quinta-feira, 21 de junho de 2012

Julian Assange saltou de banda


20/6/2012, Ray McGovern, Consortium News
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

“Eu já morei na tal da feira moderna
mas saltei de banda
e hoje sou meu próprio patrão
e ninguém me manda...”
Elza Soares, 1973 [3]


Ray McGovern
Exceto se houver um ataque com drones da CIA contra a embaixada do Equador em Londres, o inesperado pedido de asilo feito pelo fundador de WikiLeaks Julian Assange pode tê-lo salvo da prisão na Suécia ou, possivelmente, nos EUA. A liberdade de Assange depende agora em grande medida do presidente do Equador, Rafael Vicente Correa Delgado, da nova safra de presidentes de ideias independentes, como o presidente Hugo Chávez da Venezuela.

Correa tem sido duro crítico do comportamento dos EUA em relação ao Equador e seus vizinhos latino-americanos e empenhado admirador de WikiLeaks. Fato não típico para a região, o Equador não recebe ajuda significativa, nem militar nem econômica, dos EUA. Portanto, Washington tem ali reduzido poder de chantagem. É possível que o governo do Equador desafie Washington, conceda o asilo que Assange solita e o mande imediatamente, em segurança, para o Equador.

Nesse caso, muitos funcionários da “justiça” britânica provavelmente respirarão aliviados – literalmente. Há semanas trabalham cobrindo o nariz para sobreviver ao odor fétido da própria rendição ao diktat dos EUA, depois que a Alta Corte de Justiça da Grã-Bretanha rejeitou o argumento de Assange, segundo o qual não poderia ser extraditado para a Suécia.

Embora a “justiça” sueca não tenha conseguido formalizar qualquer acusação contra Assange pela prática de qualquer crime, mesmo assim insistem em que seja extraditado para ser interrogado a propósito de declarações de duas mulheres, que dizem ter sido sexualmente atacadas por Assange. Muitos já viram – em minha opinião, corretamente – que tudo isso não passa de subterfúgio para conseguir que Assange seja entregue aos suecos, para, assim, facilitar a extradição para os EUA, onde enfrentaria acusações mais sérias, por ter publicado informação secreta e altamente embaraçosa para Washington.

Assange  ao ser detido em Londres
Tem havido repetidas notícias de que Assange teria sido objeto de investigação secreta por um tribunal federal nos EUA, que investigaria a divulgação de documentos sigilosos os quais, ao que se supõe, mas sem qualquer confirmação, teriam sido passados a WikiLeaks pelo cabo Bradley Manning. Em mensagem de e-mail vazada em 2011, Fred Burton, um dos vice-presidentes da empresa privada de inteligência Stratfor, informava seus colegas de que “temos uma acusação secreta já formalizada contra Assange”; mas nada disso foi, até agora, confirmado. Mas Manning já enfrenta julgamento em corte marcial, por, como quer a acusação, ter entregue documentos dos EUA a WikiLeaks.

Passar a perna nos britânicos

Interessante, não é? Assange – apenas poucos dias antes de ser extraditado para a Suécia – conseguiu (suponho) tirar a tornozeleira de monitoramento eletrônico, passar sem ser visto pelo cordão de Bobbies que vigiavam a casa de campo onde vivia sob prisão domiciliar, passar por outros Bobbies e pessoal da segurança que houvesse no caminho e entrar em segurança na embaixada do Equador.

Não há dúvidas de que Assange é sujeito esperto. Mas a menos que se o veja como uma espécie de Houdini, tem de haver explicação mais lógica de como atravessou vários pontos de controle policial e entrou no prédio da embaixada, localizado atrás da conhecida Harrods, loja de departamentos, em Londres.

Todos os agentes britânicos de segurança haviam saído para o chá? Ou apenas felizes por o caso Assange – e a pressão de Washington – tomar outro rumo?

Kintto Lucas
Não pode haver dúvidas de que, sim, os britânicos tiveram muitas indicações de que, in extremis, Assange poderia tentar chegar à embaixada do Equador. No final de novembro de 2010, o vice-ministro do Exterior do Equador, Kintto Lucas, ofereceu publicamente residência no Equador a Julian Assange, dizendo que o Equador estava “muito preocupado” ante a informação, revelada por WikiLeaks, segundo a qual diplomatas dos EUA estaria espionando governos amigos.

