domingo, 7 de setembro de 2014

Slavoj Žižek: “ISIS/ISIL é a desgraça do verdadeiro fundamentalismo”

3/8/2014, [*] Slavoj Zizek, The New York Times
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


ISIS/ISIS desfila com Toyotas pelo deserto 
Tornou-se lugar comum nos meses recentes observar que o crescimento do Estado Islâmico no Iraque e no Levante, ISIL, seria o último capítulo na longa história do despertar anticolonial – que estariam sendo redesenhadas as arbitrárias fronteiras traçadas depois da Iª Guerra Mundial pelas grandes potências — e que, simultaneamente, esse seria um capítulo na luta contra o modo como o capital global mina o poder dos estados-nação.

Mas o que causa tanto medo e consternação é outro traço do regime do ISIL: as declarações públicas feitas pelas autoridades do ISIL deixam bem claro que a principal tarefa do poder do estado não é regular o bem-estar da população (saúde, a luta contra a fome). O que realmente interessa é a vida religiosa, e a preocupação de que toda a vida pública obedeça a leis religiosas. Por isso é que o ISIL mantém-se mais ou menos indiferente às catástrofes humanitárias dentro de seus domínios. O motto deles é, aproximadamente “cuide da religião, que o bem-estar cuida dele mesmo...”

Aí está a fenda que separa a noção de poder praticada pelo ISIL e a moderna noção ocidental do que Michel Foucault chamou de “biopoder”, que regula a vida de modo a garantir o bem-estar geral: o califato do ISIL rejeita totalmente a noção de biopoder.

Isso faz do ISIL estado pré-moderno? Em vez de ver no ISIL um caso de resistência extrema à modernização, deve-se, isso sim, concebê-lo como um caso de modernização pervertida, e inseri-lo no conjunto das modernizações conservadoras que começaram com a restauração Meiji no Japão do século XIX (uma rápida modernização industrial assumiu a forma ideológica de “restauração”, ou o retorno da plena autoridade do imperador).

O relógio do Califa é, possivelmente, um Rolex, talvez um Sekonda, ou que poderia até ser um Omega Seamaster de £ 3.000 
A imagem-foto bem conhecida de Abu Bakr al-Baghdadi, líder do ISIL, com luxuoso relógio suíço no pulso, é, nisso, emblemática: o ISIL é bem organizado para propaganda pela rede e para negócios financeiros, embora essas práticas ultra modernas sejam usadas para propagar e reforçar uma visão ideológico-política que, muito mais que conservadora, parece ser movimento desesperado para “reparar” delimitações hierárquicas bem visíveis.

Contudo, não se deve esquecer que mesmo essa imagem de organização fundamentalista estritamente disciplinada e regulada não está livre de ambiguidades: será que haveria carência de opressão religiosa nos locais nos quais as unidades militares do ISIL parecem operar? Ao mesmo tempo em que a ideologia oficial do ISIL milita contra a permissividade ocidental, a prática diária das gangues do ISIL inclui orgias em ampla e grotesca escala, incluindo roubos, estupros seriais, tortura e assassinato de infiéis.

Observada bem de perto, a aparentemente heroica prontidão do ISIL para arriscar tudo ainda parece mais ambígua.

Há muitos anos, Friedrich Nietzsche percebeu como a civilização ocidental estava andando na direção do Último Homem, uma criatura apática, sem grande paixão ou comprometimento. Incapaz de sonhar, cansado da vida, não se expõe a riscos, buscando só conforto e segurança:

Friedrich Nietzsche
Um pouco de veneno de quando em quando: isso gera sonhos agradáveis. E muito veneno por fim, para um agradável morrer. Ainda se trabalha, pois trabalho é distração. Mas cuida-se para que a distração não canse. Ninguém mais se torna rico ou pobre: as duas coisas dão trabalho. Quem deseja ainda governar? Quem deseja ainda adoecer? Ambas as coisas são árduas. Todos querem o mesmo, todos são iguais cada um é igual: quem sente de outro modo vai voluntariamente para o hospício. “Descobrimos a felicidade”, diz o Último Homem, e eles piscam o olho. [1]

Parece que a fenda que separa o permissivo Primeiro Mundo e a reação fundamentalista a ele acompanha cada vez mais e mais as linhas da oposição entre viver vida longa e feliz, cheia de riqueza material e cultural, de um lado; e, de outro, dedicar a própria vida a uma causa transcendente. Não seria isso o que Nietzsche chamou de antagonismo entre niilismo “passivo” e niilismo “ativo”?

Nós, no ocidente, somos o Último Homem nietzscheano, imerso em estúpidos prazeres diários; enquanto os muçulmanos radicais estão prontos a arriscar tudo, engajados na luta até o ponto da autodestruição. A Segunda Vinda de William Butler Yeats parece dar perfeitamente conta de nosso sofrimento atual:

Aos melhores falta qualquer convicção. Enquanto os piores estão plenos de ardor.

