por RAIMUNDO SANTOS*
“A economia não é um templo, mas um campo de testes”. (Habermas)
A bibliografia acadêmica vem apresentando um debate no qual nosso rural aparece como um mundo dinâmico movimentado pelo “confronto e diálogo” entre o agronegócio e a agricultura familiar. Já se tornou tão complexo o mundo rural brasileiro que a estrutura governamental há anos se repartiu, significativamente, em dois ministérios, um para cada lado (Ministério da Agricultura e Ministério do Desenvolvimento Agrário). Não por acaso, o atual governo, liderado por um partido de compromisso camponês — ativista da luta pela terra nos anos 1980 e 1990 —, é chamado a administrar o grão-capitalismo (usando a expressão com que um sociólogo do Rio de Janeiro se refere à economia brasileira), dele (e da “herança maldita” recebida de FHC) extraindo sucessos para sua política econômica.
No mundo rural de hoje dispõem-se possibilidades de desenvolvimento localizadas no agronegócio e na agricultura familiar, alvos de políticas públicas especiais nada desimportantes. É só ver o seu número, diversificação e abrangência crescentes, aqueles dois ministérios mais e mais articulando ações com o Ministério do Meio Ambiente e a Secretaria da Pesca, além de vários outros programas de envergadura (ações no território, os Pronafs, etc.). Toda uma trama institucional atua num meio rural já bem distante do mundo da tradição e do tempo dos “grandes domínios”.
Às vésperas desta eleição presidencial decisiva, na qual inclusive a consolidação do Estado Democrático de direito corre risco, este texto se refere à controvérsia em torno daquela dualidade a que se atribui a dinamização da vida rural. Centralizada entre o PSDB e o PT, a disputa mostrará compreensões diferenciadas tanto no que se refere ao processo democrático em curso como em relação aos grandes temas postos em discussão durante a campanha eleitoral, como a questão agrária e rural. Com base em certa bibliografia, estas páginas registram uma controvérsia que tem a ver com campos que se expressam nos dois principais candidatos. Com Serra estão conhecidas áreas de esquerda de enraizada orientação gradualista e reformista-democrática, bem diferentes das influentes tendências de esquerda que compõem o largo arco de apoio à candidatura de Dilma Rousseff.[1]
Assim, em uma ponta, pode-se ver na bibliografia aqui referida uma tendência que defende a agricultura familiar em termos de um “campesinismo” novo e atualizado, ponto de vista hoje hegemônico nas esquerdas militantes. Este campo vê-se reforçado por autores dos mais credenciados (VEIGA, 1998; ABRAMOVAY e VEIGA, 1998; VEIGA, 1994; apud SAUER, 2008), que, naqueles anos 1990, justificaram um ressurgimento da reforma agrária distributivista, aumentando as expectativas em relação ao advento de um novo dinamismo econômico com base na agricultura familiar. Realçando seus atributos vantajosos em relação ao agronegócio (pluricultura, absorção da pobreza, sustentabilidade, etc.), chega-se a pensar que a agricultura familiar tem todas as condições para ser o protagonista de um novo padrão de desenvolvimento social e econômico no mundo rural (SAUER, 2008).
Todavia é de se registrar um grupo de estudiosos do agronegócio que se propõe ir além da ênfase na dimensão econômica do grande empreendimento.[2]Realizando uma abertura analítica em relação à bibliografia denuncista, esta vertente volta suas vistas para a “sociedade” do agronegócio. Ao direcionarem assim sua investigação, os seus autores estão fazendo um diagnóstico do custo social do agronegócio, ator que não teria obtido o dinamismo que o separa dos seus antepassados sem o uso privatista do Estado, a concentração da propriedade e o caráter predatório do empreendimento, como mostra o estudo minucioso realizado em três regiões (o Norte matogrossense, o Triângulo mineiro e o Oeste baiano). No entanto, o que chama a atenção no estudo são a diversidade das relações sociais que envolvem o conjunto do mundo à volta dos agronegócios e, especialmente, a segmentação social que prospera na “sociedade do agronegócio”.
