5/9/2014, [*] Pepe Escobar, Asia Times Online − The Roving Eye
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Empurra teu carro e teu arado
Por cima dos ossos dos mortos …
William Blake (1757-1827),
O Casamento do Céu e do Inferno (excertos)
Abu Bakr al-Baghdadi (Califa Ibrahim) |
O Califa
Ibrahim, codinome Abu Bakr al-Baghdadi, autodeclarado líder do Estado Islâmico,
ex-Estado Islâmico do Iraque e Levante (ISIL, ing.) realmente não tem
veia de marketing & Relações Públicas que preste! Quando
o show estava pronto e agendado, para
que a OTAN salvasse a Ucrânia e a civilização ocidental – pelo menos no plano
retórico – das garras daquele Império do Mal remixed,
a Rússia... Vem o Califa e, tendo acessado seu caríssimo relógio mágico,
intromete-se na programação, com mais um daqueles seus especiais de “cortem a
cabeça deles!”.
Muito
adequadamente, houve desconfianças e sobrancelhas arqueadas, que duraram até
que toda a sopa-de-letrinhas das agências de inteligência dos EUA solenemente
confirmaram que o EI, sim, realmente degolara mais um jornalista
norte-americano em vídeo (de Barack Obama, presidente dos EUA: “Ato de
violência horrífico”).
E então, sem
mais nem menos, vem O Califa, repica e proclama ao mundo que seu próximo alvo será ninguém menos que o presidente russo Vladimir Putin. Estaria
falando pelo recentemente posto em ostracismo príncipe Bandar bin Sultan da
Arábia Saudita, codinome Bandar Bush?
Em tese,
tudo estaria resolvido. O Califa passa a ser prestador contratado de serviços
para a OTAN (ele já trabalha no ramo, praticamente...). O Califa degola Putin.
O Califa liberta a Chechênia – serviço rápido, não aquela coisa terrivelmente
embaraçosa, confusão sem fim, no Afeganistão. O Califa, de enfiada, já ataca
logo os BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. O Califa vira
Secretário−Geral−Sombra da OTAN. E Obama finalmente para de reclamar que seus
telefonemas para Putin só caem na caixa postal.
Ah, se
geopolítica fosse simples como filme tranca−quarteirões da Marvel Comics.
Ora! O
Califa deveria saber – dado que, em grande medida, é produto Made-in-the-Ocidente, com
substancial input de petrodólares do Conselho de Cooperação
do Golfo – que a OTAN jamais lhe prometeu um jardim de rosas.
David Cameron e Barack Obama |
Assim
aconteceu, previsivelmente, que aqueles ingratos, Obama e David Cameron,
primeiro-ministro britânico – oh
yes, porque o “relacionamento especial” é tudo que importa na OTAN, os
demais são figurantes – juraram sair à caça do Califa com uma ampla (quer
dizer... Não é assim tãããão ampla) “coalizão de vontades”, com os suspeitos de
sempre do Conselho de Cooperação do Golfo plus
Turquia e Jordânia, bombardeando o Curdistão Iraquiano, partes do Iraque
sunita e até a Síria.
Afinal de
contas, o presidente da Síria “Bashar al-Assad-tem-de-sair”, não mais “a
brutalidade de Assad” na formulação de Cameron, é o verdadeiro culpado pelas
ações de O Califa. E tudo em nome da Guerra Global ao Terror à moda da Operação
Liberdade Duradoura Forever.
Agora, me
tragam aquele Califa Eslavo
Entrou água,
pode-se dizer, na festa do secretário-geral (em final de mandato) da OTAN
Anders “Fog(h) da Guerra” Rasmussen. Afinal, estava combinado que aquele seria
o “momento crucial”, na cúpula da OTAN em Gales, quando a OTAN alcançaria o
píncaro de sua Guerra Fria 2.0, resgatando “os aliados”, todos os 28, das
profundas tenebrosas da insegurança.
Basta ver a
réplica de um glorioso Magnata Eurocombatente plantada lá, em frente ao hotel
onde acontece a reunião da OTAN na cidade de Newport, sul de Gales.
Putin expôs um plano de paz para a Ucrânia |
E, cúmulo
dos cúmulos, aquele maldito Califa Eslavo do Mal, Vlad Putin em pessoa,
construiu um plano de paz de sete itens, para
resolver o sorvedouro ucraniano – bem quando o imponente exército de Kiev foi
reduzido a estrogonofe pelos federalistas e/ou separatistas no Donbass. O
presidente da Ucrânia, Petro Poroshenko – que até praticamente ontem ainda
berrava “Invasão!” a plenos pulmões – soltou longos suspiros de alívio. E até
revelou, detalhe, que Kiev estava recebendo armamento de alta precisão de país
sem nome, que só pode ser EUA, Reino Unido ou Polônia.
A coisa toda
gerou grave problema, porém. Contra quem/o quê a OTAN defenderá a Civilização
Ocidental, se tudo que se disse até hoje sob o rótulo “agressão russa” aparece
agora sobre o palco identificado como mapa do caminho para a paz?
Donald Rumsfeld |
Não
surpreende que os 60 chefes de estado e de governo com respectivos Ministros da
Defesa e de Relações Exteriores – que brindaram o mundo com invasão “soft”/furo
consentido do “anel de aço” que cerca Newport
impedindo que se aproximem as hordas de manifestantes protestantes – tenham
ficado confusos, com cara de zonzos.
