11/11/2014,
[*] Gleen Greenwald e [**] Murtaza Hussain, The Intercept
Traduzido
pelo pessoal da Vila Vudu
David Cameron (E), Mustafa Abdul Jalil (C) e Nicolas Sarkozy os "herois" de fancaria na Líbia |
Apenas
três anos depois da intervenção militar pela OTAN contra a Líbia e com a
intervenção elogiada pelos interventores como se tivesse sido retumbante
sucesso, a Líbia é país em colapso total. A
violência e a anarquia são de tal modo disseminadas, que “praticamente nenhum
líbio consegue viver vida normal” – escreveu Stephen Kinzer, da Brown
University, no Boston
Globe, semana passada.
Mês passado,
o Parlamento líbio, sem exército funcional que lhe garanta proteção contra
milícias fortemente armadas, foi obrigado a fugir de Trípoli e abrigar-se num barco grego.
O New York Times noticiou em setembro que
(...) o governo da Líbia declarou (...) que perdeu o controle de seus ministérios
para uma coalizão de milícias que tomou a capital, Trípoli, em mais um sinal
claro do esfacelamento do estado.
A luta
sectária e atraso nos pagamentos destruíram quaisquer tentativas que EUA e
Grã-Bretanha tenham feito para treinar soldados líbios, o que levou os dois
países, semana passada, a abandonar completamente programas futuros:
(...)
nenhum único soldado foi treinado pelos
EUA, porque o governo líbio não compareceu com o dinheiro prometido.
A Agência Associated Press noticia
hoje que uma cidade
inteira, Derna, rendeu-se e jurou fidelidade ao Estado Islâmico no Iraque e
Levante [ing. ISIS],
(...)
tornando-se a primeira cidade fora do
Iraque e da Síria a unir-se ao ‘califado’ anunciado pelo grupo extremista.
Derna, invadida pelo ISIS, fica entre Benghazi e Tripoli |
Relatório distribuído pela ONG Anistia
Internacional há duas semanas, documentava que
(...)
milícias foras-da-lei e grupos
ilegalmente armados de todos os lados do conflito na Líbia ocidental, cometem
cada vez mais e maiores crimes de abusos de direitos humanos, inclusive crimes
de guerra.
Em suma, é
quase impossível exagerar os horrores que os líbios são obrigados a enfrentar
diariamente, e a miséria tomou conta do país.
Tudo isso
leva a uma pergunta óbvia: que fim levaram todos os “humanitários” que tanto
insistiram que seriam movidos por profunda e nobre preocupação pelo bem-estar
do povo líbio, quando clamavam a favor da intervenção pela OTAN? Quase sem
exceção, os que advogavam a favor de ação militar da OTAN em campo na Líbia
sempre disseram que a ação seria motivada, não por objetivos primariamente
estratégicos, ou pelos recursos naturais líbios, mas por puro altruísmo.
Nicholas Kristof, do
New York Times, escreveu:
(...)
a Líbia nos faz lembrar que às vezes é possível usar
ferramentas militares para fazer avançar causas humanitárias.
Anne-Marie
Slaughter, ex-assessora do governo Obama, clamava que
(...)
a intervenção tinha a ver com manter
“valores universais” os quais, por sua vez, encaminhariam na direção de
alcançar os objetivos estratégicos dos EUA.
ISIS/ISIL chega em Derna, Líbia |
Ao
justificar a guerra ante os norte-americanos (mais de uma semana depois de os
ataques já terem começado), o presidente Obama decretou:
(...)
há nações capazes de fingir que não veem
atrocidades em outros países. Os EUA, não. Os Estados Unidos da América são
diferentes.
O caso é
que “fingir que não veem” as atrocidades atuais – e atualmente ainda muito
piores que antes – na Líbia é, precisamente, o que fazem hoje os EUA, seus aliados
e a grande maioria dos “humanitários” que tanto pregaram guerras e mais
guerras. De fato, depois que o bombardeio foi suspenso, os pró-guerra só se
mantiveram interessados na sorte do povo líbio por tempo suficiente para se
vangloriarem da própria “clarividência” e para vingar-se dos que haviam
discordado deles.
Slaughter
teve sua “volta da vitória” com uma coluna assinada no Financial Times do dia 24/8/2011, sob o título:“Por que se comprovou que os céticos quanto à
ajuda humanitária à Líbia sempre estiveram errados” [orig. Why Líbia sceptics were proved badly wrong]. Nessa
coluna ela desqualifica todos que diziam que “ainda é cedo para avaliar” e que:
(...)
em um ano, ou numa década, a Líbia
corre o risco de desintegrar-se em conflitos tribais ou em insurgências
islamistas, ou racha ao meio, ou apenas passa, de um ditador, para outro.
O parlamento líbio se esconde em um "ferry-boat"... grego! |
E insiste
que nada jamais poderia ser pior que deixar Gaddafi no
poder. Assim sendo, então,
(...)
a Líbia é a prova de que o ocidente,
afinal, é capaz de fazer escolhas com sabedoria.