“Estamos abertos para oferecer-lhe residência no Equador, sem problema algum e incondicionalmente” – disse Lucas.

O presidente Correa interveio imediatamente. Disse que Kintto Lucas falara sem autorização; que não houvera qualquer convite formal a Assange; e que, antes de oferecer-lhe residência no Equador seria preciso proceder à análise formal do pedido, caso Assange pedisse alguma coisa. (Tudo isso, apenas uma semana antes de Assange ser detido, preso e, depois, posto em prisão domiciliar).

Agora, estou pedindo

A embaixada do Equador em Londres, ao anunciar a chegada de Assange, na 3ª-feira à tarde, informou que ele pedira asilo; e acrescentou:

Como signatários da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, que temos o dever de examinar qualquer pedido de asilo que nos chegue, tomamos a providência de encaminhar os documentos que nos foram entregues ao departamento competente em Quito”, capital do Equador. “Enquanto aquele departamento avalia o pedido feito pelo Sr. Assange, o Sr. Assange permanecerá na embaixada, sob a proteção do governo equatoriano.

Embaixada do Equador em Londres
A embaixada acrescentou que o encaminhamento que deu ao pedido de asilo “de modo algum deve ser interpretado como interferência, pelo governo do Equador, nos processos judiciais nem do Reino Unido nem da Suécia”.

É fraseado de contemporização considerado de rigueur nos contatos diplomáticos, enquanto o presidente Correa e assessores decidem como reagir ante o fato consumado de terem Assange já sob custódia do Equador. Em Quito, o ministro das Relações Exteriores do Equador, Ricardo Patino disse a jornalistas que seu país “estuda e analisa o pedido [de asilo]”.

Tal mãe, tal filho

A mãe de Assange não apenas aplaudiu a decisão do filho, de pedir asilo, mas resumiu bem a situação, ao falar com a imprensa:

Christine, mãe de Julian
Espero que o Equador lhe dê asilo e, se não, algum outro país do Terceiro Mundo. Espero que o Terceiro Mundo levante-se e faça o que é moralmente certo, quando o Primeiro Mundo não pode e não fará, porque vive com o focinho enfiado no cocho, subjugado pela ganância dos EUA e da grande finança.

Julian é prisioneiro político, é jornalista, é editor que publicou a verdade sobre corrupção, crimes de guerra, sequestros, chantagem e manipulação. Não há nenhuma acusação formal contra ele e sequer foi interrogado sobre crime que, se você examina os eventos, não tem base alguma. É claro que teria de pedir asilo.

Acrescentou que seu filho é vítima de decisões tomadas por EUA, Grã-Bretanha, Suécia e Austrália no sentido de deixar de lado o devido processo legal.

Muito século 20!

Deixar de lado o devido processo legal? É argumento – colhendo emprestada a expressão do eminente especialista em leis e professor Alberto Gonzales — tão “antigo”, tão “obsoleto”, “tão pré-11/9”! Deixar de lado o devido processo legal tornou-se, depois do 11/9, o “novo paradigma” adotado não só pelo governo Bush, mas também pelo governo Obama.

Assange não tem só pleno direito de buscar asilo: ele também avalia corretamente a situação objetiva e decide certo. Considerem o seguinte: estava a um passo de ser enviado para uma Suécia falsamente neutra, com histórico recente de curvar-se a todas as demandas dos EUA, em todos os casos em que Washington alegou algum tipo de ameaça à segurança dos EUA. Na 3ª-feira, Glenn Greenwald já apresentara um exemplo:

Em dezembro de 2001, a Suécia entregou duas pessoas à CIA a qual, em seguida, entregou as mesmas pessoas ao Egito, para serem torturadas. Decisão do Comitê de Direitos Humanos da ONU condenou a Suécia por violar a lei que proíbe a tortura em todo o mundo, violação que se consumou na entrega daquelas pessoas a um terceiro país (adiante, as duas pessoas vitimadas nesse procedimento processaram o governo sueco e obtiveram substancial indenização) [1]

Quem esteja pensando “Ah, mas isso foi durante o governo Bush, essas coisas já não acontecem”, repense. Em 2010 e 2011, a histeria que cerca a revelação dos crimes e vícios no modo como os EUA atuam no mundo levou várias figuras proeminentes do cenário político norte-americano a “exigir” que Assange fosse classificado como terrorista, que fosse preso e processado como espião. E houve até quem pregasse que fosse assassinado.