Mais de 11
anos depois de “Choque e Pavor”, ainda vivemos em mundo rumsfeldiano. Foi o ex-chefe do Pentágono, Donald Rumsfeld, quem, no
governo de George “Dábliu” Bush, conceptualizou a “Velha Europa” e a “Nova
Europa”. “Velha”, a das bonecas venusianas. “Nova”, dos marcianos muito machos.
A “Nova”
apoiou totalmente a operação Choque e Pavor e a subsequente invasão/ ocupação
do Iraque. Hoje, apoia – de fato implora, suplica – que a OTAN encare a Rússia.
A “Velha”,
por sua vez, tenta pelo menos salvar um espaço de negociação com Putin. E no
final a amada prudência [orig. “dear prudence” (NTs)],
exercida especialmente por Berlin, foi recompensada pelo plano de paz de Putin.
Pelo sim
pelo não, para não frustrar demais o Império do Caos, Paris anunciou que não
entregará a Moscou no prazo agendado os primeiros dois navios porta-helicópteros militares Classe Mistral comprado pelos russos. Claro que a OTAN condenou
fortemente a Rússia na questão Ucrânia, e a União Europeia seguiu-a com ainda
mais sanções.
Quanto a
Fog(h) da Guerra, continua a repetir sua retórica de Marte Ataca! (ver “OTAN
Ataca!”, redecastorphoto, 4/9/2014).
Tudo culpa de Moscou. A OTAN é só inocente força só de apaziguamento – sólida e
poderosa. Ao mesmo tempo, a OTAN não seria doida de pôr-se a começar a apontar
a Rússia como inimiga direta.
Protestos anti-OTAN começaram em agosto |
E a polícia galesa filmou tudo e todos... |
Protestos anti-OTAN também em Newport |
Assim sendo,
como Asia Times Online noticiou, a OTAN no máximo ajudará a
treinar forças de Kiev; o desempenho delas no Donbass mostrou que precisam
muito de treino. Mas não haverá “integração” da Ucrânia – apesar de toda a
histeria que se ouviu vinda de Kiev e bem com Polônia e os estados Bálticos
clamando por bases permanentes. O novo elemento será a Força de Resposta OTAN-remixed
(NRF) a qual, por falar dela, jamais antes foi usada.
A NRF já vem até com slogan “marketado”: “Viaje
leve e ataque pesado”. Um batalhão de 800 homens capaz de atacar em dois dias e
uma brigada de 5 mil, para ataque em de 5 a 7 dias. Bem... Se seguirem o padrão “viaje
leve”, dificilmente conseguirão impedir que O Califa anexe vastas fatias do Jihadistão, com seu comboio de flamantes
Toyotas brancos. Sobre “ataque pesado”, informem-se com os pashtuns no Hindu
Kush, para saberem do que se trata.
Assim foi
que Gales gerou a NRF;
“rotação” permanente e permanentes bases avançadas para “proteger” a Europa
Central e Oriental; e todo mundo soltando dinheiro (nada menos que 2% do PIB de
cada um dos 28 países-membros, de agora até 2025). E isso no meio da terceira
recessão europeia em cinco anos.
Agora
comparem o atordoante orçamento militar conjunto da OTAN, de 900 bilhões de
dólares norte-americanos (75% de todas as despesas monopolizadas pelos EUA),
com o orçamento da Rússia, de apenas $80 bilhões. Depois, a “ameaça” é Moscou!
Desnecessário
acrescentar, mesmo sob todo esse som e fúria, Gales não conseguiu pôr a OTAN
num sofá freudiano – para analisar em monólogo sem fim o fracasso abjeto da “aliança”
nos dois pontos, no Afeganistão e na Líbia.
Líbia - antes (E) e depois (D) da OTAN (clique na imagem para aumentar) |
No
Afeganistão, o Talibã basicamente controla anéis que cercam as bases da OTAN e
movimentos de “ataca pesado”, que desmoralizam completamente a “aliança”. Foi a
OTAN em modo GGT (Guerra Global ao Terror).
E na Líbia,
a OTAN criou um estado falido devastado por milicianos e chamou a coisa de
“paz”. Foi a OTAN em modo R2P (Responsabilidade para Proteger).
OTAN
libertadora do Jihadistão? O Pentágono não dá a mínima. O Pentágono quer GGT
eterna. A think-tankelândia dos EUA está em êxtase, agora que a OTAN
encontrou “renovado propósito” e a sobrevivência de longo prazo da aliança está
assegurada por uma “ameaça unificada”. Tradução: Rússia.
Assim sendo,
O Califa não está exatamente tremendo em suas botas de deserto Made-in-USA. Até sonha em pôr as
mãos no Califa Eslavo em pessoa. Como é que Marvel
Comics nunca pensou nisso?!
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[*] Pepe Escobar (1954) é jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna (The Roving Eye) no Asia Times Online; é também analista de política de blogs e sites como: Tom Dispatch, Information Clearing House, Red Voltaire e outros; é correspondente/ articulista das redes Russia Today, The Real News Network Televison e Al-Jazeera. Seus artigos podem ser lidos, traduzidos para o português pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu e João Aroldo, no blog redecastorphoto.
Livros:
− Globalistan: How the Globalized World is Dissolving into Liquid War, Nimble Books, 2007.
− Red Zone Blues: A Snapshot of Baghdad During the Surge, Nimble Books, 2007.
− Obama Does Globalistan, Nimble Books, 2009.
Que roteiro! Penso que estamos vivendo um filme onde somos figurantes forçados a atuar e sem direito a receber ou reclamar de seus diretores. Que acendam as luzes e encontremos a saída...
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