William Butler Yeats
Essa pode ser excelente descrição da atual fissura entre liberais anêmicos e fundamentalistas apaixonados. “Os melhores” já não conseguem engajar-se plenamente; “os piores” engajam-se apaixonadamente no fanatismo racista, religioso, sexista.

Mas terroristas fundamentalistas são realmente fundamentalistas, no sentido autêntico da palavra? Será que realmente creem? Fato é que falta a eles um traço fácil de identificar nos fundamentalistas autênticos, de budistas tibetanos aos amish nos EUA – a ausência de ressentimento e inveja; a profunda indiferença em relação ao modo de vida dos que não creem.

Se os chamados hoje fundamentalistas realmente cressem, teriam encontrado a própria trilha rumo à Verdade e não se sentiriam ameaçados pelos não crentes. Por que invejá-los? Quando um budista encontra um hedonista ocidental, ele dificilmente o condena. Ele apenas observa com benevolência que a busca de felicidade do hedonista se autoconsome, se autoderrota.

Ao contrário dos verdadeiros fundamentalistas, os terroristas pseudo-fundamentalistas sentem-se profundamente perturbados, intrigados e fascinados pela vida pecaminosa dos incréus. Sente-se que, ao combater o outro-pecador, eles combatem a tentação que os consome. Por isso, os chamados fundamentalistas do ISIL são uma desgraça para o verdadeiro fundamentalismo.

É onde o diagnóstico de Yeats falha, para explicar a desgraça de hoje: a intensidade apaixonada de uma gangue é manifestação de uma falta de verdadeira convicção. No fundo deles mesmos, os terroristas fundamentalistas também não conhecem a convicção profunda – as explosões de violência são prova disso. Deve ser muito frágil a convicção do muçulmano que se sinta ameaçado por uma caricatura estúpida desenhada por jornalista estúpido num estúpido jornal dinamarquês de baixa circulação. O terror fundamentalista islâmico não tem raiz na convicção nos terroristas, da sua própria superioridade e no desejo deles de salvaguardar a sua identidade cultural religiosa contra o massacre pela civilização de consumo global.

Humvees, sonho de consumo do ISIL?
O problema com o terrorista fundamentalista não é que nós o consideremos inferior a nós, mas, ao contrário, que eles se consideram, em segredo, inferiores. Por isso, nossa condescendência arrogante, as repetidas garantias politicamente corretas, de que não nos sentimos superiores a eles, só fazem enfurecê-los cada vez mais e alimentam neles o ressentimento.

O problema não é diferença cultural (o esforço deles para preservar a identidade deles), mas o fato, exatamente oposto, de que eles secretamente internalizaram nossos padrões e avaliam-se, eles, pelos nossos padrões.

Paradoxalmente, o que falta aos fundamentalistas do ISIL e a outros como eles é, precisamente, uma boa dose daquela absoluta convicção da própria superioridade.
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[*] Slavoj Žižek (nasceu em Liubliana, capital da Eslovênia em 21 de março de 1949), doutorou-se em Filosofia na sua cidade natal e estudou Psicanálise na Universidade de Paris. Žižek é conhecido por seu uso de Jacques Lacan numa nova leitura da cultura popular, abordando temas como o cinema de Alfred Hitchcock e David Lynch, o leninismo e tópicos como fundamentalismo e tolerância, correção política, subjetividade nos tempos pós-modernos e outros.
Em 1979, começou a trabalhar no Instituto de Sociologia de Liubliana. Pouco depois, em 1980, começou a publicar livros que examinavam as teorias Hegelianas e Marxistas a partir do ponto de vista da teoria psicanalítica Lacaniana. Além disso, editou certo número de traduções de Louis Althusser, Jacques Lacan e Sigmund Freud para o Esloveno. Candidatou-se a presidente da Eslovênia em 1990, mas perdeu.
Tornou-se largamente reconhecido como teórico contemporâneo a partir da publicação de O Sublime Objeto da Ideologia, seu primeiro livro escrito em inglês, em 1989. O trabalho de Žižek não pode ser facilmente categorizado. Ele retorna ao sujeito cartesiano e à Ideologia Alemã, especialmente aos trabalhos de Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Immanuel Kant e Friedrich Wilhelm Joseph Schelling. 
Žižek é ateu e suas teorias frequentemente vão contra as análises teóricas tradicionais. Ele costuma ser politicamente incorreto e já causou diversas polêmicas em vários círculos intelectuais. Ressalta com frequência que, para entender a política de hoje, nós precisamos de uma noção diferente de ideologia.

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