sábado, 6 de setembro de 2014

Pepe Escobar: — OTAN, libertadora do “Jihadistão”?

5/9/2014, [*] Pepe Escobar, Asia Times Online − The Roving Eye
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Empurra teu carro e teu arado
Por cima dos ossos dos mortos …
William Blake (1757-1827), 


Abu Bakr al-Baghdadi (Califa Ibrahim)
O Califa Ibrahim, codinome Abu Bakr al-Baghdadi, autodeclarado líder do Estado Islâmico, ex-Estado Islâmico do Iraque e Levante (ISIL, ing.) realmente não tem veia de marketing & Relações Públicas que preste! Quando o show estava pronto e agendado, para que a OTAN salvasse a Ucrânia e a civilização ocidental – pelo menos no plano retórico – das garras daquele Império do Mal remixed, a Rússia... Vem o Califa e, tendo acessado seu caríssimo relógio mágico, intromete-se na programação, com mais um daqueles seus especiais de “cortem a cabeça deles!”.

Muito adequadamente, houve desconfianças e sobrancelhas arqueadas, que duraram até que toda a sopa-de-letrinhas das agências de inteligência dos EUA solenemente confirmaram que o EI, sim, realmente degolara mais um jornalista norte-americano em vídeo (de Barack Obama, presidente dos EUA: “Ato de violência horrífico”).

E então, sem mais nem menos, vem O Califa, repica e proclama ao mundo que seu próximo alvo será ninguém menos que o presidente russo Vladimir Putin. Estaria falando pelo recentemente posto em ostracismo príncipe Bandar bin Sultan da Arábia Saudita, codinome Bandar Bush?

Em tese, tudo estaria resolvido. O Califa passa a ser prestador contratado de serviços para a OTAN (ele já trabalha no ramo, praticamente...). O Califa degola Putin. O Califa liberta a Chechênia – serviço rápido, não aquela coisa terrivelmente embaraçosa, confusão sem fim, no Afeganistão. O Califa, de enfiada, já ataca logo os BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. O Califa vira Secretário−Geral−Sombra da OTAN. E Obama finalmente para de reclamar que seus telefonemas para Putin só caem na caixa postal.

Ah, se geopolítica fosse simples como filme tranca−quarteirões da Marvel Comics.

Ora! O Califa deveria saber – dado que, em grande medida, é produto Made-in-the-Ocidente, com substancial input de petrodólares do Conselho de Cooperação do Golfo – que a OTAN jamais lhe prometeu um jardim de rosas.

David Cameron e Barack Obama
Assim aconteceu, previsivelmente, que aqueles ingratos, Obama e David Cameron, primeiro-ministro britânico – oh yes, porque o “relacionamento especial” é tudo que importa na OTAN, os demais são figurantes – juraram sair à caça do Califa com uma ampla (quer dizer... Não é assim tãããão ampla) “coalizão de vontades”, com os suspeitos de sempre do Conselho de Cooperação do Golfo plus Turquia e Jordânia, bombardeando o Curdistão Iraquiano, partes do Iraque sunita e até a Síria.

Afinal de contas, o presidente da Síria “Bashar al-Assad-tem-de-sair”, não mais “a brutalidade de Assad” na formulação de Cameron, é o verdadeiro culpado pelas ações de O Califa. E tudo em nome da Guerra Global ao Terror à moda da Operação Liberdade Duradoura Forever.

Agora, me tragam aquele Califa Eslavo

Entrou água, pode-se dizer, na festa do secretário-geral (em final de mandato) da OTAN Anders “Fog(h) da Guerra” Rasmussen. Afinal, estava combinado que aquele seria o “momento crucial”, na cúpula da OTAN em Gales, quando a OTAN alcançaria o píncaro de sua Guerra Fria 2.0, resgatando “os aliados”, todos os 28, das profundas tenebrosas da insegurança.

Basta ver a réplica de um glorioso Magnata Eurocombatente plantada lá, em frente ao hotel onde acontece a reunião da OTAN na cidade de Newport, sul de Gales.

Putin expôs um plano de paz para a Ucrânia
E, cúmulo dos cúmulos, aquele maldito Califa Eslavo do Mal, Vlad Putin em pessoa, construiu um plano de paz de sete itens, para resolver o sorvedouro ucraniano – bem quando o imponente exército de Kiev foi reduzido a estrogonofe pelos federalistas e/ou separatistas no Donbass. O presidente da Ucrânia, Petro Poroshenko – que até praticamente ontem ainda berrava “Invasão!” a plenos pulmões – soltou longos suspiros de alívio. E até revelou, detalhe, que Kiev estava recebendo armamento de alta precisão de país sem nome, que só pode ser EUA, Reino Unido ou Polônia.

A coisa toda gerou grave problema, porém. Contra quem/o quê a OTAN defenderá a Civilização Ocidental, se tudo que se disse até hoje sob o rótulo “agressão russa” aparece agora sobre o palco identificado como mapa do caminho para a paz?

Donald Rumsfeld
Não surpreende que os 60 chefes de estado e de governo com respectivos Ministros da Defesa e de Relações Exteriores – que brindaram o mundo com invasão “soft”/furo consentido do “anel de aço” que cerca Newport impedindo que se aproximem as hordas de manifestantes protestantes – tenham ficado confusos, com cara de zonzos.