O deputado Peter King, Republicano de New York, presidente da Comissão de Segurança Nacional da Câmara de Deputados, exigiu que WikiLeaks fosse declarada organização terrorista e que Assange fosse processado nos termos da Lei de Espionagem de 1917, posição partilhada pela senadora Dianne Feinstein, Democrata da California, presidente da Comissão de Inteligência do Senado, que escreveu, em coluna assinada no Wall Street Journal:

“A divulgação desses documentos causa dano aos nossos interesses nacionais e põe em risco vidas de inocentes. Ele deve ser vigorosamente processado por espionagem”.

Sarah Palin
Outros foram ainda mais longe e exigiram que Assange fosse assassinado, por meios judiciais ou extrajudiciais. Por exemplo, um ex-funcionário canadense, Tom Flanagan, pregou abertamente o assassinato de Assange.

A ex-governadora do Alaska Sarah Palin disse de Assange que seria “agente antiamericano com sangue nas mãos”, caso a ser tratado como se tratam os terroristas da al-Qaeda.

Em postado em Facebook, Palin disse que Assange seria tão jornalista quanto o “editor” da revista da al-Qaeda em inglês, Inspire. E acrescentou:

“Os documentos secretos que ele divulgou revelaram a identidade de mais de 100 contatos afegãos Talibã. Por que não é caçado com a mesma urgência com que caçamos os líderes da al-Qaeda e dos Talibã?”

Tudo isso considerado, ponham-se no lugar de Assange. Se o New York Times noticia, acuradamente, que o presidente Barack Obama considerou “fácil” a decisão de mandar assassinar Anwar al-Awlaki, cidadão norte-americano suspeito de ter participado de operações terroristas contra alvos norte-americanos... como confiar que o ex-professor de Direito Constitucional saberá resistir à pressão política para mandar assassinar... você?

Pode-se descartar qualquer movimento para dronar um prédio no centro de Londres. Mas Assange, muito compreensivelmente, deve temer uma operação clandestina pelos contrapartes britânicos do FBI e da CIA — MI-5 e MI-6 — para eliminá-lo “com preconceito extremo”, como se dizia antigamente na CIA.

Dr. David Kelly
Por melodramático que soe, é preciso não esquecer que faz apenas nove anos que o biólogo do Ministério da Defesa britânico e inspetor de armamentos da ONU, Dr. David Kelly, “foi suicidado”. Sobrevivem até hoje muitas provas (circunstanciais) de que aquele suicídio não foi autoinfligido.

Kelly foi considerado “culpado” por ter distribuído informação acurada e verdadeira sobre a inexistência de “provas” das armas de destruição em massa que haveria, mas jamais houve, no Iraque. Foi convenientemente removido do palco, há quem acredite, pelas próprias mãos. A embaixada do Equador bem fará se contratar provadores britânicos, para provar todo o foie gras, trufas e bolinhos que encomendem na Harrods, vizinha.

Correa na televisão, com Assange

Quatro semanas antes de Assange procurar asilo, ele entrevistou o presidente do Equador, Rafael Correa, no 6º episódio do programa “The World Tomorrow” (programa de entrevistas, assinado por Assange, no canal Russia Today, exibido às 3ª-feiras [2]). Assange perguntou a Correa por que tanto insistira para que WikiLeaks divulgasse todos os telegramas que tinha. Correa respondeu:

“Porque quem nada deve nada teme. Nós nada temos a ocultar. De fato, os [telegramas divulgados por] WikiLeaks nos fortaleceram.” (...) Nós não tememos nada. Que publiquem tudo o que tenham a publicar sobre o governo do Equador. Não se encontrará nada contra nós. E veremos aparecer muitas informações sobre entreguismos, traições, acertos, feitos por muitos supostos opositores da revolução cidadã no Equador…

Correa comentou que quando os telegramas WikiLeaks foram distribuídos para as empresas de mídia no Equador, as empresas optaram por não publicá-los – em parte porque os documentos revelavam muito, também, sobre os próprios veículos e os próprios jornalistas. Lembrou que quando assumiu a presidência, em janeiro de 2007, cinco das sete empresas privadas de comunicação com canais de televisão no Equador eram propriedade de banqueiros. Os banqueiros usavam a máscara do jornalismo, para interferir na política e desestabilizar governos, por medo de perder poder.