Há outras opiniões a respeito da agricultura familiar com postura mais positiva em relação aos agronegócios. É o caso de John Wilkinson, o principal autor referido nestas notas, que se associa a uma “nova síntese” que “já se desenha em torno da noção de “território”, como diz ele próprio. Visando ampliar o horizonte dos defensores da agricultura familiar, Wilkinson se propõe ir além de três posições consideradas insuficientes: a) daqueles que superestimam o grau de consolidação de certos segmentos de produtores, “por não levarem em conta as transformações na dinâmica recente dos mercados”; b) dos que (em estudos da pluriatividade) subestimam “as oportunidades para a agricultura familiar nos novos mercados de nicho como também na crise do modelo dominante da agricultura especializada” (WILKINSON, 2008: 14) ; e c) dos que “descuidam do significado dos espaços de mercados ocupados pelas PMEs (pequenas e médias empresas) e da dinâmica do setor informal” (aqui aludindo a estudos sobre a agroindústria) (Ib.).
O autor põe o seu tema — a agricultura familiar e os mercados — no cenário econômico atual. Diz ele que, no mundo das grandes cadeias de commodities, a agricultura familiar tem que operar com novos níveis de qualidade e novas escalas de produção. Ela é chamada a obter “capacidades próprias” para desenvolver “iniciativas autônomas”, o que exige aprendizagem coletiva capaz de levar consideráveis contingentes a processos de muita inovação. O próprio tema da segurança alimentar e os requerimentos de qualidade realçam o papel da fiscalização e das regulamentações do poder público em seus três níveis (marcas, certificações, etc.) e também estimulam a agricultura familiar e o mundo artesanal a procurarem uma reestruturação que os habilite a entrar nos novos mercados, não faz muito reservados à grande empresa. O fortalecimento (“autônomo”, por sua qualidade) dos “mercados dos orgânicos” (mais abrangentes) e a ida da agricultura familiar a mercados regionais e nacionais (aos “consumidores desconhecidos”) não constituem as últimas fronteiras da sua expansão. A agricultura familiar não só tem posição importante no mercado interno como também já responde por fatias das exportações brasileiras. O grande varejo e os grandes supermercados, anota o autor, já mobilizam os pequenos e médios produtores para montar os seus grupos de fornecedores de produtos de qualidade especial (Id. : 209).
Para Wilkinson, “à medida que a agricultura familiar se oriente ao mercado e adote práticas de um pequeno empresário, abre-se uma ponte para uma aproximação ao mundo dos agronegócios” (Id.: 206). O autor não tem dúvida: “O mercado, portanto, nos seus diversos aspectos, começa a ser o grande desafio também para a agricultura familiar” (Id.: 209). Este caminho expressa um condicionamento da esfera econômica que os dois lados (o agronegócio e a agricultura familiar) parecem subestimar, ao não ver “a profundidade das transformações nos valores da sociedade que são parcialmente refletidos nas novas dinâmicas dos mercados”, delas não escapando o grande mundo das commodities (rastreabilidade, internacionalização dos valores ambientais e sociais). Ao não reconhecerem as mudanças, os representantes do agronegócio e os defensores da agricultura familiar não se dispõem a explorar “os espaços de convivência”.
O autor alude ao fenômeno do Corporate Social Responsability (CSR), observando que os dois lados não percebem a incidência da valorização de “uma série de qualidades, separadamente ou em conjunto, que questionam a sujeição de valores ambientais, sociais, culturais e políticos a prioridades de custo e escala” (Id.: 211). Sistemas de certificações, redes alternativas de produção e consumo questionam o modelo de economia industrial e põem em realce o mundo artesanal. E ainda: “Na medida em que a economia desloca-se para serviços, este reconhecimento se desdobra em externalidades positivas para outros setores, sobretudo o turismo” (Ib.).
