3/8/2014, [*] Slavoj Zizek, The New York Times
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
ISIS/ISIS desfila com Toyotas pelo deserto |
Tornou-se
lugar comum nos meses recentes observar que o crescimento do Estado Islâmico no
Iraque e no Levante, ISIL,
seria o último capítulo na longa história do despertar anticolonial – que
estariam sendo redesenhadas as arbitrárias fronteiras traçadas depois da Iª
Guerra Mundial pelas grandes potências — e que, simultaneamente, esse seria um
capítulo na luta contra o modo como o capital global mina o poder dos
estados-nação.
Mas o que
causa tanto medo e consternação é outro traço do regime do ISIL: as declarações públicas feitas
pelas autoridades do ISIL deixam
bem claro que a principal tarefa do poder do estado não é regular o bem-estar
da população (saúde, a luta contra a fome). O que realmente interessa é a vida
religiosa, e a preocupação de que toda a vida pública obedeça a leis
religiosas. Por isso é que o ISIL mantém-se
mais ou menos indiferente às catástrofes humanitárias dentro de seus domínios.
O motto deles é, aproximadamente “cuide da
religião, que o bem-estar cuida dele mesmo...”
Aí está a
fenda que separa a noção de poder praticada pelo ISIL e a moderna noção ocidental do que Michel
Foucault chamou de “biopoder”, que regula a vida de modo a garantir o bem-estar
geral: o califato do ISIL rejeita totalmente a noção de biopoder.
Isso faz do ISIL estado pré-moderno? Em vez de ver no ISIL um caso de resistência extrema à
modernização, deve-se, isso sim, concebê-lo como um caso de modernização
pervertida, e inseri-lo no conjunto das modernizações conservadoras que
começaram com a restauração Meiji no Japão do século XIX (uma rápida
modernização industrial assumiu a forma ideológica de “restauração”, ou o
retorno da plena autoridade do imperador).
O relógio do Califa é, possivelmente, um Rolex, talvez um Sekonda,
ou que poderia até ser um Omega Seamaster de £ 3.000
|
A
imagem-foto bem conhecida de Abu Bakr al-Baghdadi, líder do ISIL, com luxuoso relógio suíço no
pulso, é, nisso, emblemática: o ISIL é
bem organizado para propaganda pela rede e para negócios financeiros, embora
essas práticas ultra modernas sejam usadas para propagar e reforçar uma visão
ideológico-política que, muito mais que conservadora, parece ser movimento
desesperado para “reparar” delimitações hierárquicas bem visíveis.
Contudo, não
se deve esquecer que mesmo essa imagem de organização fundamentalista
estritamente disciplinada e regulada não está livre de ambiguidades: será que
haveria carência de opressão religiosa nos locais nos quais as unidades
militares do ISIL parecem operar? Ao mesmo tempo em que a
ideologia oficial do ISIL milita contra a permissividade ocidental, a
prática diária das gangues do ISIL inclui
orgias em ampla e grotesca escala, incluindo roubos, estupros seriais, tortura
e assassinato de infiéis.
Observada
bem de perto, a aparentemente heroica prontidão do ISIL para arriscar tudo ainda parece mais
ambígua.
Há muitos
anos, Friedrich Nietzsche percebeu como a civilização ocidental estava andando
na direção do Último Homem, uma criatura apática, sem grande paixão ou
comprometimento. Incapaz de sonhar, cansado da vida, não se expõe a riscos, buscando
só conforto e segurança:
Friedrich Nietzsche |
Um pouco de veneno de quando em quando: isso gera sonhos
agradáveis. E muito veneno por fim, para um agradável morrer. Ainda se
trabalha, pois trabalho é distração. Mas cuida-se para que a distração não
canse. Ninguém mais se torna rico ou pobre: as duas coisas dão trabalho. Quem
deseja ainda governar? Quem deseja ainda adoecer? Ambas as coisas são árduas.
Todos querem o mesmo, todos são iguais cada um é igual: quem sente de outro
modo vai voluntariamente para o hospício. “Descobrimos a felicidade”, diz o Último
Homem, e eles piscam o olho. [1]
Parece que a
fenda que separa o permissivo Primeiro Mundo e a reação fundamentalista a ele
acompanha cada vez mais e mais as linhas da oposição entre viver vida longa e
feliz, cheia de riqueza material e cultural, de um lado; e, de outro, dedicar a
própria vida a uma causa transcendente. Não seria isso o que Nietzsche chamou
de antagonismo entre niilismo “passivo” e niilismo “ativo”?
Nós, no
ocidente, somos o Último Homem nietzscheano,
imerso em estúpidos prazeres diários; enquanto os muçulmanos radicais estão
prontos a arriscar tudo, engajados na luta até o ponto da autodestruição. “A Segunda Vinda” de William
Butler Yeats parece dar perfeitamente conta de nosso sofrimento atual:
Aos melhores falta qualquer convicção. Enquanto os piores
estão plenos de ardor.
