domingo, 29 de janeiro de 2012

“A propósito do Inferno”


Meu caro Zaratustra

Eis uma historinha escrita em 1849, mas que permanece atual. Veja se você identifica o autor. Trata-se de um encontro entre o diabo e um pastor evangélico.

Ei-la:

- Olá, pastor gorduchinho! - disse o diabo ao pastor. O que levou você a mentir tanto para esse povo desgovernado? Com que torturas do inferno os ameaçou? Não sabe que eles já sofrem torturas infernais em suas vidas terrenas? Não sabe que você e as autoridades do Estado são meus representantes na Terra? É você que os faz sofrer com as dores do inferno. Não sabia? Então, venha comigo.

O diabo agarrou o pastor pela gola, levando-o pelo ar para uma fábrica, a uma fundição de ferro. Viu um operário correndo apressado daqui pra lá e batalhando chamuscado junto ao forno. Logo o calor do fogo demonstrou ser muito pesado e denso para o pastor. Com lágrimas nos olhos ele rogou ao diabo:

-Deixe-me ir, deixe-me sair deste inferno!

- Mas, meu querido, preciso mostrar a você outros lugares.

O diabo agarra-o e arrasta-o para uma fazenda. Ali ele vê trabalhadores debulhando os grãos. A poeira e o calor são insuportáveis. O feitor, com um chicote, desapiedadamente bate naqueles que caem abatidos pelo trabalho ou pela fome.

A seguir o pastor é levado às choças onde esses mesmos trabalhadores vivem com suas famílias, numa espécie de buracos sujos, frios, fumacentos e fedorentos. O diabo sorri. Aponta a pobreza, a miséria daqueles lares.

- Bem, não basta? - pergunta. E parece que até o diabo já sente piedade.

O piedoso servo de Deus, mal podendo suportar o que vê, levanta as mãos e implora:

- Deixe-me sair daqui. Sim, sim. Este é o inferno na Terra.

- Mas, veja bem, e você ainda lhes promete um outro inferno. Você atormenta-os e tortura-os mentalmente quando já sofreram tudo, salvo a morte física. Venha cá. Quero lhe mostrar mais um inferno, um a mais, o pior de todos.

Ele levou-o a uma prisão e mostrou-lhe um calabouço com seu fétido ar e muitas formas humanas desprovidas de saúde e energia, esticadas no chão, cobertas de doenças, devorando seus pobres, nus e flácidos corpos.

- Tire as suas roupas de seda - disse o diabo ao pastor. - Ponha as pesadas cadeias de ferro nos tornozelos como esses desgraçados. Deite-se no frio e imundo chão e, enfim, fale com eles sobre o inferno que ainda os espera.

- Não! Não! respondeu o pastor. Não posso pensar em nada mais pavoroso do que isto. Eu suplico, deixe-me sair daqui.

-Sim, isto é o inferno. Não pode haver pior inferno do que este. Você não sabia disto? Não sabia que esses homens e mulheres a quem você ameaça com a descrição de um inferno futuro, não sabia que eles estão no inferno, aqui, antes de morrerem?

Fim da historinha, meu caro Zaratustra.

Foi tirada de uma crônica do Affonso Romano de Sant’Anna, escrita em 16 de junho de 1985, publicada no livro “Nós, os que matamos Tim Lopes”, e que reproduz algo que o Dostoievsky escreveu nas paredes de uma prisão na Rússia.

Nesse ponto, você que é um homem culto e conhece a história, vai me dizer que o extraordinário autor de “O Idiota” não falou em “pastor protestante”, mas sim em “padre”.

Pois é, caro Zaratustra, você tem razão, mas o que eu fiz foi apenas atualizar a historinha para os tempos modernos. Não muda quase nada.

Até.

Fred

P.S. No final da crônica do Affonso tem a seguinte observação:

Esta estória foi escrita em 1849, na Rússia. Emma Goldman a cita em 1889, comparando-a com a situação das prisões americanas. Quase 150 anos depois, a situação é a mesma, no Brasil.

Um comentário:

  1. Em Guantánamo, Iraque, no ataque a Líbia, no Afeganistão, na Somália, no Congo, e etc. também. Não esqueçamos que o diabo tem os maiores representantes nos donos do capital. As prisões, nas suas mais variadas facetas são patrocinadas por estes donos do capital. Ou seja, essência do diabo esta nos donos do capital, e a essencia da maldade é carregada pelo próprio capital.

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