terça-feira, 17 de agosto de 2010

Bolívia - As cinco Leis Fundamentais do Estado Plurinacional

Baseadas na Nova Constituição Política de Estado (NCPE), as leis delineiam novos Órgão Judicial, Tribunal Constitucional, Órgão Eleitoral e Regime Eleitoral, além de definir um novo marco de descentralização da administração territorial do Estado Plurinacional

13/08/2010
Vinicius Mansur correspondente em La Paz (Bolívia)

Com a promulgação da Lei Marco de Autonomias e Descentralização pelo presidente Evo Morales, no dia 19 de julho, foi conformado o corpo legal básico que permitirá o pleno funcionamento do novo Estado boliviano, conforme a Nova Constituição Política de Estado (NCPE). O prazo para a aprovação deste corpo, também composto pelas outras quatro leis orgânicas citadas, já estava definido nas disposições transitórias da nova Constituição: o Congresso boliviano tinha o dia 22 de agosto como data limite para entregá-las ao presidente.

A oposição à Morales classificou de autoritária a rapidez empreendida ao processo de aprovação, porém, pouco pode fazer diante de uma bancada governista que corresponde a mais de dois terços do Parlamento. Alguns pontos das novas leis também foram taxadas de autoritárias pelos oposicionistas, mas até mesmo a Lei Marco de Autonomias e Descentralização, alvo das maiores polêmicas, foi considerada um avanço por Ruben Costas, governador de Santa Cruz, departamento que reúne a mais forte oposição à Morales. "Se recorremos a história da Bolívia e de Santa Cruz, encontraremos que nunca houve tantos avanços em autonomia como tivemos nos últimos cinco anos", declarou.

Autonomias e Descentralização

Denominada de Andrés Ibáñez, em homenagem ao líder da Revolução Igualitária de 1877, em Santa Cruz, a Lei Marco de Autonomias e Descentralização define o regime de competência e os mecanismos de coordenação entre os diferentes níveis de governo, além de criar o Conselho Nacional de Autonomias e do Serviço Estatal Técnico de Autonomias para acompanhar o processo de descentralização. A nova lei concede diferentes níveis de autonomias a regiões, departamentos, municípios e territórios indígenas autônomos, descentralizando ações em mais de 20 áreas, como saúde, educação, transporte, obras públicas, meio ambiente, entre outras.

De acordo com o ministro de Autonomias, Carlos Romero, a nova lei serve para promover o desenvolvimento econômico e produtivo do país: "Uma vez aprovada a lei de classificação de impostos, vão poder [as unidades autônomas] exercer sua reforma tributária, o que os vai permitir aumentar seus recursos, mas também assumir empreendimentos econômicos que os permitam dar sustentabilidade às autonomias, captando receitas próprias e não sujeitando-se somente às projeções de renda geradas pela exploração de recursos naturais". Um Fundo de Produção e Solidariedade foi criado pela nova lei para complementar a renda dos departamentos mais pobres.

A desconcentração de poderes prevista pela NCPE e especificada na nova lei, a princípio, pode não soar muito inovadora para a realidade brasileira de Estado federal. Porém, significa grandes mudanças na Bolívia, país com forte herança centralista, no qual seu povo sequer tinha o direito de eleger os governadores antes da NCPE, sendo estes indicados diretamente pelo presidente. Tal herança se justifica na histórica dificuldade boliviana de forjar a unidade e a identidade nacional, fato que sempre travou a descentralização de poderes em nome do medo da fragmentação do Estado. Ou, ao contrário, motivou movimentos separatistas que se camuflavam sob a bandeira da “autonomia”. O exemplo mais recente aconteceu em 2008, quando quatro departamentos do oriente boliviano (Santa Cruz, Pando, Tarija e Beni), governados pela oposição à Morales, realizaram, sem reconhecimento dos órgãos do Estado nacional, os chamados referendos autonômicos, aprovando estatutos que conferiam aos governos departamentais poderes até então monopolizados pelo governo central.

Enquadrando a oposição

O estatuto de Santa Cruz, por exemplo, permitia ao departamento ter seu próprio regime eleitoral, ter o controle de titulação de terras, sobre os serviços de telecomunicações, sobre recursos naturais, entre outros. Com a Lei Marco de Autonomias e Descentralização, estes departamentos estão obrigados a enquadrar seus estatutos às novas disposições legais, o que, de acordo com a presidenta da Comissão Mista de Autonomias e Descentralização da Assembléia Legislativa Plurinacional, a masista Betty Tejada, obrigará Santa Cruz a modificar 40 dos 168 artigos de seu estatuto.

Tejada explicou que todos os departamentos terão até dezembro para adequar seus estatutos ou para redigir novos. Em 5 de dezembro, o Tribunal Constitucional será eleito por voto popular, em janeiro de 2011 tomará posse, tendo até maio para aprovar os estatutos elaborados. Em setembro do mesmo ano, todos os estatutos deverão ser submetidos à referendos populares.

A adequação dos estatutos deverá ser feita pelas Assembléias Legislativas Departamentais e aprovada por dois terços dos assembleístas, condição que não é alcançada pelos opositores à Morales em nenhum departamento, o que os obrigará a pactuar. Para o senador masista Eduardo Maldonado, "mais do que debater e aprovar o estatuto, esse processo deve buscar participação dos municípios, povos indígenas e organizações da sociedade civil para conseguir um documento altamente representativo e consensuado". Diante de um cenário amplamente desfavorável, três dos quatro departamentos que precisam remodelar seus estatutos já começaram os trâmites. Apenas Santa Cruz está com o processo parado. Os cruceños questionam, sobretudo, o artigo 145 da Lei Marco, que ordena a suspensão de autoridades elegidas quando apresentada, contra ela, uma acusação formal, por algum órgão de Justiça, de supostos atos de delito.

