27/7/2012, Pepe Escobar,
Asia Times Online – The Roving Eye
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Pepe Escobar |
A política externa
turca, codificada pelo ministro de Relações Exteriores Ahmet Davutoglu foi
conhecida pelo apelido “zero problemas com nossos vizinhos”. Quando a Turquia
começou a clamar por mudança de regime na Síria, aquela política virou “um vasto
problema com um de nossos vizinhos” (apesar de o próprio Davutoglu ter admitido
publicamente que a mudança de regime falhara).
Agora, em mais uma
reviravolta, a tal política já está virando “todo e qualquer problema, os mais
variados, com dois de nossos vizinhos”. Entra em cena – inevitavelmente – o tabu
mãe de todos os tabus de Ancara: a questão curda.
Ancara costumava
caçar e bombardear rotineiramente os guerrilheiros curdos do PKK que passavam de
Anatólia para o Curdistão iraquiano. Atualmente, talvez se esteja posicionando
para fazer o mesmo no Curdistão sírio.
Recep Tayyip Erdogan |
O primeiro
ministro turco Recep Tayyip Erdogan foi à televisão turca, de faca nos dentes:
“Não permitiremos que um grupo terrorista estabeleça acampamentos no norte da
Síria e ameace a Turquia.”
Referia-se ao
Partido Democrático Curdo Sírio [orig. Syrian Kurdish Democratic Party
(PYD)] – afiliado ao PKK; depois de negociação silenciosa com o regime de
Assad em Damasco, o Partido Democrático Curdo Sírio controla áreas-chaves no
nordeste da Síria.
Assim sendo,
Ancara pode garantir logística a dezenas de milhares de “rebeldes” da OTAN da
Síria – entre os quais se incluem magotes de “insurgentes” árabes sunitas
linha-duríssima, antigamente chamados “terroristas”; mas, se os curdos sírios –
que integram a oposição síria – demonstrarem alguma independência, eles
imediatamente voltam a ser considerados “terroristas”.
Tudo
sobredeterminado pelo pesadelo de curtíssimo prazo que assola Ancara: a
possibilidade de criar-se um Curdistão sírio semiautônomo muito intimamente
ligado ao Curdistão iraquiano.
No Curdistão sírio - milícia feminina armada pró-Assad |
Siga o petróleo!
Relatório do
Instituto Palme, sueco [1], mostra a
que parece ser a melhor radiografia da hiper fragmentada oposição síria. Os
“rebeldes” são controlados pelo Conselho Nacional Sírio [orig. Syrian National
Council (SNC), de exilados que vivem fora da Síria e suas milícias de mil
cabeças, feito a Hidra, as mais de 100 gangues que constituem o Exército Sírio
Livre ‘Que de Livre Pouco Tem’ [orig. Not Exactly Free Syrian Army
(FSA)].
Mas há também
muitos outros partidos, inclusive socialistas, marxistas, nacionalistas
seculares, islamistas, o Conselho Nacional Curdo [orig. Kurdish National
Council (KNC)] – coalizão de 11 partidos muito próximo do governo curdo
iraquiano; e o Partido Democrático Curdo Sírio.
O Conselho
Nacional Curdo e o Partido Democrático Curdo Sírio podem discordar em
praticamente tudo, mas concordam quanto ao essencial: a guerra civil na Síria
não pode invadir o Curdistão sírio. Afinal de contas, os curdos não são nem
pró-Assad nem pró-oposição; eles só se interessam pelo que tenha a ver
diretamente com os curdos. O acordo foi selado sob o patrocínio de outros curdos
– os primos curdos iraquianos. E o acordo explica por que os curdos estão de
fato no controle – pleno controle – de um enclave curdo no nordeste da
Síria.
Acampamento de refugiados curdos iraquianos na Síria |
No que tenha a ver
com a paranoia turca, há uma longa e sinuosa estrada [*] que leva de uma área
semiautônoma a um Curdistão independente onde se reúnam os curdos sírios e
iraquianos – para nem mencionar, no longo prazo, também os curdos turcos. Caso é
que metade de um possível futuro Curdistão independente seria de fato turco. O
pesadelo em andamento em Ancara é que
quanto mais os Curdistões iraquiano e sírio aproximam-se da Turquia, mais
aumentam o barulho e a agitação entre os curdos turcos em Anatólia.
