12/11/2013, [*] Pepe Escobar, Asia Times Online – The Roving Eye
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
John Kerry: "Os EUA não são cegos, nem estúpidos" |
PARIS – O secretário de Estado dos EUA
John Kerry declarou, em frase já famosa, que os EUA “não
são cegos” nem “estúpidos” no empenho para assinar um acordo histórico
sobre o programa nuclear iraniano. Então,
sim, o mundo foi informado. Mas Kerry, provavelmente, embora em código, falava
da França.
O fracasso das negociações de Genebra
no final de semana, para um acordo nuclear temporário, teve pelo menos o mérito
de revelar quem realmente está bloqueando o acordo: o eixo do medo e ranger de
dentes – os Likudniks em Israel, a Casa de Saud e o governo François Hollande
na França.
Torrentes de bytes já
detalharam o modo como Israel rotineiramente sequestra a política externa dos
EUA. Eis aqui mais uma demonstração, desenhada, de como funciona o tal de Rabo
Que Balança o Cachorro.
Na 6ª-feira passada, à noite, o
presidente Barack Obama telefonou ao primeiro-ministro de Israel, Bibi
Netanyahu, para pedir-lhe que não detonasse Genebra. Bibi ouviu e,
imediatamente depois, em sequência, telefonou para o primeiro-ministro
britânico David Cameron; para o presidente Vladimir Putin da Rússia; para a
chanceler alemã Angela Merkel; e para o presidente Hollande da França, e pediu
que eles... detonassem Genebra.
Hollande foi o único que obedeceu a
ordem de marcha de Bibi. E, tudo isso, depois que o próprio Kerry ouvira aula
magna de Bibi, na pista do aeroporto Ben Gurion em Telaviv, na 6ª-feira pela
manhã.
Wendy Sherman |
Acelere a fita até o finzinho, domingo
de manhã cedo. Não por acaso, Wendy
Sherman, principal negociadora dos EUA para a questão nuclear iraniana,
empenhada militante dos “Israel em primeiro lugar” e racista e limítrofe, voou de Genebra direto para Israel, para
“tranquilizar” seu verdadeiro líder, Bibi, de que não haveria acordo.
Não é segredo que Bibi e os Likudniks
também mandam um bocado na colina do Capitólio. Além de detonar Genebra, Bibi
pode também encapar mais uma vitória temporária, com o Congresso dos EUA já
pronto para impor ainda mais sanções contra o Irã, anexando-as à Lei de
Autorização da Defesa Nacional [orig. National Defense Authorization Act].
Apresento-lhes Bandar Fabius
No que tenha a ver com o comportamento
francês, é condicionado tanto pelo formidável lobby israelense em Paris
quanto pelo dinheiro muito das petromonarquias do Golfo.
Meyer Habib |
Com certeza ajudou que, segundo o The
Times of Israel, o deputado francês Meyer Habib – que também tem passaporte
israelense, ex-porta-voz oficial do Likud na França e amigão de Bibi – tenha
telefonado ao ministro de Relações Exteriores da França para dizer-lhe que Israel
atacaria instalações nucleares iranianas se o acordo que estava sobre a
mesa fosse assinado.
Podem chamar de “efeito AIPAC”. Habib
é vice-presidente do Conselho Representativo das Instituições Judaicas
Francesas, CRIF – equivalente francês do Comitê de Assuntos
Públicos EUA-Israel. E o ghostwriter que escreve discursos para o
presidente Hollande também é membro do CRIF.
Fabius, grandiloquente e pegajoso
feito Roquefort passado, invocou – e o que mais poderia ser? – “preocupações
com a segurança de Israel” e detonou Genebra. O presidente Hassan Rouhani do
Irã e o ministro de Relações Exteriores, Mohammed Javed Zarif sempre se
preocuparam muito com o risco de serem sabotados pela própria oposição interna,
o Corpo de Guardas Revolucionários Islâmicos, de linha dura. Portanto, a
diretiva No. 1 era que nenhum detalhe do acordo poderia vazar durante as
negociações.
Foi exatamente onde Fabius agiu.
Antes, até, de Kerry pousar em Genebra, Fabius já dizia, por uma rádio
francesa, que Paris não aceitaria um jeu des dupes (“jogo de burla”,
“jogo de enganação”).
