terça-feira, 3 de agosto de 2010

EUA: espionagem dissemina epidemia distópica[1]

4/8/2010, David Isenberg, Asia Times Online – AToL

Traduzido por Caia Fittipaldi

David Isenberg é professor adjunto do Cato Institute, pesquisador associado do

Independent Institute, veterano da Marinha dos EUA e autor de livro recém lançado

Shadow Force: Private Security Contractors in Iraq.

Recebe e-mail em: sento@earthlink.net


Considerando revelações dos últimos anos, que vão de denúncias-delações e depoimentos a informações divulgadas sobre o sistema prisional da CIA, torturas em interrogatórios e “grampos” plantados pela Agência Nacional de Segurança [ing. National Security Agency], chamados “vigilância sem mandato judicial” [ing. "warrantless surveillance"], é difícil não dizer, à moda de Claude Rains no filme Casablanca, que todos estamos “chocados, chocados”, por saber que a inteligência dos EUA é tão massiva e geral que a vigilância, de fato, tornou-se virtualmente impossível.


Segundo matéria publicada no Washington Post mês passado, em três partes, sob o título “Top Secret America” [2], assinada por Dana Priest e William Arkin, produto de dois anos de investigação, “O governo construiu um sistema de segurança nacional e de inteligência tão gigantesco, tão complexo e tão difícil de gerir, que ninguém sabe, de fato, se cumpre sua principal função: garantir a segurança dos cidadãos.”


O Post descreveu uma burocracia semelhante à província de “Oceânia” da “Pista de Pouso n.1” do romance distópico 1984, de George Orwell [3] – um mundo de guerra perpétua e vigilância invasiva total pelo governo, que permite ao partido manipular e controlar o público –, o que não passa de um glacê de bolo, para os que gostem de ironias.


A evidência de que haja um segundo “EUA Top-secret” espalhado pelo país preocupa muito menos do que o fato de que ninguém sabe, de fato, o que aquela “América oculta” existe para fazer, nem como faz. Nesse sentido a coisa é parecida com o filme Brazil [4], de 1985, dirigido por Terry Gilliam, talvez mais do que com a “Oceânia” de Orwell. O fim do primeiro artigo do Post é eloquente:


“Enquanto isso, oito quilômetros a sudoeste da Casa Branca, o Departamento de Segurança Doméstica [ing. Department of Homeland Security] já encontrou terreno para o novo quartel-general, a ser partilhado com a Guarda Costeira. Em breve, onde havia o Sanatório St Elizabeth’s para doentes mentais em Anacostia, brotará uma vitrine de 3,4 bilhões de dólares da segurança nacional, nascida das ruínas daqueles muros de tijolos; abrigará a maior repartição pública de todo o governo dos EUA jamais construída, desde o Pentágono.”


De fato, a existência desses EUA Top Secret é apenas mais um dos aspectos que afligem a cultura e o sistema político dos EUA. A contraparte de segurança desse quadro é o que a professora Janine Wedel detalhou em livro de 2009, Shadow Elite: How the World's New Power Brokers Undermine Democracy, Government, and the Free Market [Elite oculta: como os operadores do novo poder minam a democracia, o governo e o mercado]. O livro mostra vários operadores políticos norte-americanos que convergiram para uma rede única que ascendeu ao poder na onda de quatro processos convergentes de transformação dos séculos 20 e 21: a terceirização e a desregulação do Estado e do governo; o fim da Guerra Fria; o crescimento das tecnologias da informação; e “a implantação do crédito de “confiabilidade” [5] [ou de “credibilidade”, que não são sinônimos, mas no Brasil usam-se como se fossem (NT)]”.