William Butler Yeats |
Essa pode
ser excelente descrição da atual fissura entre liberais anêmicos e
fundamentalistas apaixonados. “Os melhores” já não conseguem engajar-se
plenamente; “os piores” engajam-se apaixonadamente no fanatismo racista,
religioso, sexista.
Mas terroristas fundamentalistas são realmente fundamentalistas, no sentido
autêntico da palavra? Será que realmente creem? Fato é que falta a eles um
traço fácil de identificar nos fundamentalistas autênticos, de budistas
tibetanos aos amish nos EUA – a ausência de ressentimento e
inveja; a profunda indiferença em relação ao modo de vida dos que não creem.
Se os
chamados hoje fundamentalistas realmente cressem, teriam encontrado a própria
trilha rumo à Verdade e não se sentiriam ameaçados pelos não crentes. Por que
invejá-los? Quando um budista encontra um hedonista ocidental, ele dificilmente
o condena. Ele apenas observa com benevolência que a busca de felicidade do
hedonista se autoconsome, se autoderrota.
Ao contrário
dos verdadeiros fundamentalistas, os terroristas pseudo-fundamentalistas
sentem-se profundamente perturbados, intrigados e fascinados pela vida
pecaminosa dos incréus. Sente-se que, ao combater o outro-pecador, eles
combatem a tentação que os consome. Por isso, os chamados fundamentalistas do ISIL são uma desgraça para o verdadeiro
fundamentalismo.
É onde o
diagnóstico de Yeats falha, para explicar a desgraça de hoje: a intensidade
apaixonada de uma gangue é manifestação de uma falta de verdadeira convicção.
No fundo deles mesmos, os terroristas fundamentalistas também não conhecem a
convicção profunda – as explosões de violência são prova disso. Deve ser muito
frágil a convicção do muçulmano que se sinta ameaçado por uma caricatura
estúpida desenhada por jornalista estúpido num estúpido jornal dinamarquês de
baixa circulação. O terror fundamentalista islâmico não tem raiz na convicção
nos terroristas, da sua própria superioridade e no desejo deles de salvaguardar
a sua identidade cultural religiosa contra o massacre pela civilização de consumo global.
Humvees, sonho de consumo do ISIL? |
O problema
com o terrorista fundamentalista não é que nós o consideremos inferior a nós,
mas, ao contrário, que eles se consideram, em segredo, inferiores. Por isso,
nossa condescendência arrogante, as repetidas garantias politicamente corretas,
de que não nos sentimos superiores a eles, só fazem enfurecê-los cada vez mais
e alimentam neles o ressentimento.
O problema
não é diferença cultural (o esforço deles para preservar a identidade deles), mas o fato, exatamente
oposto, de que eles secretamente internalizaram nossos padrões e avaliam-se,
eles, pelos nossos padrões.
Paradoxalmente,
o que falta aos fundamentalistas do ISIL e a outros como eles é, precisamente, uma
boa dose daquela absoluta convicção da própria superioridade.
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[*] Slavoj Žižek (nasceu em Liubliana, capital da Eslovênia
em 21 de março de 1949), doutorou-se em Filosofia na sua cidade natal e estudou
Psicanálise na Universidade de Paris. Žižek é conhecido por seu uso de Jacques
Lacan numa nova leitura da cultura popular, abordando temas como o cinema de Alfred
Hitchcock e David Lynch, o leninismo e tópicos como fundamentalismo e tolerância,
correção política, subjetividade nos tempos pós-modernos e outros.
Em 1979, começou
a trabalhar no Instituto de Sociologia de Liubliana. Pouco depois, em 1980,
começou a publicar livros que examinavam as teorias Hegelianas e Marxistas a
partir do ponto de vista da teoria psicanalítica Lacaniana. Além disso, editou
certo número de traduções de Louis Althusser, Jacques Lacan e Sigmund Freud para
o Esloveno. Candidatou-se a presidente da Eslovênia em 1990, mas perdeu.
Tornou-se
largamente reconhecido como teórico contemporâneo a partir da publicação de O Sublime Objeto da Ideologia, seu
primeiro livro escrito em inglês, em 1989. O trabalho de Žižek não pode ser
facilmente categorizado. Ele retorna ao sujeito cartesiano e à Ideologia Alemã,
especialmente aos trabalhos de Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Immanuel Kant e
Friedrich Wilhelm Joseph Schelling.
Žižek é ateu e
suas teorias frequentemente vão contra as análises teóricas tradicionais. Ele
costuma ser politicamente incorreto e já causou diversas polêmicas em vários
círculos intelectuais. Ressalta com frequência que, para entender a política de
hoje, nós precisamos de uma noção diferente de ideologia.
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