25 de agosto de 2011 às 20:06
Foi lançada, no começo de agosto, a Revista Auditório, do Centro de Estudos do Auditório Ibirapuera, de São Paulo, onde, aliás, ocorreu anteontem um importante debate.
A revista pode ser baixada em pdf pela internet e este blogueiro recomenda a publicação com muita ênfase. O dossiê sobre música inclui feras como David Byrne, Allen Ginsberg e Guilherme Wisnik. O craque Tiago Mesquita escreve sobre cinema, além de ser um dos participantes da entrevista com Lenine. Há muita gente mais e o trabalho gráfico ficou maravilhoso. Recebi convite gentil de Lauro Mesquita e Juliana Nolasco para resenhar o livro mais recente de José Ramos Tinhorão. A resenha segue abaixo, mas não deixe de conferir a revista inteira.
Foi lançada, no começo de agosto, a Revista Auditório, do Centro de Estudos do Auditório Ibirapuera, de São Paulo, onde, aliás, ocorreu anteontem um importante debate.
A revista pode ser baixada em pdf pela internet e este blogueiro recomenda a publicação com muita ênfase. O dossiê sobre música inclui feras como David Byrne, Allen Ginsberg e Guilherme Wisnik. O craque Tiago Mesquita escreve sobre cinema, além de ser um dos participantes da entrevista com Lenine. Há muita gente mais e o trabalho gráfico ficou maravilhoso. Recebi convite gentil de Lauro Mesquita e Juliana Nolasco para resenhar o livro mais recente de José Ramos Tinhorão. A resenha segue abaixo, mas não deixe de conferir a revista inteira.
Esta compilação de trabalhos do pesquisador José Ramos Tinhorão traz quinze artigos sobre artistas ou gêneros da música popular (dois deles inéditos, posto que censurados pela ditadura), duas belas entrevistas (uma com João da Baiana, publicada em 1971 na Veja, e uma inédita, com o pioneiro radialista Ademar Casé, também destinada à revista e vetada por um dos editores), uma série de breves textos sobre a história das gafieiras, publicados em 1965 no Diário Carioca, e um apêndice que contém uma sátira sobre o Gênesis e dois breves ensaios sobre o século XVIII francês.
Excetuando-se esta última parte, o volume reitera o perfil já conhecido dos leitores de Tinhorão: um erudito autodidata, feroz na defesa do nacionalismo musical e das expressões culturais das classes populares, inimigo declarado do que ele percebe como o estrangeirismo da bossa nova e a falta de autenticidade das elites brasileiras.
Seja nos ataques a Realce, de Gilberto Gil, ao violão de João Gilberto e ao piano de Johnny Alf, ou na celebração do calango mineiro, da cantoria e das obras de Patativa do Assaré, Martinho da Vila, Geraldo Vandré e mesmo de Chico Buarque (elogiado num artigo cujo título afirma que Chico “é mesmo o melhor”), não há grandes surpresas neste volume para aqueles que acompanham a trajetória de Tinhorão.
Daí não se segue que o livro seja desprovido de interesse.
A compilação oferece um ótimo panorama do que foi a atividade crítica de Tinhorão da década de 60 a princípios dos anos 80, especialmente no Jornal do Brasil. São todos eles textos breves, de duas a três páginas.
É sintomático que os dois artigos censurados pela ditadura tenham sido aqueles dedicados a Chico Buarque de Hollanda, vítima preferencial das tesouras dos militares, e aos artistas negros brasileiros.
No texto intitulado “Por que artista crioulo tem sempre que ser engraçado?”, Tinhorão toca numa manifestação bem particular do racismo brasileiro. Citando como exemplos os Originais do Samba, Jair Rodrigues e Martinho da Vila, Tinhorão propõe que “tocar seu instrumento fazendo piruetas ou cantar rindo” se transformou em requisito para que o artista negro aceda ao primeiro plano nos palcos. Trata-se da conversão forçada da figura do artista negro em peça exótica ou engraçada. A observação me parece perfeita, e é inclusive verificável em outras áreas da indústria do entretenimento.
Na televisão e no cinema, atestam a afirmação de Tinhorão as trajetórias de figuras como Mussum e Grande Otelo.
No entanto, como frequentemente é o caso com Tinhorão, há distinções taxativas que não parecem resistir a um exame dos fatos.
Terá sido somente nos anos 60, como ele afirma, que surgiu a “necessidade de usar a linha de cor de uma maneira mais rigorosa”? Terão sido os programas de televisão dos anos 50 caracterizados pela avaliação dos dotes dos artistas “de um ponto de vista de absoluta igualdade”, como afirma o autor? Conhecendo-se a história do racismo brasileiro — do qual não esteve imune, por exemplo, Jackson do Pandeiro, que debutou na TV nos anos 50 –parece-me difícil seguir Tinhorão numa distinção cronológica tão taxativa, que pressupõe que os primeiros programas de televisão no Brasil tenham se mantido, de alguma forma, intocados pelo racismo.
Nem mesmo os muitos desafetos e críticos que Tinhorão ganhou ao longo dos anos lhe costumam negar um mérito, que também a mim parece indiscutível: seus dotes de pesquisador erudito e conhecedor profundo da história da música brasileira.
Quando trata de música popular, especialmente dos gêneros e artistas nos quais reconhece valor, Tinhorão sabe do que fala. Isso é ponto pacífico.
