16/12/2009, Drew Conway, Zero Intelligence Agents
Traduzido por Caia Fittipaldi
A matéria de capa da revista Nature de dez.-2009 [1] mostra o trabalho de um grupo de pesquisadores que estão examinando as propriedades matemáticas da guerrilha. Um dos autores é Sean Gourley, físico e TED Fellow, e seu trabalho é desenvolvimento culminante da pesquisa de Gourley e co-autores – um corpo de trabalho que já critiquei várias vezes.
O artigo recebeu o título de “Common Ecology quantifies human insurgency” [2] e tenta definir as dinâmicas subjacentes à guerrilha, em termos de uma especí fica distribuição probabilística; especificamente, segundo a “power-law distribution” [3] , e como isso afeta a estratégia dos guerrilheiros.
(...) Tendo em mente que o trabalho é interessante, é importante observar que os autores afirmam várias ‘conclusões’ não consistentes com os dados com os quais trabalharam e que devem ser abordados com extrema cautela.
Por várias razões, rejeito a hipótese básica de todo o artigo – de que, porque se possa inferir da frequência e magnitude dos ataques de guerrilheiros uma distribuição estatística, esse conhecimento ilumine e reja o cálculo estratégico dos guerrilheiros.
Sem voltar a um ponto que já discuti no passado, não há qualquer novidade na evidência de que os conflitos seguem alguma distribuição estatística (...). Os dados informam sobre a letalidade e a frequência dos ataques perpetrados nas guerras de guerrilhas no Iraque, no Afeganistão, no Peru e na Colômbia, mas falta o elo indispensável entre os dados e a estratégia dos próprios guerrilheiros.
A fonte de dados tomados como dados primários nesse trabalho são os noticiários de televisão aberta, sobre os ataques [4] . Com isso se demonstra, apenas, que quem observe as notícias comprovará que o noticiário de televisão aberta sobre os ataques, eles, sim, seguem distribuição estatística comprovada.
Mas há pelo menos duas limitações críticas nesse material de imprensa tomado como dados, que o torna imprestável como resposta às questões que os autores propõem. Primeiro, há um nível não desprezível de dados necessários faltantes: é impossível quantificar o número de ataques que os guerrilheiros planejaram e jamais executaram, nem os que foram tentados mas falharam (bombas que não explodiram, executores que não fizeram o que deveriam ter feito etc.). Embora não produzam efeitos, esses ataques são evidentemente parte da estratégia da guerrilha e evidentemente têm de aparecer em qualquer modelo do cálculo.
Segundo, apesar de os autores declararem que superaram o viés na seleção dos dados, porque confirmaram os dados sobre os ataques em mais de uma fonte (da mídia), nem por isso resolveram o problema. No caso, por exemplo, da guerrilha no Iraque e no Afeganistão; no Iraque, praticamente todos os ataques guerrilheiros aconteceram em áreas urbanas densamente povoadas e receberam considerável atenção da mídia. No Afeganistão, contudo, país muito fracamente urbanizado, a mídia pouco viu ou vê; isso implica que a mídia é fonte de dados inerentemente seletivos em tudo que noticia; e, isso, sem considerar que a maior parte das notícias divulgadas são releases distribuídos pelo Departamento de Estado, o u são geradas por declarações oficiais. Como se poderiam considerar no cálculo estatístico os ataques ocorridos em vilas afegãs que absolutamente estão fora do campo de observação da mídia?
Por outro lado, como se poderia construir qualquer avaliação a partir de dados da mídia, se esses dados sempre faltam no que a mídia oferece?
O papel da mídia é central no modelo que os autores propõem (vide figura acima). E aí, outra vez, o modelo se mostra logicamente inconsistente.
Como a figura mostra, os autores afirmam que os guerrilheiros atualizam seus informes e estratégias baseados na informação e nos sinais que recebem pelos noticiários; e que, a partir do que ali ouvem ou veem, decidem onde e como atacar. À falta de melhor expressão, é claramente meter o carro à frente dos bois.
A mídia não para de noticiar ataques, como os dados dos autores, sim, demonstram; portanto, o que produz notícias são as decisões dos guerrilheiros que atacam; e os guerrilheiros não obtêm da mídia qualquer informação nova relevante sobre seus próprios ataques (evidentemente, os guerrilheiros sabem mais, sobretudo da preparação de seus ataques, do que qualquer veículo de mídia; além, é claro, de saberem o que sabem antes de a mídia saber e, em todos os casos, antes de a mídia divulgar o que quer que saiba ou suponha saber).
De fato, os guerrilheiros detêm um elemento crítico de informação privilegiada que só eles têm, e atualizam sua estratégica conforme os movimentos das políticas oficiais de contraguerrilha. Essas informações, com certeza absoluta, os guerrilheiros não recebem da mídia.
O quadro que o artigo de Nature pinta, todo dependente da informação da mídia, faz tanto sentido quanto alguém pretender que, num jogo de futebol americano, o ataque atualizaria a própria estratégia, ainda no banco, antes de saber como a defesa organizou-se.
Sem discutir a questão da atualização dos movimentos, o que se pode aprender do futebol americano é que, ali, os dois lados atualizam constantementes seus próprios movimentos [5] , mas são sempre os atacantes que impõem o rumo do jogo. Na guerrilha, os guerrilheiros são "a equipe de ataque" (NT1).
