Em defesa das FARC
Neste artigo Miguel Urbano Rodrigues critica a hipocrisia dos grandes do capital ao prestarem homenagem ao actual presidente da Colômbia e lamenta a atitude assumida por Hugo Chávez
Subitamente, em Washington, Londres, Berlim e Paris, uma chuva de elogios caiu sobre a Colômbia. Um Estado policial, neofascista, mascarado de democracia, surgiu nas manchetes dos jornais de referência e no discurso dos estadistas do Ocidente como modelo para a América Latina.
Álvaro Uribe, o presidente que terminou o seu segundo mandato, foi nomeado co-presidente da comissão internacional criada pela ONU para levar adiante o inquérito sobre o ataque israelense à Flotilha da Liberdade. Simultaneamente, a prestigiada universidade de Georgetown, em Washington, convidou-o para dirigir, como catedrático, um curso de formação de dirigentes políticos.
Na posse de Juan Manuel Santos, seu sucessor, compareceram 16 chefes de Estado, na maioria da América Latina. Não faltou o príncipe herdeiro da Espanha. Durante dias o novo presidente foi saudado pelos grandes media ocidentais como um talentoso político democrático com um projecto inovador, decidido a imprimir à Colômbia uma orientação diferente da uribista, introduzindo no país reformas profundas.
Todos estavam conscientes de que mentiam.
O discurso de Santos é diferente, mas a politica de terrorismo de estado vai prosseguir sob os aplausos dos EUA e da oligarquia mais reaccionária da América Latina.
Para a Casa Branca a Colômbia actual é uma democracia quase exemplar. O presidente foi também saudado com particular entusiasmo por Israel, íntimo aliado.
Uma hipocrisia inocultável foi o denominador comum na apologia do herdeiro de Uribe pelos príncipes do capital.
De repente simularam esquecer o currículo de Juan Manuel Santos [1].
O sucessor de Uribe é um aventureiro da política e um criminoso cujas palavras mansas escondem um passado tenebroso.
JMS foi o principal responsável, como ministro da Defesa, do ataque pirata da força aérea e do exército colombianos ao acampamento de Sucumbio no Equador, realizados com a cumplicidade do Pentágono, da CIA e da Mossad isrealense em Fevereiro de 2008. Nesse bombardeamento morreram o comandante Raul Reyes, responsável pelas Relações Exteriores das Forças Armadas Revolucionarias da Colômbia - Exército Popular, duas dezenas de combatentes da organização, e três jovens mexicanos que ali se encontravam.
O presidente do Equador, Rafael Correa, respondeu ao acto de barbárie rompendo as relações com o governo de Bogotá e a Justiça equatoriana exigiu a extradição de Juan Manuel Santos para ser julgado como primeiro responsável pelo crime. O processo não foi avante porque Uribe alegou incompetência do tribunal do Equador para julgar o seu ministro.
Transcorrido um ano, tive a oportunidade de falar em Caracas com um jovem que assistiu ao bombardeamento e à posterior descida no acampamento de tropas aerotransportadas. Não esqueci o relato que ele fez da matança dos guerrilheiros, feridos, que tinham sobrevivido ao bombardeamento. Contrariamente ao que os media noticiaram, morreram combatendo.
O processo foi agora arquivado porque, sendo chefe de Estado, JMS goza de impunidade, mas julgo útil recordar que ele se orgulha de ter sido o autor intelectual da chacina de Sucumbio.
O ALVO: AS FARC-EP
Dos presidentes do México, do Peru, do Chile eram esperadas as homenagens a Santos.
Mas, estranhamente, presidentes como Lula, Cristina Kirchner, Mauricio Funes e Fernando Lugo não somente aderiram ao coro de elogios como manifestaram o seu apoio à chamada política de «segurança democrática» iniciada por Uribe e cuja continuidade foi defendida pelo novo presidente.
Mais, aproveitaram a oportunidade para criticar as organizações insurgentes e sugerir que as FARC-EP e o ELN abandonem a luta e se integrem no sistema, aceitando dialogar com Santos nas bases por este definidas.
