18/9/2014, Conflicts Forum, Comentário semanal, 5−12/9/2014
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
- Bravo! Agora vamos surrar o touro! Seguramente ele chifrará o urso!! |
O “ordenamento” do “não Ocidente” está passando por mudança gigantesca. Apesar de esse novo padrão ainda não estar plenamente cristalizado, algumas de suas características emergentes já se vão destacando e apontam para consequências importantes, particularmente para o futuro da Europa; mas também, no prazo mais longo, dos EUA. E a atual conjuntura de eventos parece que, quase com certeza, está envolvendo a Europa na maré de águas turvas, e que sobem rapidamente, de sua própria situação doméstica – ao mesmo tempo em que se deixa empurrar para perigosa escalada contra Moscou, e para uma aventura no Oriente Médio que com certeza resultará em problemas crescentes, no melhor dos casos; e em virtual desintegração da região, no pior. A Europa está pondo em risco o seu próprio “projeto”.
Dmitri Trenin |
Dmitri Trenin, de Carnegie Moscow escreveu:
Um quarto de século de esforços da Rússia, para encontrar lugar aceitável para ela no sistema ocidental liderado pelos EUA terminou num amargo desapontamento.
Não só esses esforços (inclusive a iniciativa russa para alcançar o acordo com os EUA que pôs fim à Guerra Fria) terminaram numa sensação de amargura e sentimentos de frustração, mas, também, alteraram um equilíbrio político chave. A corrente atlanticista [1] na Rússia foi derrotada, e tornou-se impossível deter a dinâmica da re-soberanização. [2]
O que mais chama a atenção é que os quase igualmente empenhados e longos esforços do Irã, para alcançar um modus vivendi com os EUA no que tenha a ver com o lugar do Irã na ordem do Oriente Médio, também já estão azedando. Há sentimento palpável, amplamente disseminado no Irã agora, de que as (prorrogadas) conversações no Grupo P5+1 não levarão ao fim das sanções ocidentais.
Num indicador chave da significação dessa mudança na consciência política no Irã, os Reformistas Iranianos sofreram duro revés numa importante eleição para a presidência do Conselho Municipal de Teerã (posto mais significativo do que possa parecer). Em resumo, a visão dos Atlanticistas Iranianos (os reformistas) de que conseguiriam alcançar acomodação aceitável com a ordem ocidental – como a visão dos reformistas russos – fracassou e perdeu espaço político. O presidente Rouhani está sentindo que é necessário que ele se reposicione politicamente, para evitar dano colateral. E os reformistas terão também de corrigir a própria rota e mudar de postura.
Conforme um modo de ver, esses eventos não estariam correlacionados – seriam simplesmente coincidentes, resultados de “causas” diferentes. Mas para o pensamento oriental, quando dois eventos, que exibam qualidade muito similar, de repente acontecem ao mesmo tempo, é preciso deixar de considerar só alguma “causalidade”; e tem-se de considerar também um significado e uma “direcionalidade” mais gerais, que podem, sim, estar-se manifestando naqueles eventos.
Guerra de informação contra Vladimir Putin |
No fétido ambiente atual de guerra-de-informação contra o presidente Putin, muitos no ocidente podem estar assumindo (erradamente) que o presidente russo seja simplesmente “antiocidental”. Não é bem assim. Putin, como muitos russos de sua geração, acreditou um dia na tese de Andropov, de que as elites dos EUA e Europa convergiriam (mas sem se mesclar) suficientemente, para chegarem a tratar-se, uma a outra, com mútua consideração. Mas Putin jamais foi Atlanticista “puro”; de fato, sempre esteve no meio (entre os atlanticistas e os que favorecem a re-soberanização – e por esse “caminho do meio” é que Putin chegou ao poder).
Mas agora, com os atlanticistas completamente eclipsados, a presidência de Putin, como um de seus conselheiros observou, será definida, de fato, nem tanto pelo modo como o presidente conduzir a crise da Ucrânia, mas, muito mais, pela habilidade que demonstre para articular e definir essa “direcionalidade” – e para articular um novo conceito para a nação russa.
De fato, essa “direcionalidade” já tem andado bem à vista – de um ou de outro modo – por cerca de 15 anos, e pode ser rastreada, hoje, até a crítica que fizeram o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orban e outros, contra a “democracia liberal-de-mercado”. Ou, para dizer com mais precisão, contra a democracia baseada num “fundamentalismo de mercado” que reduziu a política a pouco além de tecnocratas tornando os mercados cada vez mais “efetivos”, e com a política externa considerada como, na prática, mais um mercado – um mercado em que a “moeda” é poder internacional, em vez de dinheiro.