Daí advém a necessidade de requalificar o dualismo antigo no qual ainda se concentra a bibliografia denuncista ou de “viés campesinista” (sic). O agronegócio é criticado por viver obcecado pela busca de competitividade nas suas grandes cadeias de commodities, o que impede a sensibilização pelos temas do meio ambiente e do trabalho. Por sua vez, os defensores da agricultura familiar desqualificam o CSR, considerando-o simples “greenwashing e cooptação”, e não buscam ver “em que medida mudanças na sociedade, refletidas mais por intermédio do mercado do que em períodos anteriores, estão criando bases novas para uma convivência entre estes dois segmentos, sem eliminar as grandes áreas de conflitos que continuariam alimentando mobilizações sociais e políticas” (WILKINSON, 2008: 210).
O sentido dos tempos atuais requer atenção para temas emergentes: “Do lado do mercado, porém, muitos sinais apontam para um reconhecimento e uma valorização de um novo dualismo em relação a sistemas de produção” (WILKINSON, 2008: 211). O CSR expressa “tendências mais abrangentes pela valorização de uma série de qualidades” e leva a uma espécie de “paradoxo”: “Ou melhor, existe um reconhecimento de que custos que não levam em conta essas qualidades transformam essas próprias qualidades em custos. Sistemas de certificação, por um lado, e redes alternativas de produção e consumo, por outro, focalizam, sobretudo, a valorização de processos produtivos distintos em relação ao modelo industrial, ratificando um reconhecimento do ‘mundo artesanal’ bem como dos sistemas de produção local” (Ib.).
O autor acredita que novos estudos virão contribuir para reequacionar a desconfiança dos porta-vozes da agricultura familiar, partidários, acrescenta Wilkinson, de uma longa “guerra de posições” (sic) contra os agronegócios. Estes, por sua vez, medem tudo por seu modernismo empresarialista, desconhecendo a força da agricultura familiar e do mundo artesanal. “Na sua desconfiança de manifestações de CSR”, diz o autor, “os porta-vozes da agricultura familiar parecem subestimar o grau em que o mercado se torna um canal de expressão dos valores de movimentos sociais” (Id.: 212). Esse novo espaço do mercado abre possibilidades para um mínimo de “reconhecimento mútuo”, que pode, ao mesmo tempo, favorecer o diálogo sobre os outros temas de maior conflito no campo político-institucional (Id.).
Já não é possível deixar de reconhecer a importância que têm tanto os agronegócios quanto a agricultura familiar, este dado apontando para a necessidade de explorar as bases de “convivência entre ambos”. Não se trata mais de uma recuperação das virtudes camponesas da agricultura familiar. O impulso já estaria noutra dimensão. “O mercado ainda é o mesmo?”, esta é a tese do autor, e o seu ponto consiste em que, à medida que se diversificou, o mercado pôs-se diante do camponês atual de diferentes modos. Trata-se hoje de mercados atravessados por diversas mediações e regulações do poder público; resultantes, acrescentemos, de ações praticadas na esfera da política (partidos, Congresso, sindicatos, movimentos, associações, governo e agências governamentais nos seus três níveis).
Essa controvérsia acerca das relações entre o agronegócio e a agricultura familiar mostra o papel decisivo do poder público. A propósito, há uma tendência incipiente que também procura ir além da ênfase no tema da polaridade “grande domínio”–agricultura familiar e que se refere ao grão-capitalismo dominante no mundo rural, como Wilkinson, sem defensivismos paralisantes. Esta bibliografia realça a questão do sentido e das prioridades da ação de governo, chamando particularmente a atenção para os investimentos animadores da vida rural no âmbito regional e local, investimentos estratégicos para a reforma democrática do mundo rural. Este, certamente, será tema desta eleição.
Referências bibliográficas
HERÉDIA, Beatriz, MEDEIROS, L., PALMEIRA, M. e LEITE, S. P. Sociedade e economia do “agronegócio” no Brasil. Caxambu: Anpocs, 2009.
SAUER, S. Agricultura familiar versus agronegócio: a dinâmica sociopolítica do campo brasileiro. Brasília: Embrapa, 2008.
WILKINSON, J. Mercados, redes e valores. Porto Alegre: UFRS, 2008.