Equador e EUA

Rafael Correa
Correa, 49, formado na Bélgica, na Universidade Católica de Louvain e na Universidade de Illinois em Urbana/Champaign (onde viveu por quatro anos e obteve dois títulos, de mestre e de PhD em economia), disse que admira muito o povo norte-americano. Mas o governo dos EUA é outro assunto.

Assange e Correa discutiram a decisão de Correa de expulsar do Equador a embaixadora dos EUA, Heather Hodges, tanto pelo que os telegramas de WikiLeaks revelaram quanto pela “arrogância” da embaixadora; discutiram também a decisão unilateral do presidente do Equador, de ordenar o fechamento da base militar dos EUA que havia em Manta.

Mesmo assim, tem-se a impressão de que Correa ainda tem grandes esperanças de que as coisas possam melhorar no governo Obama. O presidente do Equador comentou uma vez que o que Hugo Chávez dizia de Bush – que é o demônio – não era justa com o demônio. E que o governo de Bush tornara “invisível” a América Latina.

Sobre as relações gerais entre Equador e EUA, Correa disse a Assange que teriam de ser “um quadro de respeito mútuo e soberania.” Essa expectativa de respeito mútuo, sobretudo o respeito que Washington deve à soberania do Equador estará sendo testada nas próximas semanas.

Hillary Clinton
Hillary Clinton já deve estar arrependida de ter gasto tanta energia em sua primeira visita à Suécia como secretária de Estado, no início do mês. Se Assange conseguir escapar às garras suecas e partir para o Equador, Clinton será obrigada a repor Quito em sua agenda de viagens.

Há dois anos, uma visita de Clinton à capital do Equador foi marcada por vastos protestos, mas o presidente Correa revelou-se anfitrião elegante e cortês. Sim, mas isso foi antes de o Equador ser informado dos comentários que a embaixadora Hodges dedicava ao próprio Correa e sua equipe; antes, portanto, de Correa ter despachado a embaixadora de Clinton, de volta para casa, por excesso de “arrogância”.

Correa parece ter desenvolvido alergia aguda a arrogâncias. Clinton, portanto, talvez deva considerar a possibilidade de mandar alguém em seu lugar, no caso de os EUA precisarem persuadir o Equador a entregar Assange às suaves graças da “justiça” norte-americana.


Notas dos tradutores
[1] 19/6/2012, Glenn Greenwald, Salon, em: Assange asks Ecuador for asylum (excerto traduzido ao português na redecastorphoto)
[2] A entrevista (22/5/2012, redecastorphoto) pode ser vista em vídeo, traduzida ao português, em: Assange entrevista No. 6 – “Rafael Correa, presidente do Equador”
[3] Saltei de Banda, a seguir:


Saltei de Banda

Eu já morei na tal da feira moderna
mas saltei de banda
e hoje sou meu próprio patrão
e ninguém me manda

Eu já cansei de enganar a todo mundo
que eu era santo

mas não existe ninguém minha mana
que me acredite tanto

Agente já viu muitos caminhos à nossa frente
você já esteve doente
você também ficou bom
e hoje agente está nesse caminho
mas bem feito para gente

Eu já morei na tal da feira moderna
mas saltei de banda
e hoje sou meu próprio patrão
e ninguém me manda

Eu já cansei de enganar a todo mundo
que eu era santo
mas não existe ninguém minha mana
que me acredite tanto

Agente já viu muitos caminhos à nossa frente
você já esteve doente
você também ficou bom
e hoje agente está nesse caminho
mas bem feito para gente

Você descobre e eu também
que nem tudo no mundo é sonho
e agora eu sei.

Eu já morei na tal da feira moderna
mas saltei de banda
e hoje sou meu próprio patrão
e ninguém me manda

Eu já cansei de enganar a todo mundo
que eu era santo
mas não existe ninguém minha mana
que me acredite tanto.

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