O que os jornalistas Priest e Arkin sabem bem, mas não escreveram claramente, é que, depois do 11/9, o governo George W Bush pôs em ação a vigilância total, sob a desculpa de evitar que terroristas atacassem os EUA. Em seguida, as redes governamentais de vigilância cresceram desmesuradamente, apoiadas por milhares de funcionários do governo e de empresas privados, muitos executando trabalho duplicado. Há hoje dezenas de milhares de agentes do governo dos EUA que trabalham em serviços de vigilância, funcionários públicos e empregados de empresas privadas, que vivem de monitorar as fichas dos cidadãos, anotações de todos os tipos e todas as comunicações, sem qualquer “transparência” que permita supervisão pelo Congresso ou pela opinião pública.


Dito de outro modo, o verdadeiro problema é que as empresas listadas nas matérias do Post existem quase exclusivamente para o único propósito de executar tarefas que pertencem a agências públicas que têm de ser reguladas e monitoradas.


A série publicada pelo Post tem a única importância de conferir àquelas informações o imprimatur do reconhecimento pelo jornalismo da elite, de que o complexo de contraterrorismo que foi ali noticiado – com apenas poucas linhas sobre atividades também não coordenadas e também quase totalmente desconhecidas, da comunidade de inteligência, da segurança nacional e do próprio governo – está engordando mais depressa que os norte-americanos obesos, outra epidemia que fere fundo a carne dos EUA.


Mas sob vários aspectos, o Post apenas codificou o que muitos outros jornalistas e acadêmicos já observaram nos últimos anos, como Greg Miller (ex-Los Angeles Times), Tim Shorrock que escreveu Spies For Hire [Espiões de aluguel] e Mark Mazzetti do New York Times. (Shorrock, em 2007, escreveu importante série de artigos em Salon nos quais informou que 70% do orçamento da inteligência dos EUA era, em 2007, consumido em contratos com empresas privadas). Em outras palavras: a matéria do Post é exemplo de notícia que não é notícia se não for publicada pelo Washington Post.


Não se trata de diminuir a importância do que fez o Post. A matéria lá está, na Internet, e é ampla fonte de informações para quem se interessar por saber quem faz o quê, mas não sabia onde procurar. De fato, há muito mais informação na publicação online do que nas matérias impressas. A apresentação online inclui links pelos quais se podem visitar as agências governamentais e examinar os cargos e funções, e ver como muitas empresas privadas contratadas estão ativas nos níveis mais top-secret e em onde, e conhecer várias das próprias empresas citadas na matéria do jornal, para saber para quem trabalham e (em alg uns casos) onde estão fisicamente instaladas. (...) Ninguém antes havia reunido numa só página online um banco de dados acessível, no qual qualquer um pode explorar os milhares de conexões entre organizações do Estado e empresas privadas contratadas. Por exemplo, quem procurar descobrirá que a empresa privada de segurança hoje chamada “Xe Services”, antes chamada “Blackwater”, muito citada no noticiário ultimamente por seu trabalho no Iraque e no Afeganistão, executa hoje 23 tipos de serviços top-secret para o governo dos EUA.


Também é boa notícia que o Post tenha recursos financeiros para manter projeto de investigação de dois anos, embora, dado o status do jornal, nem chegue a surpreender. Afinal, apesar das limitações, sim, o trabalho do Post na Internet é, de longe, a mais bem organizada e acessível base de dados visualizáveis que já se fez, até hoje. Esforços anteriores, como “Who's Who in Intelligence Contractors” [Quem é quem nas empresas privadas de espionagem”], trabalho conjunto de Sharrock e da associação CorpWatch, levou a resultados bem mais modestos.


Mas a série que o Post publicou não fez todo o serviço que poderia ter feito. A série começa com um panorama, depois foca o grande número de empresas privadas que operam à volta da empreitada da segurança nacional nos EUA; numa terceira parte, examina uma comunidade específica (a Fort Meade/BWI área do aeroporto em Maryland) que cresceu muito, em parte como decorrência do crescimento da Comunidade de Inteligência [ing. Intelligence Community (IC)]. Sabe-se que o Washington Post está trabalhando com a televisão e rádio públicos nos EUA (ing. Public Broadcasting Service), numa série para o Programa Frontline, que deve ir ao ar em outubro.