Este volume traz duas manifestações especiais destes dotes, um excepcional artigo sobre o calango mineiro e um breve estudo sobre as origens da música urbana.
No texto sobre o calango, publicado em 1981 no Jornal do Brasil, Tinhorão nota que sequer a edição de 1975 do Novo Dicionário Aurélio registrava o vocábulo “calango” na acepção de canto e dança. Tinhorão oferece uma bela introdução a essa dança mineira e fluminense “em ritmo quaternário, dois por quatro, par enlaçado e sem complicações coreográficas”, em cuja forma cantada “o solista diz quadrinhas e o coro repete o refrão”. Tinhorão vai além e demonstra como o calango é uma via de contato entre Minas Gerais e o Nordeste, sendo nada menos que a “versão mineira da embolada do coco nordestino”.
Por influência ou não desse artigo, a segunda edição do Aurélio, de 1986, já incluía os termos “calango”, “calanguear”, “calangueado” e “calangueiro”, em suas acepções musicais.
No texto sobre as origens da música urbana, “A música urbana nasce com a canção de amor”, Tinhorão rende tributo aos músicos de escola e de capela, que seguiram a tradição dos trovadores palacianos dos séculos XIV e XV.
Segundo Tinhorão, eles “encaminhavam-se através do virtuosismo contrapontístico na direção do canto polifônico e coral, os tocadores do povo, sucessores dos jograis e artistas de rua medievais, passavam a transformar em cantigas autônomas as partes líricas dos denominados ‘romances velhos’ , herdeiros da cantoria cavaleiresca quase recitada das canções de gesta” (p. 74).
Trechos como este nos fazem sentir saudades da época em que os jornais tinham colunistas de música capazes de eruditas exposições históricas perfeitamente compreensíveis por qualquer leitor regular não-especializado. Nesse caso, tratava-se de um estudo sobre as origens amorosas medievais da canção urbana, que aparecia numa coluna regular do impresso, em forma de um breve texto de três laudas.
A dica de Tinhorão acerca das origens trovadoras da canção urbana abre um canal de diálogo entre estudos de música popular e de literatura acerca de um período histórico sobre cujos estudos não costuma haver grande diálogo: a Idade Média e a primeira Era Moderna.
Nem as Faculdades de Letras costumam tocar na parte musical das cantigas medievais de amor, de amigo, de escárnio e de maldizer, nem as Faculdades de Música incluem, em geral, profissionais especializados no texto poético.
Com sua erudição de pesquisador autodidata, Tinhorão foi dos que melhor abriram caminhos de pesquisa como este, inexplorado devido à sobreespecialização na universidade.
Tinhorão argumenta que a popularização das chamadas guitarras (as violas simplificadas em Portugal de 1500) foi chave para a transformação da cantilena baseada quase que somente na musicalidade das próprias palavras em canto melódico acompanhado. Eis aí a manifestação por excelência da música brasileira popular urbana, a canção, filha de um processo de democratização do espaço da cidade: a música saía do espaço circunscrito das produções da Igreja e entrava no terreno da experiência coletiva da polis. Seria como mediadora da relação amorosa, mostra o autor, que essa forma, a canção, sentaria raízes na pólis pela primeira vez.
Para os que conhecem a trajetória de Tinhorão e já se acostumaram com suas posições sobre o que é música autenticamente nacional e o que é macaqueamento da cultura estrangeira, este volume traz bastante material: críticas ao “brinquedo musical” de João Gilberto, ataques ao americanismo de Johnny Alf, torpedos contra Realce, de Gilberto Gil, como pausterização de música pop estadunidense, interessante contraposição entre um nissei cantando sertanejo (autêntico, posto que homenageia a colônia japonesa via referência à guarânia paraguaia) e um brasileiro cantando rock (inautêntico, posto que padece a condição de vítima da indústria cultural e do imperialismo).
Essas posições são taxativas linhas divisórias nos debates sobre música brasileira popular contemporâneos e não seria incorreto sugerir que Tinhorão passou a representar o segmento neles minoritário.
Cada volume publicado por ele, mesmo que sem novidades no que se refere a esse antagonismo tão conhecido, renova o que deve ser sempre ressaltado: o fato de que a notável solvência de sua pesquisa permanece, incólume, independente do dogmatismo que se possa apontar em suas dicotomias valorativas.
A extrema qualidade desse trabalho se manifesta em Crítica cheia de graça também no elogio ao disco Cantoria (emblemático, para Tinhorão, da criatividade da arte popular), no estudo dedicado ao cantador pernambucano Oliveira de Panelas (em disco produzido por Zé Ramalho) e no artigo sobre a poesia de Patativa do Assaré.
São momentos cintilantes de jornalismo musical da melhor qualidade, com conhecimento de causa e paixão pelo objeto de estudo.
Esta é a razão pela qual os melhores momentos deste livro sejam aqueles em que Tinhorão deixa seu objeto falar por si: as entrevistas com João da Baiana e Ademar Casé. Em especial o comovente depoimento do velho sambista “de Ogum e de Xangô” já seria suficiente para saudar esta publicação como indispensável para os estudiosos de música brasileira popular. Mas há muito mais e, como dito acima, três ítens são inéditos, dois deles censurados pela ditadura e um terceiro pela própria editoria da revista. Não é o dado menos revelador desta oportuna publicação.
Extraído do Blog Outro Olhar do Idelber Avelar
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