Assim
também Kristof aproveitou seu momento de fama para celebrar o quanto sempre
acertara em suas avaliações e previsões e balanços, para visitar Trípoli no
mesmo mês de agosto, e de lá anunciou que os norte-americanos eram vistos
como heróis pelos líbios agradecidos. Embora toda sua coluna fosse carregada de
ressalvas, sobre inúmeras coisas que ainda poderiam acabar terrivelmente mal, o
colunista mesmo assim não se envergonhou de escrever que:
(...) essa foi das raras
forças de intervenção militar movidas por razões humanitárias, e teve sucesso
(...) e que (...) só em raros momentos há
forças militares capazes de promover direitos humanos. A Líbia até aqui é
modelo para esse tipo de intervenção.
Quando a
derrota de Gaddafi já era iminente o blog Think
Progress, que apoia a Casa Branca,
explorou as emoções resultantes (exatamente como os
Republicanos fizeram quando Saddam foi capturado), para provocar os Republicanos: “Será que John Boehner ainda acha que as
operações militares dos EUA na Líbia são ilegais?” – Como se assassinar Gaddafi
pudesse justificar aquela guerra, mesmo depois de o Congresso ter negado autorização para os ataques, ou,
então, como se o assassinato de Gaddafi pudesse, só ele, assegurar resultado
que favorecesse os líbios.
Gaddafi assassinado |
A mesma
cena de patética autocongratulação repetiu-se também em outros países que
participam da guerra.
No momento
em que o Canadá encenava um espantoso desfile militar comemorativo da vitória
na Líbia, com exibição de aviões da Força Aérea sobre o Parlamento em Ottawa, a
Líbia mergulhava rapidamente na mais absoluta anarquia, noticiou The Chronicle Herald.
Em
setembro de 2011, o Christian Science
Monitor narrou como
(...)
líderes ocidentais voam paraTrípoli para celebrar a vitória dos rebeldes e oferecer
apoio à nova Líbia, cujo sucesso eles veem como modelo para outras revoluções
árabes. O presidente francês Nicolas Sarkozy e o primeiro-ministro britânico
David Cameron (na foto acima) mergulharam com prazer nos agradecimentos dos líderes
favoritos da OTAN para a transição líbia, por terem combatido uma guerra “por
razões exclusivamente humanitárias”.
Manchete da
revista alemã Der Spiegel do dia 15/9/2011, anunciava:
Sarkozy e Cameron na Líbia: Heróis
por um Dia.
Finalmente,
o ocidente encontrara sua Boa Guerra, após a qual podia sentir-se puro e
orgulhoso.
O mais
espantoso aqui não é o quanto, ou como, tudo na Líbia saiu tão terrivelmente,
tão tragicamente errado. Que sairia muito errado sempre foi dolorosamente
previsível: qualquer um que preste atenção superficial que seja, hoje, sabe que
matar “O” ditador-do-mal-do-momento (quase sempre algum ditador que os EUA
apoiaram com muito empenho durante muito tempo) nada absolutamente gera, de
bom, para o povo diretamente envolvido, a menos que, depois do fim da ditadura,
venham anos e anos de apoio sustentado, para reconstruir as instituições civis.
E mesmo assim, é difícil alcançar os melhores resultados. Esse, é claro, foi um
dos principais argumentos de todos que se opuseram à intervenção Líbia: que
nada se obteria de bom para o povo líbio, ao mesmo tempo em que a guerra
custaria a vida de muitos líbios e geraria caos inenarrável.
O mais espantoso
aqui não é o quanto, ou como, tudo na Líbia saiu tão terrivelmente, tão
tragicamente errado. Que sairia muito errado sempre foi dolorosamente
previsível: qualquer um que preste atenção superficial que seja, hoje, sabe que
matar “O” ditador-do-mal-do-momento (quase sempre algum ditador que os EUA
apoiaram com muito empenho durante muito tempo) nada absolutamente gera, de
bom, para o povo diretamente envolvido, a menos que, depois do fim da ditadura,
venham anos e anos de apoio sustentado, para reconstruir as instituições civis.
E mesmo assim, é difícil alcançar os melhores resultados. Esse, é claro, foi um
dos principais argumentos de todos que se opuseram à intervenção Líbia: que
nada se obteria de bom para o povo líbio, ao mesmo tempo em que a guerra
custaria a vida de muitos líbios e geraria caos inenarrável.
