Radiografia do Mauro Carrara |
Mauro Carrara
Noite funda de domingo, dia 23, quase 24, véspera do aniversário da maior cidade do Brasil. Já caiu a chuvarada prevista. Pinga pouco, aos poucos.
Este experiente jornalista aposentado retorna do Jabaquara, na Zona Sul da cidade, para o seu Brás, o bairro mais brasileiro do Brasil.
Ao volante, a jovem e lépida Giana Carrara. Mas antes precisamos entregar o vetusto tio Savério no Belém, pouco mais adiante.
Logo no início do trajeto, uma surpresa aos olhos. Um viaduto alagado. Alagado vinte metros acima do chão.
Lago de Tucanodonosor |
Savério dispara sarcasticamente, sem rir: são as piscinas suspensas da São Paulo Babilônica, obra de Tucanodonosor.
Atravessamos a raia espalhando água em arcos altos, para os lados.
Em seguida, reparamos que poucos semáforos realmente se mostram úteis à coordenação do trânsito.
No bairro da Saúde, um deles marca o verde no sentido Centro por ralos dois segundos. Sim, dois segundos, cronometrados no velho Citizen de Savério.
Felizmente, muitos dos outros equipamentos luminosos apresentam-se dormentes, apagadinhos, em férias janeireiras.
Aqui e ali, não se pode distinguir o pavimento de asfalto da lâmina d’água.
Savério sorri, ainda enlevado de um Brunello caro que provou bem no jantar informal dos Di Giacomo.
- Não temos prefeito nem governador, mas acredito que tenhamos um “doge”. Está convertendo nossa São Paulo numa bárbara Veneza sulamericana – observa.
Segundo Savério, essa conversão é facilitadora do controle da gestão pública. Bastará, doravante, que o líder da municipalidade jure um “promissio ducalis”, no qual elencará todas suas promessas administrativas. E por elas será cobrado.
Radial Leste num domingo qualquer |
Na velha Radial Leste, outro mar, este de automóveis, inundando a noite de lanternas vermelhas.
Giana corta lateralmente por aqui e por ali, até que topa com uma rua da Mooca convertida em canal aquático.
Engata-se a ré. Retrocedemos. Outros nos seguem. Espetacularmente, uma dúzia de veículos paulistanos trafegam em fila, de costas, em mostra inequívoca de nossa criatividade coreográfica.
- Mais uma obra magnífica do dux Veneciarum – celebra Saverio.
Deliberamos desistir da entrega do parente. Vai pernoitar em minha casa. Assim, empreendemos fuga para o outro lado da linha de trem.
O Viaduto Bresser, entretanto, é outro desses espetaculares lagos suspensos. Navegamos em alta rotação, bravamente.
Mais adiante, em ruas de iluminação perdida, percebo uma luzinha vermelha no painel.
- Giana, está marcando o que aí? – pergunto.
- Ihhhh, aqueceu, vai fritar...
- Mas este carro não é novo, moderno? – insisto.
- Vendem como se fosse, pelo menos. Mas não é anfíbio.
Estacionamento no Jabaquara |
Estancamos adiante. Ela abre o capô. Preocupo-me. Ela gira a tampinha de leve. E ouço um apito de panela de pressão. Mais um pouco e um vapor oleoso se levanta denso na esquina deserta.
- O que foi? – pergunto.
- Sei lá, acho que pifou a ventoinha. Queimou o relé.
Logo percebo Saverio agachado do outro lado da rua. Inclina-se sobre a torrente da sarjeta, captando água numa garrafa de Coca-Cola.
- Isso é água suja. Vai estragar o motor e o senhor vai pegar uma leptospirose – ralha Giana.
Pouco depois, outro veículo passa pela rua, o motor soluçando. Soluça, soluça, até que para, desmaia.
Ouvimos uma discussão de marido e mulher. Uma criança parece reclamar. O motorista desce do carro e anda de cá para lá.
Mais uns gordos minutos e Giana se rende. Suspirando de prévio arrependimento, utiliza a água da chuva para reabastecer o radiador.
Prosseguimos pelo labirinto, procurando caminho firme e transitável. Vamos parar no Pari, nas franjas do rio maior que corta a cidade.
Ali, a cena é notável. Há lagos imensos e silenciosos, carros amontoados, lixo ensacado boiando lentamente.
Por do sol na Baixada do Glicério |
- A Marginal transbordou de novo – anuncia um.
Logo vemos uma família avançando pela água. A criança de cavalinho no pai. A mulher com água pelas coxas, carregando uma bolsa e sapatos de saltos altos.
- Larguei o carro lá. Não vou arriscar. Chega, cansei. Vamos embora de São Paulo – revolta-se o sujeito, numa declaração ao bando de curiosos.
- Você não pode largar o carro lá, mano. A prefeitura vai processar você – intromete-se um baixinho de camisa regata.
- F...-se! – retruca o cidadão. – Quero um hotel. Estamos cheirando a bosta.
Damos meia volta, pegamos a avenida na contramão. Agora, sou o guia. Seguimos por caminhos estreitos, num ziguezague prudente.
Até que o motor ferve novamente. Resolvemos parar e esperar o resfriamento natural.
Carros soluçando, quase mortos |
Passa um carro por nós, soluçando. Morre logo à frente. É o mesmo. Talvez o motorista estivesse nos seguindo. Aquieto-me.
Savério continua a exercitar seu humor de Toscano, seco e de taninos exuberantes, como alguns dos melhores vinhos de sua região.
- Nosso doge, além de tudo, é homem de humildade ímpar. Atribui todas as suas incríveis obras a São Pedro.
- Pois é, pois é – assinto eu, sem animação.
- E nossa mídia é fiadora dessa modéstia. Nas tragédias da Serra fluminense, deu todo crédito a Lula e Dilma. Aqui, tudo é obra de Pedro. Se não é Pedro, é o povo que se excede em brincadeiras irresponsáveis com o lixo.
Giana arranca as sandálias.
- Olhaaa, tem um pedaço de jornal grudado aqui – aponta com nojo, erguendo o pé molhado à altura do volante.
- Agora infectou mesmo – aterroriza-se Saverio, de olhos arregalados.
- Será que vamos chegar em casa antes de amanhecer? – pergunto, sem obter resposta.
São Marcos, padroeiro da São Paulo Veneziana orando |
- Olha... Essa é a hora do Marcos, o goleiro deles, se aposentar e assumir um cargo de acordo com sua qualidade e condição de milagreiro... – afirma Saverio, um anarcorinthiano radical.
- O que tem esse goleiro deles? – dispara Giana, um pouco impaciente, quase indignada.
- Ora, quem é o padroeiro de Veneza? São Marcos. Temos um aqui, de carne e osso. Que assuma logo a defesa da São Paulo Veneziana, esse exemplo bárbaro de metamorfose urbana.
Faz-se silêncio. A luz é escassa.
Agora, à volta do carro à frente, marido e mulher gesticulam. Há um bate-boca espetacular cujo conteúdo não logramos decifrar.
Agachada, a criança brinca com a água que corre no meio fio. Incessante.
ilustrado por redecastorphoto
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