quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Pepe Escobar: “O mito do Irã isolado”


Os caminhos do dinheiro, na crise iraniana

17/1/2012, Pepe Escobar, Tom Dispatch
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Comecemos pela linha vermelha. Cá está ela, colhida diretamente da boca do leão [1]. Semana passada, o secretário de Defesa Leon Panetta disse dos iranianos: “Estão tentando desenvolver bomba atômica? Não. Mas sabemos que estão tentando desenvolver alguma capacidade nuclear. E é isso que nos preocupa. Nossa linha vermelha para o Irã é “não desenvolvam bomba atômica”. Para nós, é a linha vermelha.” 

Estranho, mesmo, é que as tais linhas vermelhas não param de encolher. Era uma vez, antigamente, a linha vermelha para Washington era “o enriquecimento” do urânio. Agora, só falam de bomba atômica. Lembrem todos que, desde 2005, o Supremo Líder iraniano, aiatolá Khamenei já dizia [2] que seu país não trabalha para construir bomba atômica. A mais recente National Intelligence Estimate  [3] sobre o Irã, produzida pela inteligência dos EUA já disse várias vezes que o Irã não está, de fato, construindo bomba atômica (o que não significa que não venha, algum dia, a ter capacidade para construir).

Mas e se não se tratar de coisa alguma como “linha vermelha”? E se tratar-se, de fato, de algo completamente diferente, de uma, digamos, “linha do petrodólar”?

Sanções e novos bancos?

Comecemos por aqui: em dezembro de 2011, indiferente às graves consequências para a economia global, o Congresso dos EUA – sob as pressões habituais pelo lobby israelense (não que fossem necessárias) – impôs um pacote de sanções goela abaixo do governo Obama (100 a zero no Senado, e apenas 12 [4] votos “não” na Câmara de Deputados). Começando em junho, os EUA terão de boicotar todos os bancos e empresas de terceiros países que negociem com o Banco Central do Irã, o que implica paralisar as vendas de petróleo do país. (O Congresso prevê algumas “exceções”).

O objetivo final? Mudar o regime – e o que mais seria? – em Teerã. O funcionário norte-americano não identificado de sempre admitiu claramente ao Washington Post, e o jornal publicou o comentário. (“O objetivo dos EUA e das novas sanções contra o Irã é levar o regime ao colapso, disse alto funcionário da inteligência dos EUA, em clara indicação de que o governo Obama tem, no mínimo, uma intenção de derrubar o governo do Irã, apesar do corrente engajamento”). Mas... Epa! O jornal logo depois teve de revisar [5] esse trecho, para eliminar essa citação embaraçosamente clara. Sem dúvida, essa “linha vermelha” aproximara-se excessivamente da verdade e abalara o conforto geral.

O ex-comandante geral do Estado-Maior das Forças dos EUA almirante Mike Mullen acreditava que só evento monstro estilo choque-e-pavor, que humilhasse completamente a liderança em Teerã, levaria a genuína mudança de regime – e de modo algum estava sozinho. Defensores de ações que vão de ataques aéreos à invasão (pelos EUA, por Israel ou por alguma combinação de ambos) sempre foram legiões na Washington neoconservadora. (Basta ver, por exemplo, o relatório de 2009 da Brookings Institution, Which Path to Pérsia  [6]).

O problema é que quem conheça, por pouco que seja, o Irã, sabe que esse tipo de ataque fará a população cerrar fileiras a favor de Khamenei e dos Guardas Revolucionários. Nessas circunstâncias, o que menos importará é a profunda aversão que vários iranianos nutrem contra a ditadura militar do mulariato. 

Além disso, até a oposição iraniana apoia um programa nuclear nacional pacífico. É questão de orgulho nacional.

Intelectuais iranianos, mais familiarizados com as fumaças e espelhos persas que os ideólogos em Washington, descartam completamente [7] quaisquer cenários de guerra. Dizem que o regime de Teerã, afiado nas artes do teatro de sombras persa, não tem qualquer intenção de provocar qualquer tipo de ataque que levaria ao cerco contra o próprio governo. Por sua vez, certos ou não, os estrategistas de Teerã assumem que Washington não tem condições para lançar mais uma guerra no Oriente Médio Expandido, sobretudo se se fala de guerra que levaria a terrível dano colateral para a economia mundial.