Orban argumentou que a democracia liberal-de-mercado fracassou, porque não protegeu devidamente a propriedade coletiva (“os comuns” [orig. the commons]), carregou o estado com dívidas impagáveis e, mais importante, porque comprovou que a promessa liberal de prosperidade para todos não passa, afinal, de fantasia. Orban e seus aliados procuraram definir uma alternativa que protegesse melhor os próprios cidadãos. Os críticos “detonaram” essa crítica dos valores liberais ocidentais, taxando-a de “democracia nada liberal” e retorno ao autoritarismo.
Viktor Orban - Primeiro Ministro da Hungria |
Como corrigir esses fracassos do liberalismo ocidental tem sido até agora discussão de certo modo, embora não inteiramente, hipotética; mas a crise da Ucrânia passou de repente a exigir respostas para essa importante questão – e não só “em tese”, mas respostas a serem diretamente postas em prática. Para o mesmo Trenin:
Essencialmente, o Kremlin [agora] vê o futuro da Rússia como separado do resto da Europa. A proposta [de Putin] para uma Europa Expandida, que se estenderia de Lisboa a Vladivostok, recebida com frieza por tantos europeus, foi finalmente retirada da mesa pelo próprio autor. (...) A União Europeia decepcionou amargamente os russos duas vezes, nos últimos seis meses.
A Rússia está se [auto]integrando ao “não Ocidente”.
Mas o que mais chocou a liderança russa foram a insistência obcecada dos EUA em usar sua “bomba de nêutrons” financeira (excluir a Rússia do sistema financeiro global), e a rapidez com que a Alemanha dispôs-se a apoiar as sanções. Isso levou os russos a empreender uma re-visão, um “re-pensar”, pelos fundamentos, o modo como o estado russo tinha de agir para se proteger.
Em primeiro lugar, fez surgir duas principais considerações: como recuperar alguma soberania e autonomia reais para a Rússia (daí a ênfase numa aliança com a China, país que, pela avaliação dos russos, conservou a própria soberania; além de uma abertura para esses dois aliados que consideram desengajar-se, quando, o quanto e se for necessário, do sistema financeiro do dólar, criando um sistema alternativo de compensações); e gerando maior autoconfiança econômica.
Xi Jinping e Vladimir Putin assinam "negócio do século" (gás) de US$ 400 bilhões (maio/2014) |
Essas foram as respostas práticas, mas, além dessas, a liderança russa está considerando meios para consolidar o renascido patriotismo (despertado pela questão ucraniana) mediante um etos “não liberal” – para que sirva como a nova base para o nacionalismo russo. Importante figura da política russa descreveu, em conversa com Conflicts Fórum, a forte convicção na Rússia de que a nova ordem mundial que se vai desdobrando só poderá ser modelada pelos que tenham conseguido regenerar a vitalidade do próprio povo – e tenham recuperado a plena soberania nacional.
Na Rússia, esse “novo nacionalismo” está tomando forma mediante uma recuperação de valores tradicionais (dentre os quais a religiosidade e a espiritualidade). Já não se baseia portanto só no modo de pensar puramente secular: considera o papel da Igreja Ortodoxa na geração de valores morais baseados na família tradicional e na comunidade “de vida” – especialmente no contexto de coexistência pacífica entre vários grupos étnicos por todo o país. Compreende também a reafirmação do contrato social, re-empoderado suficientemente para preencher sua obrigação básica, de garantir proteção aos próprios cidadãos. Esse novo conceito do Estado incluiria proteger valores russos centrais contra aspectos da zeitgeistculturalmente intervencionista neoliberal – e protegê-los também contra as consequências do fundamentalismo de mercado. Exige também que o Estado seja suficientemente forte para proteger-se contra as vicissitudes da ordem global dominada pelo Ocidente (que inclui as infoguerras).
Nem chega a surpreender que depois da longa era de revoluções “coloridas” e iniciativas-golpe para “mudança de regime”, todo o planeta, em vários pontos do mundo, esteja buscado um “estado forte”, capaz de resistir contra tais “incursões”.
A questão aqui é que, se se tratar de, muito frouxamente, trocar os “atlanticistas” reformistas e os “principistas” iranianos por russos que defendem a re-soberanização; e trocar a Igreja Ortodoxa Russa pelo Marjahiyya (fontes da educação moral, no Islã), não fará muita diferença.