Particularmente inesperada foi a posição assumida por Hugo Chávez. O presidente da Venezuela deslocou-se a Santa Marta, no Caribe colombiano, e, na casa onde Bolívar faleceu, trocou abraços com Santos, assinou acordos e assumiu compromissos que, pela forma e pelo conteúdo são chocantes.
Compreende- se que Chávez pretenda normalizar as relações com a Colômbia após a ruptura resultante da ultima provocação de Uribe (2). Mas usou uma linguagem muito infeliz ao referir-se às organizações revolucionárias que combatem o estado neofascista colombiano, sugerindo na prática que se submetam às exigências de JMS. Colocou as FARC-EP e o ELN no mesmo plano dos bandos criminosos do paramilitarismo e dos cartéis do narcotráfico.
AS FARC têm afirmado repetidamente a sua disponibilidade para dialogar com o governo sobre a necessidade de paz no país.
Mas qual é o conceito de dialogo de Santos, exaustivamente exposto durante a campanha eleitoral e no seu discurso de posse?
Três são as suas condições para o diálogo com as FARC:
Deposição prévia das armas; libertação imediata de todos os presos em seu poder; e «renúncia ao narcotráfico».
Que significam essas exigências?
Que Santos não quer dialogar; exige, sem o dizer expressamente, a capitulação incondicional das FARC-EP.
Se a guerrilha depusesse as armas previamente, ficaria à mercê do Poder oligárquico.
Cabe lembrar o genocídio político dos anos 80.
Em Março de 1984 as FARC aceitaram a proposta do presidente Belisario Bettencourt para lutarem no quadro das instituições ditas democráticas, renunciando à luta armadas. E que aconteceu?
Fundou-se um partido progressista, a União Patriótica, que participou em eleições. A UP elegeu muitos senadores, deputados, autarcas. A resposta do Poder foi uma repressão política bárbara. Em três anos foram assassinados mais de 3.000 parlamentares, juízes, autarcas, dirigentes sindicais, supostamente ligados às FARC, num genocídio político sem precedentes.
Para sobreviverem, as FARC retomaram a luta armada.
Até a questão dos prisioneiros é colocada capciosamente por Santos. Reclama tudo sem oferecer nada em troca.
Pessoalmente, desaprovo os sequestros. Mas não posso ignorar que o governo mantém nos seus presídios, em condições sub humanas, milhares de guerrilheiros. E recusa-se ao intercâmbio humanitário, isto é, a libertação de uma parte desses presos, trocando-os por «reféns» – a maioria dos quais militares capturados em combate – em poder das FARC-EP.
Nas fossas de La Macarena, na Amazónia, recentemente descobertas, foram encontradas as ossadas de milhares de cidadãos assassinados pelo Exército da oligarquia durante as perseguições contra pessoas suspeitas de ligações com a União Patriótica e as FARC-EP.
Como confiar na palavra de Juan Manuel Santos, o responsável pela chacina de Sucumbio?
Estou certo de que Chávez não tardará a arrepender-se de haver acreditado na promessa de uma relação «transparente, democrática e respeitosa» feita por um politico corrupto e criminoso que, inevitavelmente, vai dar continuidade à estratégia agressiva e de ultra direita imposta por uma oligarquia de cujos interesses é o representante na Casa de Nariño.
Surpreende também que, sendo hoje Hugo Chavez na América Latina o pioneiro, quase o motor, da contestação ao imperialismo – pelo que merece o apoio e admiração das forças progressistas do Continente – não tenha levantado em Santa Marta o tema da instalação de 7 novas bases militares dos EUA na Colômbia. Esquecendo que na UNASUL afirmou que essas bases configuram uma ameaça inadmissível à independência dos povos da América Latina, afirmou que cada país tem o direito soberano de decidir sobre problemas como esse.
HERÓIS DA AMÉRICA LATINA
Inspira-me repugnância a terminologia utilizada pelo governo e o Exército da Colômbia para designar as FARC-EP, terminologia alias perfilhada pela ONU, pela União Europeia e os media dos EUA e da Europa.
Alem de terroristas é lhes colado o anátema de narcotraficantes.