As prioridades
divergem: o objetivo chave dos curdos iraquianos é tornarem-se independentes de
Bagdá (há quantidades gigantes de petróleo em solo curdo iraquiano). Mas os
curdos sírios não têm petróleo algum. Não ter petróleo implica, para o que
conta, não ter função, papel a desempenhar nem importância regional alguma, no
Oleogasodutostão.
Tudo isso tem a
ver, principalmente, com dois oleogasodutos estratégicos, de Kirkuk a Ceyhan –
negócio tratado diretamente entre Ancara e os curdos iraquianos e que, em tese,
ignorou Bagdá.
Não, não foi bem
assim. Como Bagdá deixou bem claro, esses oleogasodutos só poderão começar a
operar depois de paga a fatia devida ao governo central, que paga 95% do
orçamento do Curdistão iraquiano.
“Quero ver seus
documentos de IT (Identidade Terrorista)”
Massoud Barzani |
O presidente do
Curdistão iraquiano Massoud Barzani disse à al-Jazeera [2] que sim – estão treinando os curdos
sírios que desertaram do Exército Sírio para defender o enclave de facto. Foi
Barzani quem supervisionou o negócio chave selado em Irbil dia 11 de julho, que
levou as forças de Assad a retirar-se do Curdistão sírio.
As cidades que a
mídia está chamando de “cidades libertadas” [3] são agora “conjuntamente
governadas” pelo Partido Democrático Curdo Sírio e o Conselho Nacional Curdo.
Formaram o que é conhecido agora como um Corpo Supremo Curdo.
Ninguém conseguirá
jamais subestimar a capacidade dos curdos para atirar no próprio pé (e para
outros lados). Portanto, é fácil entender que esse frenesi transnacional curdo
aterroriza completamente não poucas almas em Istambul e Ancara.
Esse comentarista [4]
do diário turco
Hurriyet
disse bem: “os árabes estão combatendo; os curdos estão vencendo.” A
Primavera Curda está ao alcance da mão. E já chega às fronteiras da
Turquia.
Ahmet Davutoglu |
Davutoglu poderia
ter previsto: quando uma ex-política externa de “problemas zero” passa a dar
abrigo a uma oposição armada que combate governo vizinho, só poderia dar
confusão.
Sobretudo quando
você começa a sentir ganas de matar “terroristas” que vivem em território
vizinho – mesmo que seus aliados ocidentais os vejam como “combatentes da
liberdade”. E, ao
mesmo tempo, você apoia ativamente jihadis salafistas – ex-terroristas, atuais
insurgentes – que cruzam livremente, para lá e para cá, por suas
fronteiras.
Um Erdogan cada
dia menos consistente e mais errático, invocou um “direito natural” [5] de combater “terroristas”. Mas,
antes, o terrorista tem de mostrar o IT (documento de Identidade Terrorista): se
for terrorista sunita árabe, passa livremente; se for curdo, leva chumbo.
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Notas de
rodapé
[1] Uppsala, Sweden,
May 2012, Olof Palm International
Center: “Divided
They Stand –An Overview of Syria’s Political Opposition Factions”
[2] 23/7/2012, Al-Jazeera, Jane Arraf,
em: “Iraqi
Kurds train their Syrian brethren”
[3] 26/7/2012, Kurd Net, “Iraq's
Kurdistan Peshmerga forces will be called into Syria when needed, PYD Leader
says”.
[4]. 27/7/2012, Hurriyet Daily News, Ertuğrul Özkök
em:“The
Arab Spring has transformed into the Kurdish Spring”.
[5]. 27/7/2012, Hurriyet Daily News, Doğan News Agency em: “PM
declares Syria intervention a ‘natural right’”.
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Nota dos
tradutores
[*] Orig. “Long
and winding Road”. É verso dos Beatles. Pode ser visto/ouvido a
seguir:
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