Mas o Post deixou sem noticiar os laços entre empresas individuais e agências específicas, embora tenha citado algumas empresas e a localização delas.


Seja como for, a matéria do Post, antes de publicada, já era tema de preocupação da Comunidade de Inteligência. No início de julho, Art House, diretor de comunicações do Gabinete do Diretor da Inteligência Nacional [ing. Office of the Director of National Intelligence] enviou memorando aos encarregados de relações públicas da própria comunidade. Escreveu:


“Antecipamos os seguintes temas:


· A inteligência cresceu exponencialmente e tornou-se inadministrável, com superposição de cargos e funções e excesso de força-de-trabalho terceirizada.

· A Comunidade de Inteligência e o Departamento de Defesa desperdiçaram consideráveis recursos e tempo, sobretudo em áreas de contraterrorismo e contrainteligência.

· A inteligência perdeu de vista a missão que recebeu depois do 11/9 e está consumindo sua energia em programas concorrentes e redundantes [6].


Em poucas palavras, House interpreta a investigação em busca de fatos, como complô para construir retrato negativo da inteligência. Dificilmente se encontraria melhor exemplo para ilustrar o excesso de empresas privadas contratadas: quando algum jornalista empenha-se em cumprir uma missão protegida constitucionalmente, de fiscalizar o governo e as contratações do governo, o governo assume, imediatamente que está sob ameaça de ataque.


House não é ingênuo. Como Arkin observou depois, em entrevista pelo rádio, “eles sabiam perfeitamente o que estávamos fazendo, e nós os informamos do que faríamos, oficialmente, no início do ano. A ideia de aparecerem, na última hora, e se declararem preocupados com o que publicamos, parece-me, bem visível, tentativa clássica de “não aparecer com o traseiro ao vento”.


Mas, ignorando por um momento que todas as burocracias aspiram a convencer a opinião pública de que são indispensáveis e sempre precisam de mais, nunca de menos, dinheiro público, House pode ter manifestado opinião pessoal sua, pelo menos no primeiro item. É absolutamente indiscutível que a Comunidade de Inteligência dos EUA cresceu desmesuradamente.


Considere-se que em setembro último, o então diretor da Inteligência Nacional Dennis C Blair revelou que os EUA haviam gasto 75 bilhões de dólares em operações de inteligência em todo o mundo, nas quais trabalham 200 mil pessoas. E esse número não inclui muitas atividades militares e muitos programas de contraterrorismo.


Em 2007, o governo Bush declarou que o custo das atividades de inteligência nacionais chegara a 43,5 bilhões de dólares. Para o ano fiscal de 2008, estimara-se gasto de 47,5 bilhões. Nos dois anos, os números da inteligência militar foram mantidos secretos.


Segundo relatório do Serviço de Pesquisas do Congresso dos EUA divulgado em julho passado, o então Diretor da Central de Inteligência George Tenet declarou, dia 15/10/1997, que o gasto agregado de inteligência e atividades relacionadas à inteligência, no ano fiscal de 1997 fora de 26,6 bilhões. Em março de 1998, Tenet divulgou os gastos estimados para o ano fiscal em curso, 1998: 26,7 bilhões.


Alguns dos achados do Post chamam mesmo a atenção; outros, menos. Chama a atenção que:


  • Há 1.271 organizações governamentais e 1.931 empresas privadas trabalhando em programas relacionados ao contraterrorismo, à segurança interna e em atividades de inteligência em cerca de 10.000 endereços em todos os EUA.

  • Cerca de 854 mil pessoas, 1,5 vezes a população de Washington DC, têm credenciais que lhes dão pleno acesso a locais e assuntos de segurança classificados como top-secret (TS), segurança máxima.

  • Em Washington e na área próxima, há 33 complexos de prédios em construção ou construídos depois de setembro de 2001, nos quais operam agentes ou agências de inteligência categoria top-secret. Juntos, ocupam área equivalente a quase três Pentágonos ou 22 Capitólios – cerca de 1,6 milhões m2.

