Meu caro Zaratustra
Eis uma historinha escrita em
1849, mas que permanece atual. Veja se você identifica o autor. Trata-se de um
encontro entre o diabo e um pastor evangélico.
Ei-la:
- Olá,
pastor gorduchinho! - disse o diabo ao pastor. O que levou você a mentir tanto
para esse povo desgovernado? Com que torturas do inferno os ameaçou? Não sabe
que eles já sofrem torturas infernais em suas vidas terrenas? Não sabe que você
e as autoridades do Estado são meus representantes na Terra? É você que os faz
sofrer com as dores do inferno. Não sabia? Então, venha
comigo.
O diabo
agarrou o pastor pela gola, levando-o pelo ar para uma fábrica, a uma fundição
de ferro. Viu um operário correndo apressado daqui pra lá e batalhando
chamuscado junto ao forno. Logo o calor do fogo demonstrou ser muito pesado e
denso para o pastor. Com lágrimas nos olhos ele rogou ao
diabo:
-Deixe-me ir, deixe-me sair
deste inferno!
- Mas,
meu querido, preciso mostrar a você outros lugares.
O diabo
agarra-o e arrasta-o para uma fazenda. Ali ele vê trabalhadores debulhando os
grãos. A poeira e o calor são insuportáveis. O feitor, com um chicote,
desapiedadamente bate naqueles que caem abatidos pelo trabalho ou pela
fome.
A seguir
o pastor é levado às choças onde esses mesmos trabalhadores vivem com suas
famílias, numa espécie de buracos sujos, frios, fumacentos e fedorentos. O diabo
sorri. Aponta a pobreza, a miséria daqueles lares.
- Bem,
não basta? - pergunta. E parece que até o diabo já sente
piedade.
O
piedoso servo de Deus, mal podendo suportar o que vê, levanta as mãos e
implora:
-
Deixe-me sair daqui. Sim, sim. Este é o inferno na
Terra.
- Mas,
veja bem, e você ainda lhes promete um outro inferno. Você atormenta-os e
tortura-os mentalmente quando já sofreram tudo, salvo a morte física. Venha cá.
Quero lhe mostrar mais um inferno, um a mais, o pior de
todos.
Ele
levou-o a uma prisão e mostrou-lhe um calabouço com seu fétido ar e muitas
formas humanas desprovidas de saúde e energia, esticadas no chão, cobertas de
doenças, devorando seus pobres, nus e flácidos
corpos.
- Tire
as suas roupas de seda - disse o diabo ao pastor. - Ponha as pesadas cadeias de
ferro nos tornozelos como esses desgraçados. Deite-se no frio e imundo chão e,
enfim, fale com eles sobre o inferno que ainda os
espera.
- Não!
Não! respondeu o pastor. Não posso pensar em nada mais pavoroso do que isto. Eu
suplico, deixe-me sair daqui.
-Sim,
isto é o inferno. Não pode haver pior inferno do que este. Você não sabia disto?
Não sabia que esses homens e mulheres a quem você ameaça com a descrição de um
inferno futuro, não sabia que eles estão no inferno, aqui, antes de
morrerem?
Fim da historinha, meu caro
Zaratustra.
Foi tirada de uma crônica do
Affonso Romano de Sant’Anna, escrita em 16 de junho de 1985, publicada no livro
“Nós, os que matamos Tim Lopes”, e
que reproduz algo que o Dostoievsky escreveu nas paredes de uma prisão na
Rússia.
Nesse ponto, você que é um homem
culto e conhece a história, vai me dizer que o extraordinário autor de “O
Idiota” não falou em “pastor protestante”, mas sim em
“padre”.
Pois é, caro Zaratustra, você tem
razão, mas o que eu fiz foi apenas atualizar a historinha para os tempos
modernos. Não muda quase nada.
Até.
Fred
P.S. No final da crônica do
Affonso tem a seguinte observação:
Esta estória foi escrita em 1849,
na Rússia. Emma Goldman a cita em 1889, comparando-a com a situação das prisões
americanas. Quase 150 anos depois, a situação é a mesma, no
Brasil.
Em Guantánamo, Iraque, no ataque a Líbia, no Afeganistão, na Somália, no Congo, e etc. também. Não esqueçamos que o diabo tem os maiores representantes nos donos do capital. As prisões, nas suas mais variadas facetas são patrocinadas por estes donos do capital. Ou seja, essência do diabo esta nos donos do capital, e a essencia da maldade é carregada pelo próprio capital.
ResponderExcluir