BRICS - O "não ocidente" |
O mesmo se pode dizer de muitos no “não ocidente”, inclusive China e Índia. Em resumo, estamos vendo muita gente no “não ocidente” que se afasta deliberadamente do liberalismo ocidental: que “desistiu” dele. Aquele modelo já não é, definitivamente, o modelo de governança que preferem, nem ele reflete os princípios pelos quais muita gente crê que o mundo deva ser ordenado.
Embora a crise na Ucrânia e a já evanescente possibilidade de acordo entre P5+1 e Irã, possam ter tido efeito de catalisadores parciais para a emergência de um bloco “não ocidental”, a principal força motriz está sendo, sem sombra de dúvida, a ostensiva manipulação, pelos EUA, de todo o sistema financeiro global, com vistas a alcançar os interesses financeiros e objetivos políticos dos EUA. Isso, porque, depois da crise de 2008 – e da expansão sem precedentes da base monetária que se seguiu àquela crise – as bolhas que se criaram e a concomitante liquefação da riqueza das pessoas comuns passaram a ser a própria condição sine qua non para manter o próprio sistema financeiro.
A combinação envenenada do:
(a) uso do sistema monetário global como ferramenta devastadora de coerção política, e de
(b) uma política monetária (“alívio quantitativo”, ing. Quantitative Easing, QE)
Que feriu todo mundo (outros estados e todos os indivíduos que não se incluam no “1%”) passou a servir como verdadeiro “sargento recrutador” contra o liberalismo e qualquer sistema financeiro conservador.
Bases militares NUCLEARES dos EUA na Europa |
Daí a surpresa em Moscou: a Alemanha entende esse processo. De início, a Alemanha pareceu estar jogando o “grande jogo” pela Ucrânia, tentando pôr-se como uma ponte até a Rússia, tentando esvaziar a crise. Então, de repente (seja qual tenha sido a razão – que ainda não foi esclarecida), a Alemanha pôs-se a apoiar a escalada nas sanções, apesar de até um cessar-fogo já estar vigente!
Os alemães sabem que a Europa carece de uma nova missão, uma nova definição de o que, precisamente, significa, hoje, ser parte de um “projeto” europeu. O perigo de a Europa não ter autonomia para construir sua própria política de segurança (vive atada à OTAN); de a unidade europeia continuar definida apenas nos termos do apoio que dê a uma potência em declínio, cada dia mais disfuncional, todos esses pontos foram acaloradamente discutidos dentro do governo alemão.
A crise da “visão liberal-de-mercado” não está tampouco “muito longe”: está exatamente aqui, bem no coração da Europa também, com 95% dos gregos, 91% dos espanhóis e 90% dos italianos entendendo que o país de cada um caminha na direção errada. Recessão na Escócia, tumultos de rua em Barcelona, o fascismo em ascensão, recessão econômica: todos os sinais gritam que há problemas à frente.
Sim, a “velha Europa” em Newport fez muito para conter qualquer avanço da OTAN para mais perto das fronteiras da Rússia e manteve os termos do Ato de Fundação da OTAN de 1997. Mesmo assim, a OTAN – a instituição – ainda conseguiu sua “dose” do dia, de adrenalina. Institucionalmente, está em “alta”. O que implica dizer que as decisões tomadas em Newport só levarão a repetidas escaladas nas tensões entre OTAN, Europa e Rússia. E a União Europeia optou por impor mais uma rodada de sanções. O embaixador russo à União Europeia respondeu que não resta alternativa à Rússia, além de impor contramedidas.
É duvidoso que a Alemanha, agora, consiga safar-se da inexorabilidade das consequências da decisão que tomou de apoiar mais e mais sanções. A Rússia mexeu-se adiante: as tensões se aprofundarão. Mais uma vez, vê-se a incoerência da estratégia: qual é, agora, o objetivo da Europa para a Ucrânia? Quer infligir derrota total aos insurgentes do Donbass (e a Putin)?
Vladimir Putin e Angela Merkel |
Os EUA, temerosos de que se implante a percepção de que já são potência declinante, entraram em surto (admitidamente impressionante) de demonstração de força bruta para negar qualquer “impressão'’ de declínio (roteirizou e impôs no solo a narrativa sobre a Ucrânia; demonizou com êxito quase inacreditável o presidente Putin; e arrastou a União Europeia para o pântano das sanções). E, como se tudo aquilo ainda não bastasse, empurrou os europeus para dentro de uma guerra estrategicamente incoerente e perigosíssima contra o ISIL – e, mais uma vez, só para mostrar que os EUA podem ir onde queiram e fazer o que bem entendam. É atitude que turvará ainda mais os céus no Oriente Médio. Em pouco tempo, os europeus perceberão que não têm aliados reais na região para a tal empreitada.