O slogan «guerrilha do narcotráfico» – expressão forjada por um ex embaixador dos EUA, Louis Stamb, ligado ao Pentágono e à CIA – para desacreditar as FARC, difundido urbi et orbi atingiu o seu objectivo tão amplamente que inclusive intelectuais comunistas assimilaram a calúnia. A campanha é de tal intensidade que canais de televisão e jornais se referem rotineiramente a «fábricas de cocaína» instaladas pelas FARC na selva amazónica.
Tivessem as FARC acumulado milhões com o narcotráfico e disporiam de mísseis terra-ar como as organizações de resistentes no Afeganistão e no Iraque. Ora o próprio governo de Bogotá reconhece que elas não dispõem de armamento desse tipo. Mas somente aqueles que conhecem as condições de pobreza em que vivem na clandestinidade os representantes das FARC no exterior – é o meu caso – sabem que o folhetim da «guerrilha do narcotráfico» é uma perversa invenção do imperialismo.
A vida abriu-me a oportunidade de passar semanas num acampamento das FARC, no Departamento amazónico do Meta. Nesses dias conheci combatentes maravilhosos como Simon Trinidad, entregue por Uribe aos EUA e actualmente preso ali após três julgamentos de farsa (dois foram anulados). Condenaram-no finalmente por narcotraficante, a ele, ex banqueiro, membro de uma rica família aristocrática.
Foi também então que construí uma relação de respeito e admiração que evoluiu para a amizade com o comandante Raul Reyes. Mantivemos contacto até que o assassinaram em Sucumbio, a sul do Putumayo, no bombardeamento pirata concebido por Juan Manuel Santos.
Com Manuel Marulanda, o fundador das FARC, falei uma única vez por breves minutos. Mas guardo desse revolucionário, comunista exemplar e estratego militar talvez sem par na História da América, uma lembrança inesquecível.
Quando leio acusações infames contra os combatentes das FARC recordo sobretudo Rodrigo Granda, aliás Ricardo González, amigo fraternal e um dos revolucionários mais puros e autênticos que a vida me permitiu conhecer.
Recordando combatentes das FARC-EP, mortos, presos ou lutando nas montanhas e selvas do seu país, é natural, repito, que me inspirem repugnância os elogios hipócritas a um criminoso como Juan Manuel Santos.
É a esse ser abjecto que a burguesia internacional rende nestes dias homenagens enquanto despeja calúnias sobre os comandantes das FARC que se batem por uma Colômbia livre e democrática.
Uma certeza: os nomes de Uribe e Santos e da escória humana que os apoia serão esquecidos pelas futuras gerações.
Não os de Manuel Marulanda, Jacobo Arenas, e Raul Reyes. Com o passar dos anos, a calúnia deixará de os atingir. Eles contribuíram para a construção da História profunda, na fidelidade a valores permanentes da condição humana. Assumiram os ideais pelos quais viveram e se bateram heróis tutelares da Latina como Bolívar, Artigas, Marti.
1. Juan Manuel Santos pertence a uma das famílias mais influentes da oligarquia colombiana. Seu tio avô, Eduardo Santos, foi Presidente da República e director e proprietário de El Tiempo, um dos principais diários da América Latina. Foi ministro da Indústria, da Fazenda e da Defesa em vários governos, tendo desempenhado um papel importante na destruição da Segurança Social ao impor o modelo pinochetiano. Opôs-se inicialmente à reeleição de Uribe, mas depois fundou o partido, La U, que o apoiou e reelegeu.
Manteve muitos contactos com Carlos Castaño, o falecido chefe dos paramilitares e com Pablo Escobar, o rei da cocaína, também falecido.
2. A Colômbia foi nos últimos anos o principal parceiro económico da Venezuela após os EUA (7.000 mil milhões de dólares de intercambio comercial em 2008). Nos departamentos fronteiriços vivem centenas de milhares de colombianos, sobretudo camponeses, e essa comunidade cumpre um papel fundamental na agricultura venezuelana.
V N de Gaia, 12 de Agosto de 2010
extraído d'ODiário.info