  • Várias agências de segurança e inteligência fazem o mesmo trabalho, gerando retrabalho e desperdício. Por exemplo, 51 organizações federais e comandos militares operam em 15 cidades dos EUA, fazendo o acompanhamento do fluxo do dinheiro que entra e sai de redes terroristas.

  • Analistas que trabalham com documentos e conversações obtidas por espiões estrangeiros e domésticos partilham suas avaliações e interpretações publicando 50 mil relatórios por ano – volume tão grande, que a maioria dos relatórios são rotineiramente ignorados.


Os três primeiros itens acima são ilustrações gráficas de um sistema que padece de excesso de entradas, como algas que crescem tão rapidamente num lago que consomem todo o oxigênio da água e matam toda a vida do lago. Bom exemplo é a relação detalhada, que o Post oferece de organizações recém-criadas:


Com a abundante oferta de dinheiro, as agências de inteligência multiplicaram-se. 24 organizações foram criadas no final de 2001, inclusive o Gabinete de Segurança Nacional e a Força Tarefa de Rastreamento de Fundos de Terroristas Estrangeiros [ing. Foreign Terrorist Asset Tracking Task Force]. Em 2002, 37 outras foram criadas, para rastrear armas de destruição em massa, recolher ‘evidências’ de ameaças e coordenar o novo foco dirigido ao contraterrorismo. No ano seguinte, criaram-se mais 36 novas organizações; depois, mais 26; e depois, mais 31; e mais 32; e mais pelo menos 20 ao ano, nos anos de 2007, 2008 e 2009.


Ao todo, pelo menos 263 organizações foram criadas ou reorganizadas em resposta ao 11/9. Cada uma exigiu mais pessoal, e essas pessoas exigiram mais apoio administrativo e logístico: telefonistas, secretários, bibliotecários, arquitetos, operários de construção, especialistas em ar-condicionado e, para que tudo isso funcionasse, há também faxineiros e copeiros com credenciais de acesso a instalações top-secret.


Em relação a essas credenciais top-secret, vale lembrar que, no auge da Guerra Fria não havia tanta. Tampouco havia tantas quebras de segurança. A evidência de que praticamente todas as autorizações emitidas pela segurança nos EUA são top-secret já criou, de fato, uma bomba-relógio implantada na segurança dos EUA e já acionada, que não preocupa ninguém.


Em relação a esse problema, o problema central – e sobre o qual o Washington Post nada diz –, é que a al-Qaeda e seus aliados e simpatizantes são problema pequeno e administrável. E o aparato criado para enfrentá-los, esse sim, já é hoje plena e absolutamente, ameaça existencial aos EUA.


Nem no auge da Guerra Fria, jamais existiu coisa alguma semelhante ao Godzilla pós-11/9 que há hoje.


Interessante que, na primeira parte, o Post diz que “nosso banco de dados online de organizações governamentais e empresas privadas foi construído exclusivamente a partir de registros públicos. A investigação concentrou-se nos serviços publicamente descritos como top-secret, porque as informações classificadas dentro desses serviços como top-secret são numerosas e extensas demais para serem acuradamente examinadas”.


Para quem conheça o sistema norte-americano de classificação, essa informação diz muito sobre a natureza hiper disfuncional de todo o sistema, que facilita a classificação errada de informação, como o Projeto da Federação de Cientistas dos EUA sobre Segredos do Governo [ing. Federation of American Scientists Project on Government Secrecy] demonstrou detalhadamente em relação a vários anos.


O que o banco de dados do Post também indica é que se pode obter muita informação de inteligência aproveitável a partir de fontes abertas de dados não secretos de inteligência [ing. unclassified open source intelligence (OSINT)] cujo acesso não requer credenciais especiais. Embora essas ideias tenham ganho defensores nas duas últimas décadas, é onde, afinal, se pode ultrapassar a retórica oca; mas são possibilidades tratadas como o primo-pobre de toda a comunidade de inteligência.