As consequências são profundas: a Alemanha, ao empurrar o projeto europeu de volta para a “caixa” furada da qual, de fato, ele tem de conseguir safar-se, e ao mostrar, mais uma vez, que só sabe ver a “unidade” da Europa se for pelos termos redutores do apoio aos planos de guerra dos EUA, só fez atrair a Europa para o poço de seus próprios problemas, cada dia mais graves. Ao queimar as pontes com Moscou, a Alemanha queimou também a opção de reimaginar a Europa de outro modo – como um “concerto pró Europa”, por exemplo. De fato, logo veremos os gasodutos do Iraque e Irã tomando rumo leste – de costas para um “ocidente” atlântico de águas estagnadas.
A Europa também continua refém de um sistema monetário global que exige mais e mais estímulos para impedir que o sistema financeiro entre em colapso – mesmo que o efeito da monetarização agressiva só sirva para incubar mais e mais rejeição por todo o continente. Definitivamente, o prognóstico não é bom.
Notas dos tradutores
[1] “Oposição real* a Putin e ao seu projeto só existe *dentro* do Kremlin, no partido “Rússia Unida” e em algumas figuras influentes. Chamo essa oposição real de“Atlanticistas Integracionistas” (AI), porque o objetivo-chave deles é “integrar a Rússia à estrutura mundial anglo-sionista de poder”(The Saker, 4/4/2014, traduzido na redecastorphoto em: : “Começou uma nova Guerra Fria. Que alívio!”.
[2] “A base *real* de poder de Putin está no povo russo que o apoia diretamente e pessoalmente, na Frente de Todos os Povos Russos, e no grupo que chamo de “Eurasianos Soberanistas” (ES), cujo objetivo básico é desenvolver uma nova ordem mundial, multipolar, para livrar-se do atual sistema financeiro internacional anglo-sionista; reorientar a maior parte possível da antiga URSS na direção de integrar-se com o Ocidente; e desenvolver o norte da Rússia” (The Saker, 4/4/2014, traduzido na redecastorphoto em: “Começou uma nova Guerra Fria. Que alívio!”).
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[*] Alastair Crooke, às vezes erroneamente referido como Alistair Crooke, (nascido em 1950) é um diplomata britânico, fundador e diretor do Conflicts Forum, uma organização que defende o engajamento entre o Islã político e o Ocidente. Anteriormente, foi figura proeminente, tanto da Inteligência Britânica (MI6) como da diplomacia da União Europeia como conselheiro para assuntos do Oriente Médio de Javier Solana (1997-2003), no cargo de High Representative for Common Foreign and Security Policy da União Europeia. Foi ácido crítico da violência e saques militares contra os territórios palestinos e movimentos islâmicos de 2000-2003. Esteve envolvido nos esforços diplomáticos no Cerco da Igreja da Natividade, em Belém. Foi membro do Comitê Mitchell sobre as causas da Segunda Intifada, em 2000. Manteve encontros clandestinos com a liderança do Hamas em junho de 2002. É defensor ativo do engajamento do Hamas no processo de paz na Palestina, a quem ele se referiu como “Combatentes da Resistência".
Crooke estudou na University of St Andrews (1968–1972) do qual ele obteve um mestrado em Política e Economia. Seu livro Resistance: The Essence of the Islamist Revolutionfornece informações sobre o que ele chama de “revolução islâmica” no Oriente Médio, ajudando a oferecer insights estratégicos sobre as origens e a lógica de grupos islâmicos que adotaram resistência militar como uma tática, incluindo Hamas e Hezbollah. Seguindo a essência da Revolução islâmica desde as suas origens no Egito, através de Najaf, Líbano, Irã e da Revolução Iraniana até os dias de hoje, desbloqueando algumas das questões mais espinhosas que cercam estabilidade na atual paisagem do Oriente Médio
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[*] Conflicts Fórum visa mudar a opinião ocidental em direção a uma compreensão mais profunda, menos rígida, linear e compartimentada do Islã e do Oriente Médio. Faz isso por olhar para as causas por trás de narrativas contrastantes: observando como as estruturas de linguagem e interpretações que são projetadas para eventos de um modelo de expectativas anteriores discretamente determinam a forma como pensamos - atravessando as pré-suposições, premissas ocultas e até mesmo metafísicas enterradas que se escondem por trás de certas narrativas, desafiando interpretações ocidentais de “extremismo” e as políticas resultantes; e por trabalhar com grupos políticos, movimentos e estados para abrir um novo pensamento sobre os potenciais políticos no mundo.
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