sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Karzai aposta na audácia de Obama

28/8/2010, M K Bhadrakumar, Asia Times Online – Traduzido pelo coletivo Vila Vudu


A corrupção no governo e órgãos públicos no Afeganistão está tomando rumos cada dia mais estranhos. Discute-se um dilema perturbador: trair o próprio país -- a favor de uma agência estrangeira de inteligência – é ato de corrupção? Por padrões morais e éticos, parece que sim. Em termos legais, não há qualquer dúvida, é a mais alta forma de corrupção e merece castigo máximo.


Os acusados quase sempre sofrem longas penas de interminável confinamento em solitária – ou caem no esquecimento, depois de uma troca de espiões. Nessa categoria, muitos se tornam alcoólatras, à medida que se aproximam do ocaso da vida, e a culpa pela corrupção começa a corroer-lhes a força vital da consciência, o que se pode interpretar como a mais alta punição, parida diretamente da ira divina.


Contudo, no Afeganistão, onde o bizarro pode virar palavra-de-ordem, os EUA detêm o poder supremo, tanto para disseminar a corrupção quanto para, depois, bem... Prover os meios para punir corruptos. Pode-se concluir que essa seja a mais alta forma de autoflagelação que a humanidade jamais conheceu – exceto o xiismo.


Karzai menospreza a abordagem “amor linha dura” dos EUA


Consideremos o caso candente de Mohammed Zia Salehi, chefe de administração do Conselho de Segurança Nacional no governo chefiado pelo presidente Hamid Karzai.


Coube aoThe New York Times a sensacional revelação de que, há um mês, Salehi esteve a um passo de ser apanhado pela agência afegã encarregada do trabalho anticorrupção, mas teve de ser sumariamente liberado, para prosseguir livre como um passarinho, por intervenção pessoal do presidente. Salehi, como facilmente se deduz e não será surpresa para ninguém, foi treinado pelos EUA para o nobre trabalho que, depois, passou a ser conhecido como “construção de capacidade” nos órgãos estatais afegãos.


Salehi, como tudo sugere, trabalhou como agente da CIA por anos sem conta, seja informando sobre o funcionamento do gabinete presidencial (e traindo o presidente e o governo), seja corrompendo policiais de Karzai e injetando-lhes doses cuidadosamente aferidas de pensamento pró-EUA de tempos em tempos, com o que prestou inestimável serviço à guerra conduzida pelos EUA e às estratégias de Washington para a região. E não acaba aí. A CIA também usou Salehi como uma espécie de homem-caixa, para distribuir os pagamentos de outros agentes no Afeganistão.


O caso Salehi tornou-se celebrado exemplo da batalha de espertezas entre Karzai e o governo Barack Obama, que alcança agora nível qualitativamente novo de ferocidade. Em tal medida que, a certa altura, Karzai ameaçou demitir toda a força-tarefa anticorrupção treinada pelos EUA; o impasse pôs em xeque o âmago essencial da estratégia Af-Pak do governo dos EUA. E levou Washington a despachar para Cabul uma das figuras-chave de mais alto escalão do establishment da política exterior e segurança dos EUA, John Kerry, presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado.


Washington fez saber, por vazamentos pela mídia, que a missão de Kerry em Cabul implicaria “falar duro” com Karzai, o que, de fato, tem acontecido com alarmante frequência em anos recentes, como parte da abordagem “amor linha dura” sobre o indômito líder afegão, o qual começou a fincar pé em seu território político com tal crescente tenacidade que já ameaça diluir o controle dos EUA sobre a própria guerra.


Mas o “amor linha dura” é exercício altamente complexo. Não se sabe o que transpirou entre Karzai e Kerry no palácio presidencial, semana passada. É possível que circulem mais de uma versão do encontro, dado que ambos, como têm repetido a mídia norte-americana, são grandes amigos e entendem-se esplendidamente bem.


Seja como for, nem bem Kerry dava por encerrada sua missão em Cabul, Karzai foi para a televisão e os jornais e expôs, sem papas na língua, o arquivo que os norte-americanos construíram do “caso Salehi” e todo o sórdido negócio que, hoje, é a corrupção no Afeganistão.