Sabe-se, assim, que os guerrilheiros recebem informação de outra fonte que não é a mídia; e pode-se supor que essa fonte esteja no Estado local (NT2) .
Os contatos entre os guerrilheiros e o Estado deve ser objeto privilegiado da pesquisa futura no campo da microdinâmica do conflito (NT3) . No que tenha a ver com essa pesquisa, via estimulante de estudo seria procurar identificar algum movimento guerrilheiro cujos ataques não sigam aquela distribuição estatística, que se distribuam segundo outros padrões estatísticos.
A pesquisa futura também se pode beneficiar, se examinar a distribuição dos ataques imediatamente depois ou no futuro mais distante, em relação a variação da política da contraguerrilha.
Consideradas algumas das limitações acima comentadas, essa pesquisa pode começar por identificar os fatores que contribuem para explicar por que mudanças nas políticas de contraguerrilha provocam mudanças nos padrões dos ataques guerrilheiros (NT4) e que se distanciem do padrão estatístico insuficiente já usado (da “power-law”). A chave de qualquer pesquisa futura, contudo, é conectar firmemente a pesquisa e os dados do conflito (não o que a mídia diga de/sobre o conflito), de modo significativo.
NOTAS DE REFERÊNCIA
[1] Sobre a matéria da revista Nature, dez. 2009, “Ecology of the war” : “Muitas atividades humanas randômicas ou caóticas exibem padrões estatísticos universais. Neil Johnson e colegas usaram dados detalhados sobre conflitos, inclusive no Afeganistão, Iraque e Colômbia, para mostrar que as guerras de guerrilhas incluem-se nessa categorias e que há padrões comuns entre elas, também encontrados no terrorismo global. A capa de Nature mostra guerrilheiros Talibãs na província de Ghazni, ao sul de Cabul, em novembro de 2006 .
[2] Em Common ecology quantifies human insurgency, só para assinantes.
[3] Não sei o que é. Há o que ler em: Power law
[4] Ver, por exemplo: The Security Crank
[5] Ver, por exemplo, uma jogada famosíssima do futebol americano (Eli Manning, quarter-back, para David Tyree, receiver), muitas vezes comentada, e exemplo claríssimo de estratégia definida no calor da hora.
NOTAS DE TRADUÇÃO (NT)
NT1 Essa definição coincide perfeitamente com o que se lê em “Manual do Guerrilheiro Urbano” , Carlos Marighella, Cap. 2:9.1: “[as forças oficiais são mais bem armadas, muitas vezes contam com abundante informação de inteligência e são sempre em maior número.] “O paradoxo é que o guerrilheiro urbano, a pesar de ser mais fraco, é sempre o atacante”.
NT2 De fato, pode-se supor outra fonte de informações da qual os guerrilheiros recebem informação relevante, e que não é nem a mídia nem o Estado: a própria sociedade na qual vivem imersos.
NT3 No “Manual do Guerrilheiro Urbano” de Carlos Marighella, acima citado, lê-se: “[o guerrilheiro urbano só é bem-sucedido se consegue explorar suas vantagens iniciais, que são: a) tomar o inimigo de surpresa; b) conhecer melhor que o inimigo o terreno de encontro; c) viver de tal modo imerso na vida da sociedade em que se dá o confronto, que suas relações lhe assegurem maior mobilidade e velocidade que a polícia e as outras forças repressoras; d) a rede local social de informação com que o guerrilheiro conta tem que ser melhor que o do Estado inimigo (...)”
Aqui se vê claramente que o autor do artigo só considera, como hipóteses de partida: a) a versão segundo a qual os EUA e Otan (no caso de Iraque e Afeganistão) seriam alguma espécie de ‘resistência’ à guerrilha, nos termos em que Obama pôs as coisas: “uma guerra que não escolhemos” (no caso do Afeganistão; e, no caso do Iraque, nos termos em que Bush pôs as coisas: o delírio das Armas de Destruição em Massa que jamais existiram, mas que foram usadas como pretexto pelo governo B ush para o ataque ao Iraque); e b) a versão totalmente ‘midiática’, segundo a qual os laços entre o Estado [governo Karzai] e o Talibã seriam fonte de informação privilegiada para os Talibã. Essas duas versões têm exatamente os mesmos vícios que o autor observa como vícios da informação que se colha da imprensa.
Em outras palavras: o autor desse artigo é competente para criticar bem criticada a parte técnica-estatística do artigo que critica, mas não consegue escapar, ele mesmo, da arapuca da “credibilidade jornalística”: ele crê, sem saber que crê, na informação que, ele também, recebeu... da mesma imprensa!
NT4 Nesse ponto, há uma inconsistência nesse artigo aqui traduzido: se alguma mudança na política de contraguerrilha determinar “mudanças nos padrões dos ataques guerrilheiros”, estaremos em situação na qual – pelo próprio argumento desenvolvido no artigo –, a “política de contraguerrilha” estará determinando o padrão do conflito; se quem determina o padrão do conflito é quem ataca, como se lê no artigo e também no “Manual” de Marighella, facilmente se demonstra que a “política de contraguerrilha dos EUA e Otan”, e tenha o nome que tiver, é a força atacante, de fato, nos conflitos aqui analisados (no Iraque e no Afeganistão).
O artigo original, em inglês, pode ser lido em: On the Ecology of Human Insurgency