terça-feira, 23 de setembro de 2014

Robert Fisk: — Conversa de John Kerry sobre o ISIS/ISIL é insulto à nossa inteligência

21/9/2014, [*] Robert Fisk, The Independent, UK
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

E por que não inventam uma coalizão de 50 “nações desejantes” para destruir o Ebola?!

John Kerry preside o CS da ONU em 20/9/2014
Quem tenha estudado a Síria já sabe que não existe oposição “moderada’”

John Kerry vai ficando cada dia mais parecido com William McGonagall, o “pior poeta do mundo”, cujo horror, ante o desastre da Ponte Tay, em 1879, gerou o imortal comentário de que [a tal desgraça] “será lembrada por muito tempo”.

Como no verso de McGonagall, as tentativas de Kerry para explicar a cruzada dos EUA contra o mais recente inimigo malvado são tão ridículas, que se vai ficando viciado nelas. E quando você pensa que a explicação capenga, de Kerry, para os políticos americanos da cruzada iraquiana de Obama – o ISIL tem de ser derrotado, puro e simples, e fim da história – não pode(ria) ficar mais infantiloide, ela fica.

John Kerry
Por infantilismo – desafio os leitores a ler a frase seguinte até o fim, sem nenhuma careta de “mas... ele não pode ter dito uma coisa dessas!”:

Quero deixar bem claro que, quando acabarmos aqui hoje, vocês me dirão o que pensam e eu saberei o que estão pensando” – disse Kerry à Comissão de Relações Exteriores do Senado semana passada – “e vocês terão ouvido de mim e saberão o que nós estamos pensando, o que o governo Obama está pensando, e que vocês têm uma clara compreensão do que estamos fazendo hoje e faremos na sequência”. “Tudo coisa complexíssima”, disse Kerry – e que, claro, sem dúvida, “será lembrada por muito tempo”.

O mais imediatamente chocante foi o mundo de fantasia de Obama o qual Kerry, com seu jeito de moleque pesadão, representou. Quem tenha estudado a Síria, mesmo de longe, e nem se fala dos que a conheçam de perto, sabe que a tal “oposição moderada”, ficcional – supostos desertores do Exército Árabe Sírio oficial – absolutamente não existe.

Corrupto, desiludido, assassinado ou simplesmente re-desertado de volta ao ISIL ou para outro grupo associado da al-Qaeda, o velho “Exército Sírio Livre” é, hoje, mito tão ridículo – e tão potente, para os kerrys desse mundo – quanto os arroubos de Mussolini de que o exército italiano poderia derrotar os britânicos no Norte da África. Qualquer soldado sírio pode contar, de viva voz, que está feliz por poder combater contra o tal “Exército Sírio Livre”, porque aquela “oposição moderada” é especialista só, em fugir feito coelhos. Quem luta até a morte são os “terroristas” de al-Qaeda-Nusra-ISIS/ISIL.

John Kerry
Mas Kerry, como os generais da Iª Guerra Mundial, vive num castelo de fadas de sua própria imaginação.

Na Síria, o combate em campo será feito pela oposição moderada, a qual é o melhor contrapeso da Síria [sic] para extremistas do tipo ISIS/ISIL” – eis o que ele disse à Comissão de Relações Exteriores da Câmara de Deputados. – “E podemos falar mais sobre aquela oposição moderada – que jeito tem, quem é, do que são capazes hoje e do que poderão fazer – conforme nós avançarmos”. Como os generais [Douglas] Haig e [John] French, Kerry entrou em delírio.

O “Exército Sírio Livre”, disse Kerry, vem combatendo contra o ISIS/ISIL há dois anos – em Idlib, Aleppo, em torno de Damasco e em Deir Ezzor e o governo sírio − Kerry insistiu − não dá combate, nem dará, ao ISIS/ISIL.

Isso é absoluto nonsense.

A maioria dos 35 mil soldados mortos do exército sírio foram mortos em combates contra al-Qaeda e o ISIS/ISIL. E as únicas forças que realmente mantêm coturnos em solo contra o ISIS/ISIL são o Hezbollah e os Guardas Revolucionários do Irã, ao lado dos curdos.

Exaltar a “oposição moderada” dois dias antes de as mais recentes vitórias do ISIS/ISIL já os terem trazido até a fronteira da Turquia é absurdo, grotesco, ridículo.

E que estadista ilustra(ria) a própria ideia de que sunitas e xiitas estariam em aliança com os EUA, brandindo no ar a primeira página do The Wall Street Journal em que se vê um líder curdo, um ministro iraquiano xiita e o ministro sunita de Relações Exteriores da Arábia Saudita fotografados lado a lado? Kerry elogiou os clérigos sauditas por condenarem o ISIS/ISIL sunita, sem mencionar que muitos destacados imãs sauditas consomem muito mais tempo desqualificando os EUA. Nem poderia, mesmo, falar, dos clérigos paquistaneses que também declararam herético o ISIS/ISIL – porque, claro, passam praticamente todo o tempo acusando os sauditas de financiarem o ISIS/ISIL.