Karzai destacou três pontos. Primeiro, Salehi foi abjetamente tratado pela força-tarefa anticorrupção dos EUA; a punição que lhe aplicaram é desproporcional aos seus atos, a saber, que teria aceitado um carro de presente para seu filho, no valor de US$10 mil dólares, por serviços prestados. Evidentemente é presente muito modesto, modelo básico de carro pequeno, que ninguém da elite afegã, sempre atenta às manifestações de riqueza e status, não usa. Algum Nissam Micra recondicionado importado de Dubai, talvez?


É a guerra, noutro plano


Mas isso é detalhe. Karzai apontou o dedo, de fato, para a evidência de que, quando todos sabem que há tubarões muito maiores no aquário afegão, os EUA optam por usar o caso Salehi como exemplo de intimidação, não porque interesse aos EUA acabar com alguma corrupção, mas porque trabalham para desmoralizar o próprio governo Karzai e o palácio presidencial.


Ao que se sabe, funcionários dos serviços anticorrupção invadiram mês passado a residência de Salehi em plena madrugada, algemaram-no e o arrancaram de casa. O homem foi tratado como ladrão de esquina à vista de sua família e vizinhos, o que é humilhação abominável, praticamente sem remissão, para qualquer afegão de alto padrão social.


Como segundo ponto, Karzai desafiou a agência anticorrupção comandada pelos EUA e ordenou que trabalhem exclusivamente nos limites da lei afegã; que a própria agência deve ser integrada ao corpo “soberano” do governo afegão. Em resumo, Karzai mostrou a porta de saída aos norte-americanos; disse que exercerá todas as suas prerrogativas presidenciais legais, como presidente eleito de um país soberano. Disse que nenhum norte-americano jamais se atreva a agir como se o Afeganistão fosse estado vassalo.


Ao mesmo tempo, Karzai assinou decreto pelo qual ordena que as milícias privadas afegãs – mascaradas como se fossem “agências de segurança” e todas financiadas e contratadas pelos EUA e outros países ocidentais, por vias que caracterizam “a terceirização” da guerra – sejam desarticuladas; que os agentes-empregados sejam incorporados às forças de segurança afegãs, sob comando do Ministério do Interior, ainda antes do fim de 2010. Essas agências privadas fornecem guardas de segurança pessoal ou doméstica, e escoltas; acumulam experiência de inteligência de campo; e, inclusive, cumprem missões sempre controversas, sempre às margens da lei.


Fato é que Karzai golpeou os EUA abaixo da linha da cintura. Fato é, também, que os EUA estão guerreando uma forma marginal de guerra no Hindu Kush, guerra cada vez mais terceirizada, cada vez mais delegada a empresários norte-americanos. Não se fala sobre isso, mas aí está o que, sim, fez crescer a corrupção aos níveis massivos de hoje –, porque o Pentágono favorece os seus empresários mais “íntimos”, sujeira da qual só pode nascer mais sujeira.


Como aconteceu na guerra do Iraque, a guerra do Afeganistão também fede. E o Congresso dos EUA, afinal, começa a examinar o modo como se consumiram os bilhões de dólares que o país gastou no Hindu Kush desde a invasão, no final de 2001.


Karzai entende perfeitamente bem que o atual surto de combate à corrupção que agita os comandantes norte-americanos “do Af-Pak” é esperta manobra para comprometer o lado afegão, o qual será responsabilizado pelo colossal desperdício de dinheiro dos contribuintes norte-americanos, no instante em que começarem a surgir os relatórios da comissão de investigação do Congresso, e penas começarem a voar.


Karzai não está interessado em ser exposto como o bobo da história, o que é normal. O terceiro ponto que Karzai destacou, portanto, é que não tem qualquer comando ou qualquer responsabilidade sobre o rio de dinheiro que corre para o Hindu Kush. Funcionários afegãos já disseram que apenas uma pequena porção – menos de 20% – do total de recursos internacionais encaminhados para o Afeganistão chega ao governo em Cabul. Os restantes 80% são administrados diretamente pelos países doadores.