Enquanto isso, as expectativas de Washington, de que sanções duríssimas possam forçar os iranianos a ceder um pouco, se o governo não for derrubado, podem revelar-se nada além de quimera. Em Washington, os especialistas só falam de uma suposta mega-desvalorização desastrosa da moeda iraniana [8], o Rial, dadas as novas sanções. Infelizmente para os fãs do colapso econômico do Irã, o professor Djavad Salehi-Isfahani [9] já expôs em detalhes elaborados a natureza de longo prazo desse processo, que os economistas iranianos receberam como dádiva. Afinal, as sanções farão aumentar a importância de outros itens de exportação iraniana e ajudarão a indústria local, hoje obrigada a enfrentar a concorrência dos produtos chineses baratos. Em resumo: um Rial desvalorizado tem boas chances de ajudar a reduzir o desemprego no Irã. [10]

Mais conectado que o Google

Embora poucos nos EUA tenham observado, o Irã não está absolutamente “isolado”, por mais que Washington deseje que esteja. O primeiro-ministro do Paquistão Yusuf Gilani tornou-se passageiro frequente de voos para Teerã. E não se compara, em assiduidade, com o chefe da segurança nacional da Rússia, Nikolai Patrushev, que recentemente alertou Israel para que não force os EUA a atacar o Irã. Acrescente-se a tudo isso também o aliado dos EUA e presidente do Afeganistão Hamid Karzai. Num Loya Jirga (Grande Conselho) no final de 2011, frente a 2.000 chefes tribais, Karzai disse que Kabul planejava aproximar-se ainda mais de Teerã.

Oleodutostão - as várias linhas que passam e/ou saem do Irã
Nesse crucial tabuleiro eurasiano de xadrez, o Oleodutostão (orig. Pipelineistan  [11]), gasoduto Irã-Paquistão (IP) de gás natural – para extremo incômodo de Washington – está em pleno andamento. O Paquistão precisa muito de energia e o governo já decidiu claramente que não está disposto a esperar até o dia do juízo final pelo projeto que é a menina-dos-olhos de Washington [12] – o oleogasoduto Turcomenistão-Afeganistão-Paquistão-Índia (TAPI) – para tentar atravessar o Talibãnistão.

Até o ministro das Relações Exteriores da Turquia Ahmet Davutoglu esteve recentemente em Teerã, embora as relações entre os dois países estejam cada dia mais complicadas. Afinal, a energia sobrepõe-se a todas as ameaças na região. A Turquia é membro da OTAN e já está envolvida em operações clandestinas na Síria, aliada a sunitas fundamentalistas linha-duríssima no Iraque e – em movimento ostensivo de dar as costas à(s) primavera(s) árabe(s) – trocou um eixo Ankara-Teerã-Damasco por eixo Ankara-Riad-Doha. Já planeja até hospedar componentes do longamente planejado sistema de mísseis de defesa de Washington, mirados para o Irã.

Tudo isso, vindo de um país para o qual o mesmo Davutoglu inventara uma política exterior de “zero problemas com nossos vizinhos”. Apesar de tudo, a necessidade de Oleogasodutostão faz disparar todos os corações. A Turquia precisa desesperadamente de acesso aos recursos energéticos do Irã e, se o gás natural iraniano algum dia chegar à Europa Ocidental – chegada que os europeus esperam com máxima ansiedade – a Turquia será país de trânsito daquele gás, com os correspondentes privilégios e impostos a cobrar. Líderes turcos já demonstraram que rejeitam quaisquer novas sanções que os EUA imponham ao petróleo iraniano.

Por falar em conexões, o mundo assistiu, semana passada, a um espetacular coup de théâtre diplomático, com o tour do presidente Mahmoud Ahmadinejad do Irã, pela América Latina. A direita dos EUA imediatamente pôs-se a falar sobre um eixo do mal Teerã-Caracas – que supostamente estaria promovendo o “terror” na América Latina, como preparação para futuros ataques contra a superpotência do norte – mas, de volta à vida real, o que se viu foi outro tipo de clara verdade [13]. Mesmo depois de tantos anos, Washington ainda não é capaz de digerir a ideia de que perdeu o controle e, até, a influência, sobre aquelas duas potências regionais sobre as quais, há tempos, exerceu sua impiedosa hegemonia imperial. 

Acrescente a tudo isso a barreira de desconfiança que só fez solidificar-se desde a revolução islâmica do Irã de 1979. Misture também uma América Latina nova, já praticamente soberana e que busca a integração, não só pelos governos de esquerda na Venezuela, Bolívia e Equador, mas também pelas potências regionais Brasil e Argentina. Mexa tudo e você obterá as fotos históricas em que se veem os presidentes Chávez da Venezuela e Ahmadinejad do Irã, , saudando o presidente Daniel Ortega da Nicarágua. 

Washington continua a tentar divulgar a imagem de um mundo do qual o Irã teria sido completamente desconectado. Como já aconteceu, a porta-voz do Departamento do Estado Victoria Nuland insistia novamente, recentemente, que “o Irã permanece em total isolamento internacional”.  Não. Como também acontece com frequência, a porta-voz precisa prestar mais atenção aos fatos.