Mais de 11 anos depois de “Choque e Pavor”, ainda vivemos em mundo rumsfeldiano. Foi o ex-chefe do Pentágono, Donald Rumsfeld, quem, no governo de George “Dábliu” Bush, conceptualizou a “Velha Europa” e a “Nova Europa”. “Velha”, a das bonecas venusianas. “Nova”, dos marcianos muito machos.

A “Nova” apoiou totalmente a operação Choque e Pavor e a subsequente invasão/ ocupação do Iraque. Hoje, apoia – de fato implora, suplica – que a OTAN encare a Rússia.

A “Velha”, por sua vez, tenta pelo menos salvar um espaço de negociação com Putin. E no final a amada prudência [orig. dear prudence (NTs)], exercida especialmente por Berlin, foi recompensada pelo plano de paz de Putin.

Pelo sim pelo não, para não frustrar demais o Império do Caos, Paris anunciou que não entregará a Moscou no prazo agendado os primeiros dois navios porta-helicópteros militares Classe Mistral comprado pelos russos. Claro que a OTAN condenou fortemente a Rússia na questão Ucrânia, e a União Europeia seguiu-a com ainda mais sanções.

Quanto a Fog(h) da Guerra, continua a repetir sua retórica de Marte Ataca! (ver OTAN Ataca!, redecastorphoto, 4/9/2014). Tudo culpa de Moscou. A OTAN é só inocente força só de apaziguamento – sólida e poderosa. Ao mesmo tempo, a OTAN não seria doida de pôr-se a começar a apontar a Rússia como inimiga direta.

Protestos anti-OTAN começaram em agosto
E a polícia galesa filmou tudo e todos...
Protestos anti-OTAN também em Newport
Assim sendo, como Asia Times Online noticiou, a OTAN no máximo ajudará a treinar forças de Kiev; o desempenho delas no Donbass mostrou que precisam muito de treino. Mas não haverá “integração” da Ucrânia – apesar de toda a histeria que se ouviu vinda de Kiev e bem com Polônia e os estados Bálticos clamando por bases permanentes. O novo elemento será a Força de Resposta OTAN-remixed (NRF) a qual, por falar dela, jamais antes foi usada.

A NRF já vem até com slogan “marketado”: “Viaje leve e ataque pesado”. Um batalhão de 800 homens capaz de atacar em dois dias e uma brigada de 5 mil, para ataque em de 5 a 7 dias. Bem... Se seguirem o padrão “viaje leve”, dificilmente conseguirão impedir que O Califa anexe vastas fatias do Jihadistão, com seu comboio de flamantes Toyotas brancos. Sobre “ataque pesado”, informem-se com os pashtuns no Hindu Kush, para saberem do que se trata.

Assim foi que Gales gerou a NRF; “rotação” permanente e permanentes bases avançadas para “proteger” a Europa Central e Oriental; e todo mundo soltando dinheiro (nada menos que 2% do PIB de cada um dos 28 países-membros, de agora até 2025). E isso no meio da terceira recessão europeia em cinco anos.

Agora comparem o atordoante orçamento militar conjunto da OTAN, de 900 bilhões de dólares norte-americanos (75% de todas as despesas monopolizadas pelos EUA), com o orçamento da Rússia, de apenas $80 bilhões. Depois, a “ameaça” é Moscou!

Desnecessário acrescentar, mesmo sob todo esse som e fúria, Gales não conseguiu pôr a OTAN num sofá freudiano – para analisar em monólogo sem fim o fracasso abjeto da “aliança” nos dois pontos, no Afeganistão e na Líbia.

Líbia - antes (E) e depois (D) da OTAN
(clique na imagem para aumentar)
No Afeganistão, o Talibã basicamente controla anéis que cercam as bases da OTAN e movimentos de “ataca pesado”, que desmoralizam completamente a “aliança”. Foi a OTAN em modo GGT (Guerra Global ao Terror).

E na Líbia, a OTAN criou um estado falido devastado por milicianos e chamou a coisa de “paz”. Foi a OTAN em modo R2P (Responsabilidade para Proteger).

OTAN libertadora do Jihadistão? O Pentágono não dá a mínima. O Pentágono quer GGT eterna. A think-tankelândia dos EUA está em êxtase, agora que a OTAN encontrou “renovado propósito” e a sobrevivência de longo prazo da aliança está assegurada por uma “ameaça unificada”. Tradução: Rússia.

Assim sendo, O Califa não está exatamente tremendo em suas botas de deserto Made-in-USA. Até sonha em pôr as mãos no Califa Eslavo em pessoa. Como é que Marvel Comics nunca pensou nisso?!
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[*] Pepe Escobar (1954) é jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna (The Roving Eye) no Asia Times Online; é também analista de política de blogs e sites como: Tom Dispatch, Information Clearing House, Red Voltaire e outros; é correspondente/ articulista das redes Russia Today, The Real News Network Televison e Al-Jazeera. Seus artigos podem ser lidos, traduzidos para o português pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu e João Aroldo, no blog redecastorphoto.
Livros:
 Obama Does Globalistan Nimble Books, 2009.

Um comentário:

  1. Que roteiro! Penso que estamos vivendo um filme onde somos figurantes forçados a atuar e sem direito a receber ou reclamar de seus diretores. Que acendam as luzes e encontremos a saída...

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