Essa discussão sobre quem controla os cordões da ‘ajuda econômica’ é mais velha que as mais velhas montanhas. Os EUA jamais questionaram a veracidade do que Karzai e seu governo dizem, e que funcionários da ONU confirmam. Por que, então, a irrupção agora, com tal ferocidade?


O âmago da questão é que Karzai parece suspeitar de que os EUA já trabalham para derrubá-lo da presidência. Com certeza percebeu que o New York Times dedicou recentemente página inteira à guerra do Afeganistão, um artigo cuja porção-chave praticamente exigia que o governo Obama “reconsidere” a permanência de Karzai na presidência.


Karzai é político sofisticado e sabe o que os EUA fizeram no Vietnã, a partir do momento em que se configurou a derrota na guerra. Os EUA simplesmente continuaram substituindo seus aliados sul-vietnamitas no palácio presidencial em Saigon. Karzai já se tornou, sim, um problema político para os EUA. É homem de discurso claro, é articulado e é assertivo, pouco confiável, portanto, como aliado dos EUA – e nada leva a crer que, de repente, se converta em alguma espécie de Nuri al-Maliki, premiê no Iraque.


Mais importante; Karzai insiste em comandar o trabalho de construir algum acordo político, e cada vez mais se mostra propenso a trabalhar para construir um consenso regional, no qual se reúnam Irã, Rússia, Índia e outros. Karzai ameaça o monopólio dos EUA, tanto da guerra quanto do processo de paz.


Na essência, Karzai já percebeu que os EUA e o Paquistão trabalharam juntos para fazer abortar sua iniciativa de abrir uma via de contato com os Talibãs moderados e abertos à reconciliação.


Recente noticiário do New York Times sobre a “captura” de Mullah Baradar em Karachi, ao sul do Paquistão, em janeiro, confirma que a operação foi trabalho conjunto da CIA e do serviço secreto paquistanês. O melhor que os norte-americanos conseguiram dizer sobre o próprio desempenho é explicação patética: como se fossem seres incompetentes e os espertos paquistaneses os tivessem usado como isca de arapuca; de fato, nem sabiam quem estavam procurando, quando chegaram a um esconderijo, e lá toparam com o segundo homem na hierarquia da shura de Quetta.


Karzai não supõe que a CIA seja constituída só de imbecis dessa envergadura, que não saibam com quem se metem, ao participar de grandes operações conjuntas com o formidável serviço secreto do Paquistão.


Mas muito mais ameaçador que tudo isso, foi o encontro secreto acontecido em Bonn, mês passado, entre alguns dos aliados de Karzai na antiga “Aliança do Norte” [ing. Northern Alliance] e funcionários dos EUA – com a ambígua intenção de avaliar o preço do rompimento de todos os laços políticos que os ligam a Karzai. Em outras palavras, para saber quanto custará o serviço de romper a rede de contatos políticos que Karzai continua astutamente a tecer para ampliar e fortalecer sua base de apoio – e preparando-se para o dia em que tenha de sentar-se face a face com os Talibãs.


A suprema ironia é que os EUA só atrairão, se atraírem alguém, aliados de Karzai na Aliança do Norte que pertencem aos grupos étnicos não-pashtuns, porque apresentam o presidente afegão como “pacificador” dos Talibãs, o que reacende o medo visceral dos não-pashtuns de que os Talibãs voltem ao governo no Afeganistão.


Karzai tem boas razões para suspeitar de que o jogo que os funcionários “Af-Pak” dos EUA estão jogando foi planejado para ser jogado agora, a poucos dias das eleições parlamentares previstas para o dia 8 de setembro. Karzai depositou todas as suas esperanças em conseguir eleger um Parlamento com o qual possa trabalhar em harmonia, diferente da legislatura anterior, sempre controlada pela embaixada dos EUA em Cabul.


Obama consegue segurar o Pentágono?


Karzai estima que terá de levar com ele o Parlamento, como representante da opinião coletiva dos afegãos, em qualquer tipo de acordo político. Se o plano de Karzai para as eleições parlamentares der certo, graças a sua ampla aliança com grupos não-pashtuns, e ele conseguir eleger um Parlamento com o qual possa trabalhar para construir um consenso nacional, atingirá mortalmente toda a estratégia dos EUA para (I) controlar e (II) determinar os contornos e limites de qualquer acordo que se faça no Afeganistão.