Laurent Fabius por Gervais |
O papel de Fabius foi impagavelmente
sintetizado pelo proverbial diplomata ocidental não identificado, que disse
à Reuters que:
(...) os americanos, a União Europeia e os iranianos trabalharam intensamente
durante meses nessa proposta. Isso, agora, não passa de Fabius tentando
intrometer-se no que é importante, já no final das negociações.
Terabytes de comentários pela mídia
dizem que Washington e Paris estão fazendo o jogo do “policial bonzinho x
policial durão” na questão iraniana. Não exatamente: está mais para Galo Gaulês
querendo aparecer.
Hollande estava doido para bombardear
Damasco, quando Obama fugiu da raia, no último minuto, e desistiu do ataque
“limitado”, do Pentágono; Hollande foi deixado lá, ante uma garrafa de Moet
azedo. Nos dois, na Síria e no Líbano, Paris desavergonhadamente faz um jogo
neocolonial de tapas e beijos, enquanto divide o leito com Israel e a Casa de
Saud.
Mas por que mais uma vez dar um tiro
no próprio pé? Paris perdeu muito dinheiro – além de empregos franceses, via a
empresa Peugeot, fabricante de carros – por causa da demência das sanções
contra o Irã.
Bandar bin Sultan por Kerry Waghorn |
Ah, mas sempre há a sedução do chefe
da inteligência saudita príncipe Bandar bin Sultan, codinome Bandar Bush, e das petromonarquias do Golfo. Em
resumo: Bandar Fabius só fez
prestar-se a moleque de recados da Casa de Saud. O preço: contratos militares
gigantes – aviões, navios, sistemas de mísseis – e a possível construção de
usinas nucleares na Arábia Saudita, negócio semelhante ao que a gigante
francesa de energia Areva acertou ano passado com os Emirados Árabes Unidos.
O fantasma de Montaigne deve estar
gemendo; a França já não tem graça. O Irã não tem direito a usinas nucleares,
mas a França constrói e opera várias delas para seus clientes wahhabistas.
O ocidente fazendo servicinhos para
Israel faz sentido; afinal, Israel também pode ser descrita como um
porta-aviões ocidental metido no coração do Oriente Médio árabe. Quanto à
França fazendo servicinhos para os wahhabistas, é só seguir o dinheiro – da
Veolia de construções e usinas de desalinização de água na Arábia Saudita, a
todos aqueles jatos Rafale a serem despachados.
O Qatar, aquele paraíso de patrões do
trabalho escravo presenteado pela FIFA com uma Copa do Mundo, já investiu mais
de US$15 bilhões – e aumentando – na França, de ações da Veolia e do mamute
Total de energia, à empresa Vinci, de construções; à Lagardere, gigante das
comunicações, e ao controle total do Paris Saint Germain de futebol, lar do
novo Rei de Paris, o ícone do futebol Zlatan “Ibracadabra” Ibrahimovic. Para
nem dizer que o Qatar já é proprietário de virtualmente todas as polegadas
quadradas que interessam entre a Madeleine e a Opera, em Paris.
François Hollande por Kerry Waghorn |
Hollande é piada. Essa semana, está na
capa do semanário Courrier International (manchete: “A Arte da Queda”),
com a mídia paneuropeia chamando-o de “incoerente”, “paralisado” e
“incompetente” (para ficar só nos epítetos generosos). Na edição de
fim-de-semana do Le Figaro, do establishment, estava sendo
destruído, por conta do mais recente rebaixamento da avaliação do crédito da França,
pela Standard & Poor’s.
Rei Sarko 1º – codinome ex-presidente
Nicolas Sarkozy – deve estar nas nuvens; Hollande é hoje o presidente mais
impopular de toda a história da França. Paris continua ótima – mas mais para
hordas de turistas emergidos dos mercados emergentes, não para hordas de
parisienses desempregados.
Chamem Bandar Fabius para nos salvar! O dinheiro das petromonarquias do
Golfo é a salvação! Em tese, o show de “independência” em Genebra deve
traduzir-se em bilhões de euros em contratos e investimentos. Também ajuda que
Hollande, “o incompetente”, fará visita oficial a Israel nos próximos dias.
O tal pivô na direção da Pérsia
Alain Gresh |
Desistam de encontrar razões para
aquele “show de independência” na grande mídia francesa, exceto no blog
de Alain Gresh do Le Monde Diplomatique.
