21/9/2014, [*] Robert Fisk, The Independent, UK
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
E por que não inventam
uma coalizão de 50 “nações desejantes” para destruir o Ebola?!
John Kerry preside o CS da ONU em 20/9/2014 |
Quem tenha
estudado a Síria já sabe que não existe oposição “moderada’”
John Kerry
vai ficando cada dia mais parecido com William
McGonagall, o “pior poeta do mundo”, cujo horror, ante o desastre da
Ponte Tay, em 1879, gerou o imortal comentário de que [a tal desgraça] “será
lembrada por muito tempo”.
Como no
verso de McGonagall, as tentativas de Kerry para explicar a cruzada dos EUA
contra o mais recente inimigo malvado são tão ridículas, que se vai ficando
viciado nelas. E quando você pensa que a explicação capenga, de Kerry, para os
políticos americanos da cruzada iraquiana de Obama – o ISIL tem de ser
derrotado, puro e simples, e fim da história – não pode(ria) ficar mais
infantiloide, ela fica.
John Kerry |
Por
infantilismo – desafio os leitores a ler a frase seguinte até o fim, sem
nenhuma careta de “mas... ele não pode ter dito uma coisa dessas!”:
“Quero deixar bem claro que, quando acabarmos
aqui hoje, vocês me dirão o que pensam e eu saberei o que estão pensando” –
disse Kerry à Comissão de Relações Exteriores do Senado semana passada – “e vocês terão ouvido de mim e saberão o que
nós estamos pensando, o que o governo Obama está pensando, e que vocês têm uma
clara compreensão do que estamos fazendo hoje e faremos na sequência”. “Tudo coisa complexíssima”, disse Kerry –
e que, claro, sem dúvida, “será lembrada
por muito tempo”.
O mais
imediatamente chocante foi o mundo de fantasia de Obama o qual Kerry, com seu
jeito de moleque pesadão, representou. Quem tenha estudado a Síria, mesmo de
longe, e nem se fala dos que a conheçam de perto, sabe que a tal “oposição
moderada”, ficcional – supostos desertores do Exército Árabe Sírio oficial –
absolutamente não existe.
Corrupto,
desiludido, assassinado ou simplesmente re-desertado de volta ao ISIL ou para outro grupo associado da al-Qaeda,
o velho “Exército Sírio Livre” é, hoje, mito tão ridículo – e tão potente, para
os kerrys desse mundo – quanto os
arroubos de Mussolini de que o exército italiano poderia derrotar os britânicos
no Norte da África. Qualquer soldado sírio pode contar, de viva voz, que está
feliz por poder combater contra o tal “Exército Sírio Livre”, porque aquela “oposição
moderada” é especialista só, em fugir feito coelhos. Quem luta até a morte são
os “terroristas” de al-Qaeda-Nusra-ISIS/ISIL.
John Kerry |
Mas Kerry,
como os generais da Iª Guerra Mundial, vive num castelo de fadas de sua própria
imaginação.
“Na Síria, o combate em campo será feito pela
oposição moderada, a qual é o melhor contrapeso da Síria [sic] para extremistas
do tipo ISIS/ISIL” – eis o que ele disse à Comissão de Relações
Exteriores da Câmara de Deputados. – “E
podemos falar mais sobre aquela oposição moderada – que jeito tem, quem é, do
que são capazes hoje e do que poderão fazer – conforme nós avançarmos”. Como
os generais [Douglas]
Haig e [John] French, Kerry entrou em delírio.
O “Exército Sírio Livre”, disse Kerry, vem combatendo contra o ISIS/ISIL há dois anos – em Idlib, Aleppo, em torno
de Damasco e em Deir Ezzor e o governo sírio − Kerry insistiu − não dá combate, nem dará, ao ISIS/ISIL.
Isso é
absoluto nonsense.
A maioria
dos 35 mil soldados mortos do exército sírio foram mortos em combates contra
al-Qaeda e o ISIS/ISIL. E as únicas forças que realmente mantêm
coturnos em solo contra o ISIS/ISIL são o Hezbollah e os Guardas Revolucionários
do Irã, ao lado dos curdos.
Exaltar a
“oposição moderada” dois dias antes de as mais recentes vitórias do ISIS/ISIL já os terem trazido até a fronteira da
Turquia é absurdo, grotesco, ridículo.
E que
estadista ilustra(ria) a própria ideia de que sunitas e xiitas estariam em
aliança com os EUA, brandindo no ar a primeira página do The Wall Street Journal em que se vê um líder curdo, um ministro
iraquiano xiita e o ministro sunita de Relações Exteriores da Arábia Saudita
fotografados lado a lado? Kerry elogiou os clérigos sauditas por condenarem o ISIS/ISIL sunita, sem mencionar que muitos destacados
imãs sauditas consomem muito mais tempo desqualificando os EUA. Nem poderia,
mesmo, falar, dos clérigos paquistaneses que também declararam herético o ISIS/ISIL – porque, claro, passam praticamente todo o
tempo acusando os sauditas de financiarem o
ISIS/ISIL.
