sábado, 9 de novembro de 2013

Síria – Comentários do período de 18/10 até 1/11/2013

8/11/2013 – Conflicts Forum’s
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

A narrativa que favorece e super prestigia o jornalismo e os jornalistas só faz, de fato, tornar invisíveis as mudanças políticas e qualitativamente significativas que afetam ambos, o governo e a sociedade síria, em sentido muito mais amplo que o superficial “sentido” jornalístico.

"Rebelde" da OTAN se afasta de casa destruída após ataque 

Quem conheça a Síria e tenha visitado o país ao longo dos anos pode ver a notável transformação qualitativa em andamento e já adiantada no exército sírio e no aparelho de segurança. O exército sírio já não é a entidade desmotivada, sem vigor, interesse ou motivação que foi; hoje, é autoconfiante e discretamente eficiente. Acabou-se a deferência aos ricos e poderosos que dirigem carros e, também, aos que passam em carros oficiais.

Nos postos de controle, já ninguém é liberado com acenos sorridentes, sem examinar carros e passageiros. A presença do exército não é acintosamente visível, mas está “lá”, em todos os lugares, onde tem de estar, eficiente e insistente, mas eficientemente cortês. Os vários anéis de segurança em torno da cidade provocam pesados engarrafamentos, mas quem visita Damasco vê cidade limpa, com prédios e instalações modernas e que está funcionando efetiva e eficientemente – embora não, é claro, normalmente.

Nada disso deve implicar ou sugerir que não haja tensão. A tensão está ali. Visivelmente os preços estão altíssimos, e, embora muita gente tenha conseguido de um modo ou de outro viver “normalmente” apesar do conflito, sempre há apreensão e medo por causa da família, amigos, parentes que vivem em outros pontos do país.

A questão aqui é que grande parte da mídia ocidental assume a narrativa do valente “correspondente de guerra” – em luta contra ambiente hostil – em zona instável de conflito, e de uma rede de ativistas clandestinos que trabalham furtivamente para oferecer os serviços básicos, como ajuda médica, ao povo. É verdade que há as duas coisas, o conflito e os ativistas, mas essa não é a situação da maior parte da Síria.

Mais importante: a narrativa que favorece e super prestigia o jornalismo e os jornalistas só faz, de fato, tornar invisíveis as mudanças política e qualitativamente significativas que afetam ambos, o governo e a sociedade síria em sentido muito mais amplo que o superficial “sentido” jornalístico.

Situação geral da guerra na Síria em final de outubro/2013
Ao longo do último ano, a Síria transformou-se muito. Às vezes, a crise causa a fragmentação de indivíduos ou da própria sociedade, a vontade enfraquece ou dilui-se. Mas também acontece de crises severas levarem uma comunidade ou uma sociedade a conquistar nova capacidade de resistência e forte, profunda autoconfiança. Pode acontecer de ser transformação efêmera, mas essa é a Síria que se vê hoje – e essa transformação tem implicações profundas.

Esse novo ethos está sendo reforçado também por nova dinâmica. O governo sente, tangível, que a política internacional tende agora a seu favor (inclusive os EUA): os serviços europeus de inteligência (Alemanha, França e Grã-Bretanha) retomaram suas relações com Damasco. Outros estados europeus discutem, ainda silenciosamente, a reabertura de suas embaixadas; alguns estados do Golfo já manifestam aos respectivos contatos sírios o desencanto contra as políticas do Conselho de Cooperação do Golfo para a Síria (especialmente contra a política dos sauditas) e a maioria dos estados regionais parece já favorecer uma solução política. Privadamente, os egípcios indicam que já veem delinearem-se inúmeros interesses partilhados com a Síria, em maior número com os sírios que com seus novos “patrocinadores” sauditas, mas a situação política no Egito não permite nenhuma manifestação clara nessa direção. Mas em Damasco já não há qualquer dúvida de que a maré do isolamento diplomático dos sírios afinal virou.

Tudo isso deu novo rumo ao governo. O governo sírio já não precisa manter-se tão integralmente preocupado com a guerra – e pode dedicar-se cada ver mais às exigências do processo político e às mudanças que terão de ser feitas na sociedade síria depois do conflito. O debate está em pleno curso, e não só dentro do próprio governo – o partido Baath abriu-se para séria discussão sobre o futuro da Síria, discussão que envolve outras correntes políticas e outros interesses (semana passada, houve rodada de discussões muito francas), e o mesmo se observa em toda a sociedade.

Hoje já se sabe que o ataque dos "rebeldes" com armas químicas matou essas pessoas 
Fora da Síria, como já se previa, essa “transição” toma os rumos que o mundo exterior “espera” da Síria. A transição é claramente necessária – acontecerá e, como já se disse aqui, já está acontecendo – e, obviamente, não será transição simples. Mas, externamente, adotar a “transição” exigiria que o governo sírio ignorasse o vasto levante que toma a região – com os grupos “decidindo” sobre a partilha de poder como se qualquer partilhamento fosse uma espécie de panaceia universal para todos os países em todos os tempos.

