos (mais de uma semana depois de os ataques já terem começado), o presidente Obama decretou:

(...) há nações capazes de fingir que não veem atrocidades em outros países. Os EUA, não. Os Estados Unidos da América são diferentes.

O caso é que “fingir que não veem” as atrocidades atuais – e atualmente ainda muito piores que antes – na Líbia é, precisamente, o que fazem hoje os EUA, seus aliados e a grande maioria dos “humanitários” que tanto pregaram guerras e mais guerras. De fato, depois que o bombardeio foi suspenso, os pró-guerra só se mantiveram interessados na sorte do povo líbio por tempo suficiente para se vangloriarem da própria “clarividência” e para vingar-se dos que haviam discordado deles.

Slaughter teve sua “volta da vitória” com uma coluna assinada no Financial Times do dia 24/8/2011, sob o título:“Por que se comprovou que os céticos quanto à ajuda humanitária à Líbia sempre estiveram errados” [orig. Why Líbia sceptics were proved badly wrong]. Nessa coluna ela desqualifica todos que diziam que “ainda é cedo para avaliar” e que:

(...) em um ano, ou numa década, a Líbia corre o risco de desintegrar-se em conflitos tribais ou em insurgências islamistas, ou racha ao meio, ou apenas passa, de um ditador, para outro.

O parlamento líbio se esconde em um "ferry-boat"... grego!
E insiste que nada jamais poderia ser pior que deixar Gaddafi no poder. Assim sendo, então,

(...) a Líbia é a prova de que o ocidente, afinal, é capaz de fazer escolhas com sabedoria.

Assim também Kristof aproveitou seu momento de fama para celebrar o quanto sempre acertara em suas avaliações e previsões e balanços, para visitar Trípoli no mesmo mês de agosto, e de lá anunciou que os norte-americanos eram vistos como heróis pelos líbios agradecidos. Embora toda sua coluna fosse carregada de ressalvas, sobre inúmeras coisas que ainda poderiam acabar terrivelmente mal, o colunista mesmo assim não se envergonhou de escrever que:

(...) essa foi das raras forças de intervenção militar movidas por razões humanitárias, e teve sucesso (...) e que (...) só em raros momentos há forças militares capazes de promover direitos humanos. A Líbia até aqui é modelo para esse tipo de intervenção.

Quando a derrota de Gaddafi já era iminente o blog Think Progress, que apoia a Casa Branca, explorou as emoções resultantes (exatamente como os Republicanos fizeram quando Saddam foi capturado), para provocar os Republicanos: “Será que John Boehner ainda acha que as operações militares dos EUA na Líbia são ilegais?” – Como se assassinar Gaddafi pudesse justificar aquela guerra, mesmo depois de o Congresso ter negado autorização para os ataques, ou, então, como se o assassinato de Gaddafi pudesse, só ele, assegurar resultado que favorecesse os líbios.

Gaddafi assassinado
A mesma cena de patética autocongratulação repetiu-se também em outros países que participam da guerra.

No momento em que o Canadá encenava um espantoso desfile militar comemorativo da vitória na Líbia, com exibição de aviões da Força Aérea sobre o Parlamento em Ottawa, a Líbia mergulhava rapidamente na mais absoluta anarquia, noticiou The Chronicle Herald.

Em setembro de 2011, o Christian Science Monitor narrou como

(...) líderes ocidentais voam paraTrípoli para celebrar a vitória dos rebeldes e oferecer apoio à nova Líbia, cujo sucesso eles veem como modelo para outras revoluções árabes. O presidente francês Nicolas Sarkozy e o primeiro-ministro britânico David Cameron (na foto acima) mergulharam com prazer nos agradecimentos dos líderes favoritos da OTAN para a transição líbia, por terem combatido uma guerra “por razões exclusivamente humanitárias”.

Manchete da revista alemã Der Spiegel do dia 15/9/2011, anunciava:

Sarkozy e Cameron na Líbia: Heróis por um Dia.

Finalmente, o ocidente encontrara sua Boa Guerra, após a qual podia sentir-se puro e orgulhoso.

O mais espantoso aqui não é o quanto, ou como, tudo na Líbia saiu tão terrivelmente, tão tragicamente errado. Que sairia muito errado sempre foi dolorosamente previsível: qualquer um que preste atenção superficial que seja, hoje, sabe que matar “O” ditador-do-mal-do-momento (quase sempre algum ditador que os EUA apoiaram com muito empenho durante muito tempo) nada absolutamente gera, de bom, para o povo diretamente envolvido, a menos que, depois do fim da ditadura, venham anos e anos de apoio sustentado, para reconstruir as instituições civis. E mesmo assim, é difícil alcançar os melhores resultados. Esse, é claro, foi um dos principais argumentos de todos que se opuseram à intervenção Líbia: que nada se obteria de bom para o povo líbio, ao mesmo tempo em que a guerra custaria a vida de muitos líbios e geraria caos inenarrável.

Na Líbia os bombardeios “humanitários” pelos EUA-OTAN ocasionaram mais de 150.000 mortes diretas, 285.000 ferimentos incapacitantes e destruição quase completa da infraestrutura do país. Objetivos: ROUBAR o petróleo e a água.
(clique na imagem para aumentar)

O mais espantoso aqui não é o quanto, ou como, tudo na Líbia saiu tão terrivelmente, tão tragicamente errado. Que sairia muito errado sempre foi dolorosamente previsível: qualquer um que preste atenção superficial que seja, hoje, sabe que matar “O” ditador-do-mal-do-momento (quase sempre algum ditador que os EUA apoiaram com muito empenho durante muito tempo) nada absolutamente gera, de bom, para o povo diretamente envolvido, a menos que, depois do fim da ditadura, venham anos e anos de apoio sustentado, para reconstruir as instituições civis. E mesmo assim, é difícil alcançar os melhores resultados. Esse, é claro, foi um dos principais argumentos de todos que se opuseram à intervenção Líbia: que nada se obteria de bom para o povo líbio, ao mesmo tempo em que a guerra custaria a vida de muitos líbios e geraria caos inenarrável.