O mais espantoso é o
descaramento, a temeridade desses advogados pró-guerra, que absolutamente
apagaram a Líbia do seu horizonte, no instante em que acabaram os mais
excitantes bombardeios aéreos e tiveram fim as suas gloriosas danças de vitória
na guerra. Com raras notáveis exceções – como Juan Cole, que visitou a Líbia – praticamente todos os destacados advogados pró-intervenção
na Líbia, tanto no governo quanto no “colunato-comentariato” midiático,
esqueceram completamente a Líbia e o povo líbio – cujo bem-estar tanto os havia
emocionado e comovido no plano humanitário: foi como se já não existissem! Com
o país mergulhado em caos, violência, as ruas tomadas por milícias armadas,
anarquia generalizada, resultado direto da intervenção pela OTAN, passaram a
manifestar o mais total desinteresse; não buscaram, sequer, algo a fazer,
alguma providência, alguma medida para conter ou para tentar reverter aquele
colapso. O que aconteceu ao tal “humanitarismo” tão profundamente sentido?!
Onde se meteram todos aqueles “humanitários”?!
O aeroporto de Trípoli é atacado por milícias |
Há todos
os tipos de motivos para opor-se às chamadas “intervenções humanitárias”. Para
começar, porque virtualmente todas as guerras, até as mais visível e
declaradamente agressivas guerras de conquista (como a Guerra do Iraque) sempre
são mostradas
em embalagem “humanitária”.
Além do
mais, seria de esperar que surgissem dúvidas imensas quanto à capacidade do
ocidente para usar bombas e força militar – em terras tão distantes, com
culturas complexas e radicalmente diferentes – de tal modo que, no fim, o
ocidente ainda tivesse meios para manipular os desdobramentos políticos e
sociais da guerra (exceto quando o objetivo das bombas é, precisamente, gerar o
mais desgraçado caos, caso em que, sim, sempre se pode esperar que o ocidente
seja bem-sucedido). Além disso, os custos da devastação e os custos humanos de
pôr os poderosos militares norte-americanos a bombardear países distantes são
imensos, e jamais seriam ‘compensados’ por supostos “benefícios”.
Mas a
razão de mais peso pela qual se opor a essas guerras é que o “humanitarismo”
não é o que motiva os EUA ou a maioria dos governos a enviar soldados armados
para outros países. Se você duvida, basta ver como aquela suposta preocupação
humanitária pelos líbios sumiu instantaneamente, no momento em que acabou a diversão, a sensação de glória, a autossatisfação
pelas bombas disparadas.
Se
houvesse alguma autenticidade naquele ostentoso humanitarismo, não teríamos
visto tanto grande empenho em consumir enormes quantidades de dinheiro para
destruir a Líbia. Por que não se viu empenho algum em estabilizar e reconstruir
a Líbia, nem antes, nem durante, nem hoje, nem nunca? Por que, afinal, ante
todo o horror do sofrimento dos líbios, não se ouve falar de programas de
ajuda, e tudo o que se vê e ouve é envio de mais e mais drones, mais prédios e pessoas que
voam pelos ares e aquela risadinha pervertida, doentia, sociopática, do “nós”
vimos, conquistamos e O Vilão morreu? Vídeo a seguir:
(...)
No desfile
privado da vitória que promoveu para si mesmo, Kristof, do New York Times, escreveu que:
(...)
a questão da intervenção humanitária
voltará a aparecer aos olhos do mundo e, quando isso acontecer, nos lembremos
da lição da Líbia.
Nisso,
pelo menos, está absolutamente certo...
__________________________
[*] Glenn Greenwald (6 de março de 1967) é advogado um norte-americano, especialista
em Direito
Constitucional dos EUA, colunista, blogueiro, comentarista
político e escritor estadunidense. Atualmente (2014), vive no Rio de Janeiro
Brasil. Divulgou, inicialmente através do jornal britânico The Guardian, as informações sobre
os programas de Vigilância Global dos Estados Unidos, que vieram as claras
através dos documentos fornecidos por Edward Snowden. Foi colunista do sítio Salon.com,
do jornal britânico The Guardian e atualmente, desde o início de 2014 lançou
o site de notícias The Intercept, uma publicação da First Look Media, criado pelo
próprio Glenn Greenwald juntamente com Laura Poitras e Jeremy Scahill.
Greenwald é premiado
colunista de política nos Estados Unidos e autor dos best-sellers, How Would a Patriot Act? (2006), A
Tragic Legacy (2007), e Great American Hypocrites (2008).
Suas análises sobre a vigilância governamental americana e a
Teoria da separação dos poderes são usualmente citados nos jornais The New York Times, The Washington Post e em debates no Senado e na Câmara de
Representantes dos EUA.
Recebe
e-mails em: glenn.greenwald@theintercept.com,
[**] Murtaza Hussain é jornalista e comentarista
político. Seu trabalho tem como foco Direitos Humanos, Política Internacional e
Assuntos Culturais. Seus artigos são usualmente publicados no The New York
Times, The Guardian, The Globe and Mail, Salon e vários outros meios de
comunicação.
Recebe e-mails em: murtaza.hussain@theintercept.com
Jean Bricmont já nos advertia sobre isso há algum tempo e esse artigo acerta em cheio. Seria importante traçar um histórico de intervenções imperialistas que resultaram em desastre humanitário. Antonio.
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