John Kerry brandindo no ar a primeira página do The Wall Street Journal |
Como
Cameron, Kerry serve-se do vocabulário da autoconfiança. Os EUA “de pleno
direito” e “sem dúvida alguma” tinham de apoiar os esforços do governo
iraquiano; e há “absoluta clareza” de que os EUA detiveram o ISIS/ISIL. Quanto ao “Estado
Islâmico” propriamente dito, não passa(ria) de “distorção insultante do Islã”,
“inimigo do Islã”, “culto militante fantasiado de movimento religioso” de
“assassinos a sangue frio” cuja filosofia “saiu da Idade da Pedra”. Mas... e
que diabo é isso?! Começamos por declarar que o ISIS/ISIL “saiu” da Idade Média; depois, que “saiu”
do século XVIII. Agora, “saiu” do ano 2.000 a.C.
William McGonagall |
Graças aos
céus temos o general John Allen – o qual, nem faz muito tempo, andava propondo
garantias de “segurança” para o Vale do rio Jordão que ambos, palestinos e
israelenses, puseram abaixo – para resolver o caso no Iraque. É o ex-vice
comandante da província Anbar do Iraque, homem – segundo Kerry – com “grande
respeito” na região, com “conhecimento das tribos sunitas” e – ah, mas que
perfeito momento McGonagall, esse – “de todo o pessoal por lá e que formam o mix a ser capaz de mobilizar a ação” [orig. “of all the folks there that are part of the mix to be able to mobilise
action”].
Não
surpreende que Kerry também tenha dito ao mundo que, dos 50 aliados
internacionais anti-ISIS/ISIL dos
EUA, alguns, sim, se engajarão em “atividade cinética”. Ah, é, pode apostar que
sim! Embora meu palpite seja que ninguém venha a ver qualquer força aérea árabe
unir-se ao bombardeio aéreo franco-norte-americano.
O que Kerry
absolutamente não nos pode dizer é tão simples quanto o que ele mente que será
simples a luta contra o ISIS/ISIL:
que terá de haver algum tipo de aliança – algum tipo! – entre o “ocidente” e o
Irã, para derrotar o ISIS/ISIL;
que essa aliança inevitavelmente terá de incluir algum entendimento não
revelado com a Síria de Bashar al-Assad; e quem sabe até, inclusive, com os
apavorantes, impensáveis guerrilheiros “super-terroristas” do Hezbollah, os quais – diferentes do que Kerry
diz do ISIS/ISIL – não andam por aí “matando e estuprando e
mutilando mulheres” ou vendendo meninas “para serem escravas sexuais de jihadistas”.
Mas, de homem que pensou que alinhavaria a paz
paletinos-israelenses em 12 meses de conversa fiada... o que mais se poderia
esperar? Sim, o ISIS/ISIL é o mais recente espectro a nos assombrar. Mas há
outro, não mais distante, que ameaça todos e que, esse sim, tem de ser
derrotado, “puro e simples, e fim da história”. Ameaça matar infinitamente mais
gente que o ISIS/ISIL.
Recebeu o nome de um obscuro rio africano. Quero dizer... E onde está a convocação
de uma aliança de 50 “nações desejantes”, para destruir o Ebola?!
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[*] Robert Fisk é filho de um ex-soldado britânico da Primeira Guerra Mundial. Estudou jornalismo na Inglaterra e Irlanda. Trabalhou como correspondente internacional na Irlanda - cobrindo os acontecimentos no Ulster - e Portugal. Em 1976, foi convidado por seu editor no The Times onde trabalhou até 1988 substituindo o correspondente do jornal no Oriente Médio. Mudou para o The Independent em 1989- após uma discussão com seus editores sobre modificações feitas em seus artigos, sem seu consentimento.
Cobriu a guerra civil do Líbano, iniciada em 1975; a invasão soviética do Afeganistão, em 1979; a guerra Irã-Iraque (1980-1988), a invasão israelense do Líbano, em 1982; a guerra civil na Argélia, as guerras dos Balcãs e a Primeira (1990-1991) e a Segunda Guerra do Golfo Pérsico, iniciada em 2003. Fisk notabiliza-se também pela cobertura ao conflito israelo-palestino. Ele é um defensor da causa palestina e do diálogo entre os países árabes, o Irã e Israel.
Considerado como um dos maiores especialistas nos conflitos do Oriente Médio, Fisk contribuiu para divulgar internacionalmente os massacres na guerra civil argelina e nos campos de refugiados de Sabra e Chatila, no Líbano; os assassinatos promovidos por Saddam Hussein, as represálias israelenses durante a Intifada palestina e as atividades ilegais do governo dos Estados Unidos no Afeganistão e no Iraque. Fisk também entrevistou Osama bin Laden, líder da rede terrorista Al-Qaeda em 1993, no Sudão, em 1996 e em 1997, no Afeganistão.
Robert Fisk é o correspondente estrangeiro mais premiado do planeta. Recebeu o Prêmio Correspondente Internacional Britânico do Ano sete vezes (as últimas em 1995 e 1996). Também ganhou o Prêmio Imprensa da Anistia Internacional no Reino Unido em 1998 e 2000.
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