O mais espantoso é o descaramento, a temeridade desses advogados pró-guerra, que absolutamente apagaram a Líbia do seu horizonte, no instante em que acabaram os mais excitantes bombardeios aéreos e tiveram fim as suas gloriosas danças de vitória na guerra. Com raras notáveis exceções – como Juan Cole, que visitou a Líbia – praticamente todos os destacados advogados pró-intervenção na Líbia, tanto no governo quanto no “colunato-comentariato” midiático, esqueceram completamente a Líbia e o povo líbio – cujo bem-estar tanto os havia emocionado e comovido no plano humanitário: foi como se já não existissem! Com o país mergulhado em caos, violência, as ruas tomadas por milícias armadas, anarquia generalizada, resultado direto da intervenção pela OTAN, passaram a manifestar o mais total desinteresse; não buscaram, sequer, algo a fazer, alguma providência, alguma medida para conter ou para tentar reverter aquele colapso. O que aconteceu ao tal “humanitarismo” tão profundamente sentido?! Onde se meteram todos aqueles “humanitários”?!

O aeroporto de Trípoli é atacado por milícias 
Há todos os tipos de motivos para opor-se às chamadas “intervenções humanitárias”. Para começar, porque virtualmente todas as guerras, até as mais visível e declaradamente agressivas guerras de conquista (como a Guerra do Iraque) sempre são mostradas em embalagem “humanitária”.

Além do mais, seria de esperar que surgissem dúvidas imensas quanto à capacidade do ocidente para usar bombas e força militar – em terras tão distantes, com culturas complexas e radicalmente diferentes – de tal modo que, no fim, o ocidente ainda tivesse meios para manipular os desdobramentos políticos e sociais da guerra (exceto quando o objetivo das bombas é, precisamente, gerar o mais desgraçado caos, caso em que, sim, sempre se pode esperar que o ocidente seja bem-sucedido). Além disso, os custos da devastação e os custos humanos de pôr os poderosos militares norte-americanos a bombardear países distantes são imensos, e jamais seriam ‘compensados’ por supostos “benefícios”.

Mas a razão de mais peso pela qual se opor a essas guerras é que o “humanitarismo” não é o que motiva os EUA ou a maioria dos governos a enviar soldados armados para outros países. Se você duvida, basta ver como aquela suposta preocupação humanitária pelos líbios sumiu instantaneamente, no momento em que acabou a diversão, a sensação de glória, a autossatisfação pelas bombas disparadas.

Se houvesse alguma autenticidade naquele ostentoso humanitarismo, não teríamos visto tanto grande empenho em consumir enormes quantidades de dinheiro para destruir a Líbia. Por que não se viu empenho algum em estabilizar e reconstruir a Líbia, nem antes, nem durante, nem hoje, nem nunca? Por que, afinal, ante todo o horror do sofrimento dos líbios, não se ouve falar de programas de ajuda, e tudo o que se vê e ouve é envio de mais e mais drones, mais prédios e pessoas que voam pelos ares e aquela risadinha pervertida, doentia, sociopática, do “nós” vimos, conquistamos e O Vilão morreu? Vídeo a seguir: 


(...)

No desfile privado da vitória que promoveu para si mesmo, Kristof, do New York Times, escreveu que:

(...) a questão da intervenção humanitária voltará a aparecer aos olhos do mundo e, quando isso acontecer, nos lembremos da lição da Líbia.

Nisso, pelo menos, está absolutamente certo...
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[*] Glenn Greenwald (6 de março de 1967) é advogado um norte-americano, especialista em Direito Constitucional dos EUA, colunista, blogueiro, comentarista político e escritor estadunidense. Atualmente (2014), vive no Rio de Janeiro Brasil. Divulgou, inicialmente através do jornal britânico The Guardian, as informações sobre os programas de Vigilância Global dos Estados Unidos, que vieram as claras através dos documentos fornecidos por Edward Snowden. Foi colunista do sítio Salon.com, do jornal britânico The Guardian e atualmente, desde o início de 2014 lançou o site de notícias The Intercept, uma publicação da First Look Media, criado pelo próprio Glenn Greenwald juntamente com Laura Poitras e Jeremy Scahill.
Greenwald é premiado colunista de política nos Estados Unidos e autor dos best-sellers, How Would a Patriot Act? (2006), A Tragic Legacy (2007), e Great American Hypocrites (2008). Suas análises sobre a vigilância governamental americana e a Teoria da separação dos poderes são usualmente citados nos jornais The New York Times, The Washington Post e em debates no Senado e na Câmara de Representantes dos EUA.


[**] Murtaza Hussain é jornalista e comentarista político. Seu trabalho tem como foco Direitos Humanos, Política Internacional e Assuntos Culturais. Seus artigos são usualmente publicados no The New York Times, The Guardian, The Globe and Mail, Salon e vários outros meios de comunicação.

Um comentário:

  1. Jean Bricmont já nos advertia sobre isso há algum tempo e esse artigo acerta em cheio. Seria importante traçar um histórico de intervenções imperialistas que resultaram em desastre humanitário. Antonio.

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