O que o Post demonstrou sobre retrabalho e redundância é útil, mas não é novidade. Qualquer pessoa que tenha lido o Relatório Final da Comissão do 11/9 de 2004 chegou à mesma conclusão. E quanto à publicação de montanhas de relatórios de inteligência que são sistematicamente ignorados – nunca foi diferente desde a primeira comunidade de inteligência que houve no mundo.


A segunda parte da série trata da incorporação de empresas privadas no serviço secreto nacional. Tampouco é novidade. De fato, é a contraparte da Comunidade de Inteligência, do que fazem o Pentágono e o Departamento de Estado, que contrata empresas como DynCorp, MPRI, ou Blackwater, atualmente rebatizada como “Xe Services LLC”. As mesmas empresas trabalham tanto para o Pentágono quanto para a Comunidade de Inteligência, segundo o banco de dados do Post.


O Post estima que, das 854 mil pessoas com credencial top-secret, 265 mil são empregados de empresas privadas contratadas. Ironicamente, o Post oferece número mais preciso dos contratados privados, em “Top Secret America”, do que o número que o Pentágono conhece de sua própria força-de-trabalho contratada. Diz o Post:


“O governo não sabe o número de empregados privados que estão em sua folha de pagamento. O secretário de Defesa Robert Gates disse que planejava reduzir o número de contratados privados da Defesa em cerca de 13%, reduzindo aquele número a níveis de antes do 11/9, mas que ainda não havia conseguido fixar o número atual a partir do qual trabalhar. “Sei que é uma confissão terrível”, disse ele. “Não há quem me dê o número exato de quantos contratados privados trabalham para o Gabinete do Secretário de Defesa”, completou, referindo-se só à banda civil do departamento.”


Apesar de grande parte da informação que o Post ofereceu ser útil, muito daquilo já havia sido noticiado em vários artigos da imprensa especializada. E muito, do que se sabe, tampouco foi relembrado pelo Post. Tim Shorrock escreveu num blog da Atlantic Magazine:


Bom... Depois de três dias de cobertura anódina, já é seguro dizer que o Post acertou: era de fato impossível que sua equipe abraçasse toda a história ou explicasse todo o significado político do mundo secreto que expuseram.


Mas o Post nem chegou perto de tocar no complexo tema do que significa haver executivos de empresas privadas misturados nos mais altos níveis da segurança dos EUA, partilhando os mais sensíveis segredos com autoridades do governo. Boa parte do que foi publicado nem novidade é – notícias velhas decoradas com infográficos e ‘soluções gráficas’ – que poderiam ter sido manchete há anos, não fosse o empenho do próprio Post em mascarar, desde o nascimento, o crescimento do capitalismo norte-americano ‘de segurança’, desde 2001.


Mas o Post deveria ter parado ao final da Primeira Parte e deixado descansar o resto. Se se lê a matéria além dos números e das frases escolhidas a dedo de Bob Gates, Leon Panetta, diretor da CIA e outros altos funcionáros, vê-se que o que o Post publicou não passa de reportagem pedestre. Ali não há novidades sobre a parte privatizada da segurança nacional dos EUA.


Ainda pior, não há praticamente coisa alguma, na matéria do Post, sobre as profundas questões políticas criadas pela privatização da segurança, incluída aí a questão óbvia do troca-troca de cargos entre os contratados e os que contratam. Inacreditavelmente, Priest e Arkin não dizem que Mike McConnell (Diretor Nacional de Segurança do governo Bush) e John Brennan (conselheiro de assuntos de contraterrorismo do governo Obama) eram ambos, antes de assumir seus cargos, empresários destacados nas áreas nas quais em seguida passaram a dirigir e aconselhar o Estado. Que importância tem isso? Ora! McConnell saiu diretamente da empresa Booz Allen Hamilton, uma das grandes contratadas da Comunidade de Segurança e conselheiro da NSA; hoje, está de volta ao emprego antigo, na Booz. E Brennan foi alto execu tivo da The Analysis Corporation, empresa que construiu o principal banco de dados sobre terroristas para o Centro Nacional de Contraterrorismo (em que Brennan mandava).