Esse Irã que permaneceria “isolado” tem $4 bilhões em projetos conjuntos com a Venezuela, dentre os quais – crucialmente importante – um banco (como também com o Equador, o Irã tem vários projetos planejados, da construção de usinas a, outra vez, também bancos). Tudo isso levou a equipe dos “Primeiro-Israel” que Israel controla em Washington a exigir, em altos brados, que se aplicassem sanções também contra a Venezuela. O problema é o seguinte: como, nesse caso, os EUA pagariam para receber o petróleo da Venezuela de que muito precisam?

A imprensa dos EUA comentou muito que Ahmadinejad não tenha visitado o Brasil nesse tour latino-americano, mas não há dúvidas de que Teerã e Brasília continuam em sintonia diplomática. No que tenha a ver com o dossiê diplomático, a história do Brasil só atrai simpatias. Afinal, o Brasil desenvolveu – e depois cancelou – um programa de armas nucleares. Em maio de 2010, Brasil e Turquia construíram um acordo de troca de urânio para o Irã que bem poderia ter desatado os nós mais apertados do imbróglio nuclear entre EUA e Irã. Aquele acordo foi imediatamente sabotado por Washington. Membro chave dos BRICS, o clube das principais economias emergentes, Brasília opõe-se firmemente à estratégia dos EUA de sanções/embargo [14].

O Irã está “isolado” dos EUA e da Europa Ocidental, mas dos BRICS aos MNAs (120 países do Movimento dos Não Alinhados), o Irã tem, a seu favor, a maioria do sul global. E, além do mais, há os aliados de Washington, Japão e Coreia do Sul, que suplicam para serem excluídos da obrigação de boicotar/embargar o Banco Central do Irã.

Não surpreende, porque essas sanções unilaterais dos EUA visam também a atingir a Ásia. Afinal, China, Índia, Japão e Coreia do Sul, juntos, compram nada menos que 62% de todo o petróleo que o Irã exporta.

Com a polidez que é marca registrada asiática, o Ministro das Finanças do Japão Jun Azumi fez saber ao secretário do Tesouro dos EUA Timothy Geithner o problema que Washington está criando para Tóquio, que depende do Irã para suprir 10% do petróleo que consome. Está prometendo [15] pelo menos “reduzir” aquela proporção “o mais depressa possível”, para obter de Washington uma isenção daquelas sanções, mas que ninguém espere muita coisa. A Coreia do Sul já anunciou que, em 2012, comprará do Irã, sim, 10% do petróleo de que necessita.

Rota da Seda Redux 

O mais importante de tudo é que um Irã “isolado” é assunto gravíssimo, de alta segurança nacional, para a China, que rejeitou [16] imediatamente as últimas sanções de Washington, sem nem piscar [17]. O ocidente parece esquecer que o Império do Meio e a Pérsia fazem negócios já há quase dois mil anos. (“Rota da Seda”, alguém já ouviu falar?)

Os chineses já montaram grande negócio [18] para o desenvolvimento do maior campo de petróleo do Irã, Yadavaran. Há também a questão de entregar o petróleo iraniano no Mar Cáspio, por um oleoduto que se estende do Cazaquistão à China Ocidental. De fato, o Irã fornece nada menos que 15% do petróleo e do gás natural que a China consome. O Irã é mais crucial [19] para a China, especialista em energia, que a Casa de Saud para os EUA, que importam da Arábia Saudita 11% do petróleo que consomem.

A verdade é que a China pode sair como vencedora [20] da nova rodada de sanções de Washington, porque provavelmente conseguirá preço mais baixo por petróleo e gás, com os iranianos agora mais dependentes do mercado chinês. Nesse momento, de fato, os dois países estão em meio a uma complexa negociação [21] sobre o preço do petróleo iraniano, e os chineses aumentaram a pressão cortando muito de leve as compras de energia. Mas tudo isso estará resolvido em março, pelo menos dois meses antes de a última rodada de sanções dos EUA entrar em vigência, segundo especialistas em Pequim. No final, os chineses com certeza comprarão muito mais gás e petróleo iranianos, mas o Irã permanecerá na posição de seu terceiro maior fornecedor de petróleo [22], depois de Arábia Saudita e Angola.

Quanto a outros efeitos sobre a China das novas sanções, que ninguém conte muito com eles. Empresários chineses no Irã estão produzindo carros, redes de fibras óticas e expandindo o metrô de Teerã. O comércio bilateral é de $30 bilhões hoje e deve alcançar os $50 bilhões em 2015. Não há dúvidas de que comerciantes chineses encontrarão um meio de circunavegar os impedimentos bancários impostos pelas novas sanções.