A questão central, como se lia no New York Times e no Washington Post semana passada, é que tudo indica que os EUA não pensam em se retirar militarmente nem do Afeganistão nem da Ásia Central em futuro próximo. E é indispensável que haja governo obediente em Cabul, para que o Pentágono consiga negociar com o Afeganistão um acordo SOFA [ing. status of forces agreement, acordo que define as regras de “convivência” entre dois exércitos, num mesmo território] favorável aos EUA. Essa questão é crucialmente importante para a estratégia regional dos EUA, de “contenção” (da China, do Irã e da Rússia), e não pode ser nem reduzida nem “suavizada”.


Em artigo para a revista Foreign Policy, Selig Harrison, especialista, professor e autor de Out of Afghanistan, comenta o terrível dilema que Obama enfrenta – como sair do Afeganistão, sem aparecer como “o derrotado”. Para Harrison, a única via pela qual a guerra do Afeganistão pode ainda ser levada a conclusão satisfatória para os EUA é os EUA aceitarem a existência de um Afeganistão “neutro”.


Mas Harrison prevê que Obama terá de enfrentar luta duríssima em seu próprio campo em Washington, a cada passo que tente avançar na direção de um acordo político no Afeganistão. Diz ele:


“O maior obstáculo a um acordo não virá, provavelmente, do Paquistão, mas do modo de pensar de um Pentágono para o qual projetar o poder dos EUA é fim desejável em si. Algumas das 74 bases norte-americanas no Afeganistão, inclusive as bases aéreas, foram construídas exclusivamente para operações de contraguerrilha e ficariam obsoletas no caso de acordo de neutralização.


Mas as bases-gigantes em Bagram e Kandahar são projetadas para crescer nos próximos anos – e prosseguem, nas duas bases, ambiciosos projetos para novas construções, apesar da promessa de Obama de que iniciará a retirada de tropas daquele país no verão de 2011. Além disso, o Congresso examina pedidos de novos fundos, num total de 300 milhões, para estabelecer novas bases em Camp Dwyer e Shindand, próximas da fronteira iraniana, e em Mazar-i-Sharif, próximas da Ásia Central e da Rússia. Ciente da oposição do Afeganistão a “bases permanentes”, o Pentágono e a Casa Branca falam agora de “acesso permanente”, que garantiria que essas bases continuassem a ser usadas para operações de vigilância da inteligência.” [1]


Pode-se cogitar de dar a Obama o benefício da dúvida, de que ele não ignora o que pensa o Pentágono ou que “ainda não se tenha dedicado” à questão do futuro das bases dos EUA no Afeganistão e na Ásia Central. Harrison inclina-se pela segunda opção.


Seja como for, caberá a Obama decidir se o Pentágono ainda usará o Afeganistão para “avançar suas metas de projetar seu poder global, mesmo quando os Talibã e a al-Qaeda já sejam só lembranças distantes”, avalia Harrison com profundo senso da história dos 30 anos do conflito afegão.


Em resumo, Karzai está empenhado em luta épica. Ou ele engole seus instintos afegãos de orgulho, autorrespeito, independência feroz, e aceita um pacto faustiano, ou desafia a estratégia global do Pentágono. As duas vias podem ser fatais para ele.


Por ironia, a melhor esperança de Karzai é que Obama recuse-se a ser mais um “presidente do establishment” e cumpra a promessa que fez em tempos de campanha. Mas a retórica de 2008 já é história. No campo minado da política, só o “aqui” e o “agora contam.


O resultado das eleições para o Congresso dos EUA em novembro pode vir a ser evento definitivo na tumultuada carreira política de Karzai, tanto quanto pode ser evento definitivo, também, de uma meteórica aparição de Obama no cenário mundial, como homem de paz.


Nota de tradução


[1] Selig Harrison, Foreign Policy, 24/8/2010, “How to Leave Afghanistan Without Losing. Regional diplomacy could be more than just a buzzword -- if the United States would do the right thing”


O artigo original, em inglês, pode ser lido em: Karzai wagers on Obama's audacity