Não há sequer uma linha, na matéria do Post, que lembre que o tenente-general James Clapper (aposentado), que foi sabatinado no Senado antes de para ser nomeado para o Departamento de Inteligência Nacional (DNI), no segundo dia da publicação das matérias do Post, teve antanho laços muito íntimos com as principais empresas contratadas pela segurança e inteligência dos EUA. Clapper foi diretor da Agência Nacional de Inteligência Geoespacial [ing. National Geospatial-Intelligence Agency], que sempre teve contratos gigantescos com uma empresa satélite contratada pelo Governo; quando deixou a NGA, passou a trabalhar no board da mesma empresa. O Post tampouco menciona a Intelligence and National Security Alliance, maior associação de empresas contratadas pela NSA e pela CIA, da qual os três – McConnell, Brennan e Clapper foram presidentes. Por quê? Não é parte da mesma história? Teria a experiência pessoal de Clapper influenciado a furiosa defesa que fez da contratação de empresas privadas para as agências e serviços de segurança, em sua sabatina no Congresso? Ou, quem sabe, se mencionasse esses fatos, o Post perderia acesso ao ODNI e à Casa Branca?


A série do Post deixou muitas perguntas sem resposta. O que separa os empresários que trabalham para os militares e os que trabalham para a inteligência? Quantas empresas contratadas pela inteligência trabalham de fato em atividades de inteligência e análises, em comparação a quantos só trabalham em atividades-meio de apoio apenas técnico? Quantas empresas das que já fizeram serviços para o setor público tiveram seu desempenho analisado objetivamente, para saber se o cálculo custo-benefício pendia mais para o lado das empresas, que do Estado? Se foram, onde estão os diagnósticos e resultados das avaliações? Em que medida a expansão de programas top secret contribuiu para dificultar o trabalho de supervisão pelo Congresso?


Um dos modos de avaliar as matérias do Post é tomá-las como uma pesquisa das preferências do público nos EUA. De modo geral, não gostam de gastar tempo com detalhes. Olham a segurança como olham os militares. Os EUA têm uma força de trabalho de voluntários profissionalizados. Desde que não haja planos e a exigência orçamentária pareça razoável, ninguém considera detalhes, nem em tempo de guerra.


Assim como olham desatentamente o trabalho da inteligência e do contraterrorismo, os norte-americanos dão-se por satisfeitos com deixar o serviço entregue aos chamados experts – embora muito frequentemente aconteça de serem cidadãos comuns, nada experts, que nos salvam do Homem da Bomba no Sapato, do Homem da Bomba na Cueca, do Homem da Bomba em Times Square, do atentado no Fort Dix e em outros casos. Se as autoridades dos EUA se dessem conta disso, haveria 300 milhões de olhos motivados, que provavelmente trabalhariam melhor que os 854 mil experts portadores de credenciais top-secret que se discutem na matéria do Washington Post. Pelo que se vê, os norte-americanos só querem que alguém do governo repita sempre “Calma, calma, não se preocupem. Estamos trabalhando duro e o bicho-papão não pegará ninguém.” (...)


A série do Post mudará alguma coisa? Pouco provável. Como Glenn Greenwald escreveu em Salon:


Alguma esperança que alguém tivesse de que viessem mudanças significativas (ou só cosméticas, que fossem!) a partir do que o Post mostrou (de fato, uma compilação de fatos já conhecidos) desapareceu rapidamente, pela reação dos políticos. Reagiram não só com indiferença, mas com ostensivo pouco caso às preocupações que o jornal pudesse ter despertado. Na 3ª-feira – 24 horas depois de publicada a primeira parte da série – a Comissão de Inteligência para Segurança Doméstica do Senado [ing. Senate's Homeland Security Intelligence Committee] revogou uma cláusula da [lei] Intelligence Authorization Act que asseguraria alguma supervisão pelo Senado sobre os programas secretos de inteligência do governo, porque Obama amaeaçou vetar qualquer lei que propusesse qualquer tipo de supervisão sobre aqueles programas.


