Publicado em 06/11/2013 por Urariano Motta [*]
Recife (PE) - O Jornal
do Commercio, do Recife, nos últimos dias arrancou do sono o jornalismo
impresso do Brasil. Quem lê a reportagem “No
Recife, infância perdida na lama e no lixo” não sabe o que mais se
destaca, se o texto de Wagner Sarmento e Marina Borges, ou se as fotos de Diego
Nigro. As imagens de fotógrafo a esta altura correm o mundo, que se espanta
pela composição da cena: uma cabeça de menino mergulhado no lixo e na lama de
tal forma, que se torna ele próprio lixo também.
Escreveram os
repórteres:
Eles nadam onde nem os peixes se atrevem. De longe, suas cabeças
se confundem com os entulhos. Pela falta de quase tudo na terra, mergulham no
rio de lixo atrás da sobrevivência. Lá sim tem quase tudo: latinhas, garrafas,
papelão, móveis velhos, restos de comida, moscas, animais mortos. Menos
dignidade. Lá, no Canal do Arruda, Zona Norte do Recife, o absurdo é rotina....
O trio de crianças se acotovelava entre dejetos mil para catar
latas de alumínio e garantir o alimento de duas famílias com, ao todo, 18 pessoas.
Nadava em meio a tudo que a cidade vomita. Paulinho, o menor e mais astuto
dentro d’água, tapava a boca com veemência. Tinha noção exata do risco que
corria. Ainda não sabe ler, mas conhece da vida o suficiente para não deixar
entrar uma gota sequer daquela lama de cheiro insuportável e chamariz de
doenças. Febre e diarreia são constantes.
O escândalo,
o falso espanto que causa a reportagem, é na verdade a descoberta desta coisa
comum, a miséria de meninos que sobrevivem entre o descaso e a morte. Isso é
tão onipresente que não vemos.
A
transformação da pessoa – perdão, do menino, que há quem julgue não ser uma
pessoa -, a mudança de alguém em coisa, e o pior tipo de coisa, a sem valor,
descartável, é tão secular que virou natural, como se fossem restos de plástico
ao lado dos quais nós passamos imersos em nossas vidas, que achamos ser a mais
digna da paisagem. A vida, este bem nosso a que outros não têm o direito.
Por que
deitar os nossos olhos sobre o que não é gente?
Sobre os
meninos do Recife eu já havia notado que as ruas, as avenidas onde eles dormem,
jazem, têm nomes poéticos, belos: da Aurora, do Sol, da Boa Vista. Mas essa
poesia não lhes cola na pele, ou melhor, neles se cola uma poesia invisível,
até porque ninguém mesmo os vê. Eles são à semelhança de ratos pela madrugada,
porque com ratos se confundem ao sair das cavernas e cloacas da cidade no
escuro da noite. Então eles ficam todos negros, na pele ou na camuflagem dos
animais que correm pelo asfalto da avenida.
Quando em
grupos, aos bandos, ainda assim ninguém os vê. Ou melhor, às vezes, sim, quando
rondam como símios as bolsas e os relógios dos adultos.
Veem-se sem
serem vistos, assim como vemos e evitamos no solo um buraco, um obstáculo ou
grandes montes de merda. As pessoas fazem a volta e tratam de assuntos mais
sérios. Todos estamos já acostumados àqueles figurantes, no cenário.
Os meninos
nas ruas são personagens que nem falam, porque estão sempre em porre de sonho,
delirantes, com a voz trôpega, plenos do sonho que a cola dá. De repente,
alguns deles, os mais sóbrios, os que podem, saltam para a traseira de um
ônibus. Então os meninos se transformam em morcegos, à beira da morte nos
testes que o motorista faz, ao frear e acelerar e a fazer voltas velozes com os
ônibus, para ver se os morcegos se estendem no chão. Às vezes os motoristas
conseguem.
Na foto do
Jornal do Commercio, procura-se no canal do Arruda uma criança no meio do lixo
espesso na água suja. Onde está Wally? Ninguém vê uma cabecinha negra perdida
no lixo e podridão do rio. Ou do canal, que no Recife é um braço do rio.
Se o
colunista fosse poeta, poderia compor um poema com o nome Os Meninos–Urubus. Ou
meninos-ratos. Ou meninos-lixo, simplesmente. Meninos-lixo? Não. Lixo Tudo e
Igual, pois uma bola escura à semelhança de cabeça flutua entre plásticos.
Para que
tentar a poesia que escapa ao colunista? João Cabral de Melo Neto já expressou
como ninguém o encontro de lama e rio, de resistência do homem que procurar
sair do que o mata no Capibaribe.
Com as
devidas adaptações, porque o menino da foto ainda não é o homem do poema de
João Cabral, dele podemos dizer nesta livre interpretação de O Cão sem Plumas:
Aquele canal jamais se abre aos peixes,
ao brilho, à inquietação de faca que há nos peixes.
Jamais se abre em peixes.
Abre-se em flores pobres e negras como negros.
Abre-se numa flora suja e mais mendiga
como são os mendigos negros.
Abre-se em mangues de folhas duras e crespos como um negro.
No Canal do Arruda difícil é saber onde começa o canal
onde a lama começa do canal
onde a terra começa da lama;
onde o novo, onde a pele começa da lama;
onde começa o novo homem daquele menino.
ao brilho, à inquietação de faca que há nos peixes.
Jamais se abre em peixes.
Abre-se em flores pobres e negras como negros.
Abre-se numa flora suja e mais mendiga
como são os mendigos negros.
Abre-se em mangues de folhas duras e crespos como um negro.
No Canal do Arruda difícil é saber onde começa o canal
onde a lama começa do canal
onde a terra começa da lama;
onde o novo, onde a pele começa da lama;
onde começa o novo homem daquele menino.
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Urariano Motta [*] é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife.
Escritor e jornalista; publicou contos em
Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura.
Atualmente é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da
Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam
seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia
Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e
Os corações futuristas(Recife, Bagaço, 1997). Este ano lançou o romance O filho renegado de
Deus (Recife-Bertrand-Brasil, 2013).
Enviado por Direto da Redação
Texto magnífico Urariano! Como tudo que você escreve! Orgulho de ser sua amiga e de ser recifense como você.
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