As explanações são absolutamente
patéticas. A França “está sozinha contra todos”; mostrou “responsabilidade”;
“reafirmou sua independência”. E, claro, a culpa é toda de Kerry que, dizem,
“apareceu com um texto que ninguém vira antes”. Cada figurante movimentou-se
para apresentar Fabius (dos “Israel em primeiro lugar”) como salvador. Mas o
Eliseu fez saber que Fabius apenas obedecia ordens de Hollande – as quais, em
tese, significaram renegociar “os pontos fracos” do acordo. Na essência, é
Hollande, o “incompetente”, tentando mostrar a Obama, que tem colhões.
Paris tenta fazer crer que o problema
do acordo teria a ver com o reator de água pesada de Teerã, em Arak, e com os
seus estoques de urânio médio-enriquecido. Diplomatas de EUA e Irã trabalharam
duro para chegar a um acordo: Teerã continuaria a construção do reator durante
os seis meses de vigência do acordo provisório, mas só faria testes com água
comum e falsos bastões de combustível.
Kerry estava trabalhando nisso, até
que Fabius intrometeu-se fantasiado de pavão, numa longa sessão que avançou
pela madrugada de sábado. Foi o que levou o ministro Zarif do Irã a observar,
com ironia, que o P5+1 (EUA, Grã-Bretanha, França, Rússia e China + a Alemanha)
precisava negociar uns com os outros, antes de negociar com o Irã.
John Kerry |
A confusão dentro do P5+1 pode
comprometer gravemente a próxima rodada de negociações em Genebra. E Kerry, não
se sabe se percebeu ou não, deu jeito de mudar a própria narrativa, para algo
ainda mais teatro do absurdo: agora
se pôs a culpar o Irã pelo não acordo. É como se, depois de ter lido os jornais
franceses, tivesse decidido pagar pelos próprios pecados.
Pode-se argumentar que o Irã provou à
“comunidade internacional”, a outra, a real, de carne e osso, que deseja um acordo
e está disposto a negociar. Mas há ainda as sanções a serem aprovadas pelo
Congresso dos EUA – sabotagem de facto, norte-americana, interna. Mas
são sanções contra terceiros, pelas quais outros países são punidos pelos EUA,
se comerciarem com o Irã. Ninguém as levará a sério, a começar pelas potências
asiáticas, Turquia e Rússia.
Por hora, nenhum acordo pode até
parecer melhor que um mau acordo. Pode acontecer na próxima reunião em Genebra,
dia 22/11. O mais provável é que aconteça um acordo provisório completo, dentro
de poucos meses. O governo Obama deseja um acordo. E a França, apesar da pose,
é irrelevante.
Pior. Paris está sendo “cega” e
“estúpida” – aproveitando as palavras de Kerry – por afastar as empresas
francesas, no setor de energia, energia nuclear e manufatura, das
possibilidades fabulosas que viriam com a normalização das relações entre o Irã
e o ocidente. Se a gangue de Hollande espera ser “salva” pelos wahhabistas,
deve ter tomado mescal.
Talvez leve anos – e levará. Mas
Washington inevitavelmente encontrará algum tipo de acomodação com o Irã. As
empresas norte-americanas querem isso. O ocidente, desesperadamente carente de
energia, deseja isso. Até o complexo da hiperpotência norte-americana quer isso
– por que lhe abrirá forte deriva rumo ao sudoeste da Ásia, e dali adiante. O
eixo do medo e do ranger de dentes de Israel, Casa de Saud e França pode
fazer-se de estraga prazeres – mas só por pouco tempo. “Pivô para a Ásia”? Só
depois de um pivô para a Pérsia.
[*] Pepe Escobar (1954) é jornalista,
brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em
inglês. Mantém coluna (The Roving Eye) no Asia Times Online; é
também analista político do blog Tom Dispatch e correspondente das redes
Russia Today, The Real News Network Televison e Al-Jazeera.
Seus artigos podem ser lidos, traduzidos para o português pelo Coletivo de
Tradutores da Vila Vudu e João Aroldo, no blog redecastorphoto.
Livros:
- Globalistan: How the Globalized World is Dissolving into Liquid War, Nimble Books, 2007.
- Red Zone Blues: A Snapshot of Baghdad During the Surge, Nimble Books, 2007.
- Obama Does Globalistan, Nimble Books, 2009.
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