Cidob protesta

A Confederação de Povos Indígenas do Oriente Boliviano (Cidob) iniciou uma marcha no dia 21 de junho, saindo da capital do departamento de Beni, Trinidad, enquanto a Lei Marco estava em debate no Congresso. A organização apresentou um documento com 13 reivindicações, entre elas a regularização de terras, anulação de concessões florestais e mineiras em suas áreas e autonomia plena. Antes que a marcha chegasse a La Paz, Cidob e governo assinaram um acordo que contemplava 11 dos 13 pontos, entre eles, um financiamento de 1,5 milhões de dólares para a regularização de terras e a revisão de todas as concessões. O acordo suspendeu a marcha, porém o dirigente da Cidob, Johnny Rojas, afirmou que "os projetos de desenvolvimento são uma derrota" e que "vão denunciar ao mundo inteiro que não somos atendidos, apesar de termos um governo indígena".

De acordo com o ministro de Autonomias, Romero, o único problema na negociação foi a "chantagem" imposta pela Cidob que reivindicava um cargo no órgão público Autoridade de Fiscalização e Controle Social de Florestas e Terras.

Próximos passos

Segundo o diretor do curso de Sociologia da Universidad Mayor de San Andrés (UMSA), Eduardo Paz, "as leis aprovadas até aqui tratam de modificar a superestrutura, de maneira a afiançar o atual governo". Paz destaca que, após conquistado o poder Executivo, as novas leis vêm para permitir uma mudança da classe dirigente em outros níveis de poder, especialmente no Legislativo. Passada a aprovação das cinco leis, o sociólogo acredita que o governo impulsionará a Assembléia Legislativa Plurinacional a tratar de temas mais diretamente ligados à vida do povo, como aposentadoria, saúde, educação e código de trabalho.

Principais novidades das outras quatro leis

Lei de Regime Eleitoral

Regulamenta referendos e eleições, estabelecendo critérios para aumentar a presença das mulheres e a diversidade étnica em eleições para o Legislativo e o Judiciário. Define que os mais altos cargos do Órgão Judicial serão eleitos por voto popular. Promove a democracia interculural, reconhecendo como legítimos os mecanismos de democracia direta, participativa, representativa e também comunitária. O texto convida os bolivianos a "reconhecer e respeitar as distintas formas de deliberação democrática, diferentes critérios de representação política e os direitos individuais e coletivos da sociedade intercultural boliviana". Reconhece o direito a consulta prévia, livre e informada aos povos indígenas. De maneira inédita na Bolívia, estabelece o segundo turno nas eleições para cargos do Executivo. Foi criticada por impor limites às campanhas e às coberturas jornalísticas nas eleições para o Órgão Judicial e também por estabelecer somente sete circunscrições especiais indígenas (equivalentes a sete cadeiras no Congresso), uma vez que dentro destas sete circunscrições existem mais de 30 povos indígenas.

Lei do Órgão Eleitoral Plurinacional (OEP)

Estabelece que o novo órgão terá um Tribunal Supremo Eleitoral, com sede em La Paz, Tribunais Departamentais em cada um dos departamentos, além do Serviço de Registro Cívico. O Tribunal Supremo será dirigido por sete membros, sendo um escolhido pelo presidente e os outros seis pela Assembléia Legislativa Plurinacional, com pelo menos dois terços dos votos. Dos sete, pelo menos três terão que ser mulheres e dois de origem indígena originária camponesa. Os Tribunais Departamentais serão dirigidos por cinco membros, dos quais pelo menos duas devem ser mulheres e um de origem indígena originária camponesa.

Lei do Órgão Judicial

Reconhece a Justiça Indígena Originária Camponesa, que goza de igual hierarquia à Justiça ordinária, porém não define seus limites jurisdicionais, que serão estabelecidos pela Lei de Deslinde Jurídico. Define que os magistrados do Tribunal Superior de Justiça (TSJ) e do Tribunal Agroambiental, além dos conselheiros do Conselho de Magistratura serão eleitos por sufrágio universal. A Assembléia Legislativa Plurinacional selecionará uma lista de candidatos inscritos para ir a votação, garantindo a presença de pelo menos 50% de mulheres e de uma pessoa de origem indígena originária camponesa. No caso do TSJ, serão eleitos um magistrado titular e um suplente por departamento. Caso o mais votado seja homem, sua suplente deverá ser a mulher mais votada. Caso seja mais votada uma mulher, seu suplente será o homem mais votado.

Lei do Tribunal Constitucional

Encarregado de elucidar os conflitos entre as novas autonomias e receber ações de inconstitucionalidade. Serão eleitos, por sufrágio universal, sete magistrados titulares e sete suplentes, sendo que pelo menos um deverá vir do sistema indígena originário camponês, por auto-identificação. A Assembléia Legislativa Plurinacional selecionará previamente 28 dos candidatos inscritos, tendo que garantir 50% de mulheres na lista.

enviado por VeraVassouras
extraído do sítio Brasil de Fato