John Kerry brandindo no ar a primeira página do The Wall Street Journal
Como Cameron, Kerry serve-se do vocabulário da autoconfiança. Os EUA “de pleno direito” e “sem dúvida alguma” tinham de apoiar os esforços do governo iraquiano; e há “absoluta clareza” de que os EUA detiveram o ISIS/ISIL. Quanto ao “Estado Islâmico” propriamente dito, não passa(ria) de “distorção insultante do Islã”, “inimigo do Islã”, “culto militante fantasiado de movimento religioso” de “assassinos a sangue frio” cuja filosofia “saiu da Idade da Pedra”. Mas... e que diabo é isso?! Começamos por declarar que o ISIS/ISIL “saiu” da Idade Média; depois, que “saiu” do século XVIII. Agora, “saiu” do ano 2.000 a.C.

William McGonagall
Graças aos céus temos o general John Allen – o qual, nem faz muito tempo, andava propondo garantias de “segurança” para o Vale do rio Jordão que ambos, palestinos e israelenses, puseram abaixo – para resolver o caso no Iraque. É o ex-vice comandante da província Anbar do Iraque, homem – segundo Kerry – com “grande respeito” na região, com “conhecimento das tribos sunitas” e – ah, mas que perfeito momento McGonagall, esse – “de todo o pessoal por lá e que formam o mix a ser capaz de mobilizar a ação” [orig. “of all the folks there that are part of the mix to be able to mobilise action”].

Não surpreende que Kerry também tenha dito ao mundo que, dos 50 aliados internacionais anti-ISIS/ISIL dos EUA, alguns, sim, se engajarão em “atividade cinética”. Ah, é, pode apostar que sim! Embora meu palpite seja que ninguém venha a ver qualquer força aérea árabe unir-se ao bombardeio aéreo franco-norte-americano.

O que Kerry absolutamente não nos pode dizer é tão simples quanto o que ele mente que será simples a luta contra o ISIS/ISIL: que terá de haver algum tipo de aliança – algum tipo! – entre o “ocidente” e o Irã, para derrotar o ISIS/ISIL; que essa aliança inevitavelmente terá de incluir algum entendimento não revelado com a Síria de Bashar al-Assad; e quem sabe até, inclusive, com os apavorantes, impensáveis guerrilheiros “super-terroristas” do  Hezbollah, os quais – diferentes do que Kerry diz do ISIS/ISIL – não andam por aí “matando e estuprando e mutilando mulheres” ou vendendo meninas “para serem escravas sexuais de jihadistas”.


Mas, de homem que pensou que alinhavaria a paz paletinos-israelenses em 12 meses de conversa fiada... o que mais se poderia esperar? Sim, o ISIS/ISIL é o mais recente espectro a nos assombrar. Mas há outro, não mais distante, que ameaça todos e que, esse sim, tem de ser derrotado, “puro e simples, e fim da história”. Ameaça matar infinitamente mais gente que o ISIS/ISIL. Recebeu o nome de um obscuro rio africano. Quero dizer... E onde está a convocação de uma aliança de 50 “nações desejantes”, para destruir o Ebola?!
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[*] Robert Fisk é filho de um ex-soldado britânico da Primeira Guerra Mundial. Estudou jornalismo na Inglaterra e Irlanda. Trabalhou como correspondente internacional na Irlanda - cobrindo os acontecimentos no Ulster - e Portugal. Em 1976, foi convidado por seu editor no The Times onde trabalhou até 1988 substituindo o correspondente do jornal no Oriente Médio. Mudou para o The Independent em 1989- após uma discussão com seus editores sobre modificações feitas em seus artigos, sem seu consentimento.
Cobriu a guerra civil do Líbano, iniciada em 1975; a invasão soviética do Afeganistão, em 1979; a guerra Irã-Iraque (1980-1988), a invasão israelense do Líbano, em 1982; a guerra civil na Argélia, as guerras dos Balcãs e a Primeira (1990-1991) e a Segunda Guerra do Golfo Pérsico, iniciada em 2003. Fisk notabiliza-se também pela cobertura ao conflito israelo-palestino. Ele é um defensor da causa palestina e do diálogo entre os países árabes, o Irã e Israel.
Considerado como um dos maiores especialistas nos conflitos do Oriente Médio, Fisk contribuiu para divulgar internacionalmente os massacres na guerra civil argelina e nos campos de refugiados de Sabra e Chatila, no Líbano; os assassinatos promovidos por Saddam Hussein, as represálias israelenses durante a Intifada palestina e as atividades ilegais do governo dos Estados Unidos no Afeganistão e no Iraque. Fisk também entrevistou Osama bin Laden, líder da rede terrorista Al-Qaeda em 1993, no Sudão, em 1996 e em 1997, no Afeganistão.  
Robert Fisk é o correspondente estrangeiro mais premiado do planeta. Recebeu o Prêmio Correspondente Internacional Britânico do Ano sete vezes (as últimas em 1995 e 1996). Também ganhou o Prêmio Imprensa da Anistia Internacional no Reino Unido em 1998 e 2000.

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