De fato, não há nenhuma “grande ideia” que reúna visões de futuro para TODOS os estados da região: modelo turco, modelo do Golfo, modelo egípcio, modelo da Fraternidade Muçulmana, modelo ocidental liberal de mercado – todos esses são modelos totalmente ou parcialmente já desacreditados. Nesse contexto nem cabe esperar que a Síria, só ela, venha a encontrar ideias simples para conduzir a sociedade nesses tempos turbulentos. Partilha do poder talvez possa ser parte da resposta, mas seja na Síria, no Egito ou na Tunísia, a crise (e seus desafios) são mais complexos e graves que o clamor simplista (ocidental) a favor de governos de unidade nacional.

Por trás dessa virada da maré diplomática está – sem dúvida alguma – a séria avaliação e pleno reconhecimento, pelos governos ocidentais, sobre a realidade das armas químicas. Aquela avaliação também passou por um metamorfose silenciosa. Hoje já se sabe, depois das inspeções técnicas, que a Síria não tinha arsenais de gás de efeito neurológico.

A Síria tinha estoques dos produtos químicos (os quais, como tais, são comuns e estáveis) a partir de cuja mistura se obtém o gás de efeito neurológico. Enquanto esses produtos precursores sejam adequadamente armazenados, sem contato entre eles, são praticamente inócuos – razão pela qual a destruição dos estoques químicos sírios está evoluindo tão rapidamente. Só há perigo quando esses produtos químicos precursores são misturados, tornam-se altamente voláteis e deterioram-se também muito rapidamente – se não são usados imediatamente depois de produzidos. Normalmente, mesmo nas ogivas de lançamento, os precursores são mantidos hermeticamente separados, e só são “misturados” quando se quebram os respectivos invólucros, no instante em que a ogiva disparada colide contra o solo.

Sabemos, desde a guerra de 2001 que o presidente Assad jamais usou armas químicas, para as quais seu pai preparou o arsenal nacional, como proteção contra a nuclearização do arsenal de Israel: os estoques químicos da Síria são “químicos”, mas não são “armas químicas”.

Mesmo assim, o exército sírio manteve dedicadas unidades de armas químicas e, como qualquer exército, manteve-se em ativo treinamento, simulando combates – mas sem jamais misturar efetivamente os precursores. Isso implica que o exército sírio jamais, em tempo algum, teve qualquer “arma química”.

Por causa da alta volatilidade dos precursores depois de misturados, os governos que mantêm arsenais químicos misturam estabilizadores químicos aos precursores, para proteger seus próprios soldados, sempre expostos a acidentes.

Arma química atualmente fabricada pelos EUA provavelmente usados pelos "rebeldes" e a maneira de destruí-la usada pela Organization for the Prohibition of Chemical Weapons (OPCW)
Hoje já se sabe com certeza praticamente absoluta que o gás sarín que foi liberado na Síria, em março e em agosto, tinha a mesma “impressão digital” química, mas não havia ali nenhum traço dos inibidores que sempre há em estoques químicos militares, quer dizer, de propriedade de exércitos regulares ou seja, de estados. Dito de outro modo: não se encontrou naquele gás o “DNA” que o ligaria a estoques do exército sírio.

Os russos apresentaram à ONU a prova empírica relativa a cada um daqueles dois episódios (a ONU ainda não publicou esses relatórios russos), a qual, para especialistas, provaria que os dois atentados “químicos” foram montados pela oposição, provavelmente com intuito de provocação deliberada. Além disso, sabe-se que a oposição e alguns estados regionais esperavam “grandes desenvolvimentos” para imediatamente antes do atentado de 21/8: fontes regionais e internacionais apontam o envolvimento do príncipe Bandar no atentado com gás sarín; e lembram que Erdogan dera sinais claros de saber que um “grande desenvolvimento” estava para acontecer na Síria (como disseram funcionários do governo turco a figuras da oposição em Istambul, no início de agosto).

Houve governos europeus cúmplices nesse caso, ou eles realmente acreditaram que o presidente Assad planejava usar armas químicas contra o próprio povo? Não se sabe claramente quem sabia o quê – e em que nível – mas pode-se supor que exercícios de vigilância feitos por EUA e Israel sobre as unidades de armas químicas sírias tenham sido “interpretados”, de modo a sugerir que as forças de segurança sírias teriam “a intenção” de usar aquelas armas químicas contra a oposição; de fato, a oposição síria foi várias vezes “alertada” sobre esse risco.

Locais de ataques químicos dos "rebeldes" em 2013
Assim, quando aconteceram os fatos do dia 21/8, o terreno estava preparado para que algumas figuras políticas logo chegassem à conclusão de que o exército sírio teria sido o agente daquele ataque – exatamente como a  “interpretação” das informações de segurança já vinha sugerindo, repetidamente, que poderia acontecer. Já há notícias de tensões dentro da comunidade de inteligência dos EUA motivadas pelo gerenciamento, que muitos consideram insatisfatório, da inteligência sobre armas químicas na Síria, grande parte da qual é fornecida por Israel. Há notícias também de autodemissões dentro da CIA, motivadas por essas tensões.