Então, o indicado por Obama para ser o próximo diretor da Inteligência Doméstica [ing. Director of National Intelligence] tenente-general aposentado James Clapper, praticamente riu do trabalho do Post, que chamou de “sensacionalista” na sabatina que o confirmou no cargo, e elogiou muito o retrabalho e as funções burocráticas duplicadas (para ele, oportunidade para “análises comparativas”) e garantiu que a Segurança Nacional e a Inteligência nos EUA estão “perfeitamente sob controle”.


Jeff Stein, do Post, noticia hoje que os Democratas no Congresso nem tentam fingir que farão alguma coisa para limitar alguma contratação, ou para aumentar a transparência nesses EUA Top Secret em que vivemos. Sabe-se também, revelado essa semana por McClatchy, que a tão falada “retirada de todos os soldados do Iraque” só poderá acontecer “se reunirmos uma milícia mercenária que lá fique como ‘exército do Departamento de Estado no Iraque’, depois da retirada do exército de verdade”.


NOTAS


[1] Sobre “distopia”: “A palavra distopia apareceu pela primeira vez em inglês num discurso ao Parlamento Britânico, por Gregg Webber e John Stuart Mill, em 1868. Nesse discurso, Mill disse; "É, provavelmente, demasiado elogioso chamar-lhes utópicos; deveriam em vez disso ser chamados dis-tópicos, ou caco-tópicos. O que é comumente chamado utopia é demasiado bom para ser praticável; mas o que eles parecem defender é demasiado mau para ser praticável." Mill conhecia muito bem o grego clássico, o que permite inferir que desejasse significar “lugar mau”, mais do que ‘o contrário’ de “utopia”. O prefixo grego "dis" ou "dys" ("δυσ-") significa "mau", "anormal", "estranho", a palavra grega "topos" ("τόπος"), significa lugar e o grego "ou-" ("ου") significa "não". Assim, utopia significa "lugar nenhum" e distopia pode significar "lugar mau" (em Distopia, Origem e significado). No título acima, a expressão “epidemia distópica” parece significar “epidemia em lugar na qual não é esperada e, nesse sentido, em lugar anômalo”. A nota histórica etimológica apareceu na pesquisa, achei interessantíssima e só por isso guardei-a aqui [NT].


[2] Em Top Secret America


[3] Sobre o livro, interessante, ver: Tudo sobre George Orwell


[4] Ver ficha técnica e sinopse em: Synopsis for Brazil (1985)


[5] Sobre o conceito “o crédito da confiabilidade”, ver Janine R. Wedel: “Shadow Elite: Do You Know Whose Agenda You're Being Sold?” [Elite oculta: você sabe a quem interessa a agenda que lhe vendem?], Huffington Post, 21/1/2010 e University News, em Book Charts Power, Influence Among ‘Shadow Elite’ , onde se lê: “O público aceita a verossimilhança como verdade, o que permite que praticamente qualquer um "declare" aos jornais e televisões o que bem entenda, conforme o que mais lhe interesse divulgar; nenhum jornalismo investigativo investiga coisa alguma dessas ‘declarações’ dos especialistas e autoridades, e a verdade se fixa. Embora esses influenciadores não cometam crime, eles arrastam as políticas públicas para posições em que mais nada pode ser investigado e nas quais já ninguém lhes pede contas do que digam.” Em “Elite oculta”, Wedel oferece vários exemplos de indivíduos apresentados ao público como especialistas e objetivos, mesmo que, sabidamente, se beneficiem financeiramente ou por outros meios, sempre que suas agendas ocultas são veiculadas para a opinião pública e promovidas.” [NT]


[6] O memorando pode ser lido em: Internal Memo: Intelligence Community Frets About Washington Post Series



O artigo original, em inglês, pode ser lido em:
US spying spawns a dystopian epidemic