À medida que se vai firmando a convicção de que o ocidente esteve muito perto de uma guerra gerada por mentiras e premissas falsas (mais uma vez), vemos muitos governos começarem a mudar as avaliações a partir das quais trabalhavam, tanto o que diziam do governo sírio quanto o que diziam da oposição síria: a cada dia mais aumentam as desconfianças de que a oposição não é o que diz ser, e surgem complexas e graves questões sobre as políticas de seus patrocinadores. Vê-se também, simultaneamente, uma revisão no modo como o presidente Assad é visto. Prova disso é que os europeus estão reiniciando a cooperação de inteligência com Damasco, ao mesmo tempo que os interesses políticos dos EUA dão sinais de se afastarem do território sírio. Mas há sinais de que o surgimento de grupos jihadistas da al-Qaeda está voltando a ser a preocupação básica da segurança dos EUA (expondo assim o objetivo-chave da “mudança de regime” na Síria). De fato, a política dos EUA parece ser não saber o que fazer da Síria ou com a Síria.

Especialistas na região veem, como corolário dessa política de “não-política” dos EUA, que os EUA estão abrindo espaços para que a Rússia assuma a função de resolver o conflito na Síria – que seria uma carga que a Rússia deseja assumir (mas não os EUA). Associada a essa noção, parece estar a impressão de que a Rússia também pode ter função semelhante – e também útil aos EUA – de construir solução também para a questão nuclear iraniana. Em vários sentidos, pode ser excelente para os EUA um bipolarismo partilhado com a Rússia em partes definidas do Oriente Médio.

Mike Morrell, Número 2 da CIA - demissionário
Essa política de postura “atenuada” dos EUA faz muito sentido: ao limitar o próprio foco a duas principais questões – as negociações com o Irã e o processo de paz Israel-Palestinos – o presidente Obama pode levar os Democratas para as eleições para o Congresso (“eleições de meio de mandato”), sempre repetindo que, nas três áreas primárias, seu governo contribuiu para manter Israel “segura” (essa parece ser a principal preocupação em toda a política externa dos EUA, para efeito nacional interno, agora que o projeto de “construir nações” no Oriente Médico já está sendo visto como “filme ruim” pelo público norte-americano).

Primeiro, na questão das “armas químicas” sírias – a grande “ameaça” contra Israel – as tais “armas” foram destruídas; além disso, o Irã esta(ria) sendo “obrigado” a “desistir” de qualquer projeto de construir armas atômicas; e os palestinos teriam sido arrastados para mais uma negociação de paz com Israel (cujo eventual fracasso sempre será mais claramente culpa de Israel, do que do presidente dos EUA). É possível que, nessa recontextualização dos interesses dos EUA, já se veja surgir uma nova plataforma, com o presidente Assad já apresentado como possível aliado na causa comum de derrotar o jihadismo na região. Essa afinal é a lógica que já rege o reinício das operações conjuntas entre a inteligência ocidental e o governo sírio.

Laktar Brahimi
Contrastando com esse quadro da metamorfose política na Síria há o único aspecto que, até agora, não mudou: a Arábia Saudita – até agora – só fez escalar suas ações no Iraque, Líbano e Síria, onde milhares de jihadistas de outras nacionalidades continuam a entrar nos combates. Não surpreende portanto que o presidente Assad tenha dado tal destaque ao encontro que terá essa semana com Laktar Brahimi, sobre a necessidade de cortar o fornecimento de armas paras esses grupos, condição inafastável, para que o processo político possa avançar.

Se prosseguir a escalada saudita, fica correspondentemente cada vez mais distante a possibilidade de que aconteça algum tipo de Genebra-2. Além do mais, ainda não há oposição síria doméstica, com a qual seja possível (ou faça algum sentido) negociar. Há figuras domésticas com as quais o governo pode conversar – e já está conversando – mas são indivíduos sem real organização, eleitorado ou influência na Síria. Podem expressar e expressam seus pontos de vista, mas nada disso implica em construir alguma base para nova abordagem para a Síria.

A realidade é que terá de haver conversações regionais prévias e prévio entendimento saudita-iraniano, para que qualquer acordo ‘de cúpula’ entre EUA e Rússia venha a ter alguma possibilidade de ser efetivo. Nessa direção, a oposição cada dia mais fragmentada praticamente nada acrescenta: terão de seguir o pacto regional que surja, se surgir.

Todos os que estão engajados no processo sírio estão portanto à espera, para saber se a Arábia Saudita manterá o curso atual, ou se mudará de direção. Alguns veem possibilidades de mudanças (simplesmente porque as atuais políticas sauditas são muito evidentemente prejudiciais para a própria Arábia Saudita).

Arabia Saudita fornece armamento aos "rebeldes" na Síria
Mas, simultaneamente, todos sabem do vácuo de liderança política no reino e do medo profundo na Casa de Saud, de que a sua tão ambicionada liderança do mundo islâmico esteja escapando-lhe entre os dedos, deixando os sauditas só com uma muito rala e precária legitimidade, por governarem as cidades santas de Medina e Mecca. E não é provável que qualquer nova possível direção saudita apareça a tempo, para uma Conferência Genebra-2 em novembro.




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