A Rússia, é claro, é outra apoiadora chave do “isolado” Irã. Opôs-se fortemente contra as sanções aplicadas através da ONU e as aplicadas pelo pacote aprovado em Washington [23] e que visam o Banco Central do Irã. De fato, a Rússia deseja que sejam suspensas as sanções já aplicadas pela ONU e também trabalha num plano alternativo [24]que poderia, pelo menos teoricamente, levar a um acordo nuclear aceitável, sem demérito, por todas as partes.

No front nuclear, Teerã já manifestou disposição para acertar-se com Washington, seguindo as linhas do plano que Brasil e Turquia sugeriram e Washington boicotou imediatamente, em 2010. Dado que hoje já se vê bem claramente que, para Washington – com certeza para o Congresso – a questão nuclear é secundária (e a mudança de regime é a questão principal) – quaisquer novas negociações estão condenadas a enfrentar processo extremamente doloroso.

Tudo isso é especialmente verdade agora que os líderes da União Europeia conseguiram afastar-se de qualquer futura mesa de negociação, atirando, eles mesmos, nos próprios pés calçados em sapatos Ferragamo. À moda típica, seguiram caninamente a liderança de Washington para implementar um embargo ao petróleo do Irã. Como alto funcionário da União Europeia disse a Trita Parsi, presidente do Conselho Iraniano Norte-americano [25], e diplomatas da União Europeia disseram também a mim em termos bem claros, eles temem que a situação esteja agora a um passo de nova guerra.

Enquanto isso, uma equipe da Agência Internacional de Energia Atômica acaba de visitar o Irã [26]. A AIEA está supervisionando tudo que tenha a ver com programa nuclear no Irã, inclusive a nova usina de enriquecimento de urânio [27] em Fordow, próxima da cidade santa de Qom, que deverá estar em plena produção em junho. A AIEA é positiva: no Irã ninguém cogita de bomba. Mesmo assim, Washington (e os israelenses) continuam a agir como se fosse apenas questão de tempo – e pouco tempo.

Siga o dinheiro 

O mote do isolamento iraniano enfraquece ainda mais se se sabe que o país está abandonando o Dólar no comércio com a Rússia, que passará a ser feito nas respectivas moedas nacionais, Rials e Rublos [28] – movimento semelhante ao que já se vê no comércio entre China e Japão. Quanto à Índia, usina econômica na região, os líderes também se recusam [29] a suspender as compras de petróleo iraniano, troca comercial que, no longo prazo, parece que também não será conduzida em dólares. A Índia já está usando o Yuan em negócios com a China; Rússia e China também já negociam em Rublo e Yuanshá mais de um ano; Japão e China comerciam entre eles em Yen e Yuan. Como para Irã e China, todos os novos negócios e investimentos conjuntos serão pagos em Yuan e Rial.

Tradução, caso seja necessária: no futuro próximo, com europeus excluídos do mix, praticamente nenhum petróleo iraniano será comerciado em dólares.

Importante também, três dos BRICS (Rússia, Índia e China) aliados do Irã são grandes possuidores (e produtores) de ouro. Suas complexas negociações não serão afetadas pelos humores do Congresso dos EUA. De fato, quando o mundo em desenvolvimento assiste à profunda crise [30] no Ocidente da OTAN, o que vêem ali é dívida massiva dos EUA, o Fed imprimindo moeda como se o fim do mundo estivesse próximo, muita injeção de dinheiro nos bancos [orig. “quantitative easing”] e, claro, a eurozona abalada até os alicerces.

Siga o dinheiro. Deixe de lado, por um instante, as novas sanções contra o Banco Central do Irã, que só entrarão em vigência daqui a alguns meses; ignore as ameaças iranianas de fechar o Estreito de Ormuz (pouco viáveis, porque aquela é a principal via pela qual o petróleo iraniano chega ao mercado), e é possível que a razão chave pela qual a crise no Golfo só faz crescer esteja na decisão de torpedear o petrodólar usado como moeda de troca em todos os negócios.

A ideia foi introduzida pelo Irã e com certeza gera ansiedade máxima em Washington, que se vê ultrapassada não só por uma potência regional, mas, também, pelos seus dois principais concorrentes estratégicos, China e Rússia.  Não surpreende que todos aqueles porta-aviões estejam nesse instante em viagem para o Golfo Persa [31], mas enviados para o mais estranho dos combates: naves militares, com ordens para desarticularem arran os econômicos.

Nesse contexto, vale recordar que, em setembro de 2000, Saddam Hussein abandonou o petrodólar como moeda de pagamento pelo petróleo iraquiano [32 ], e mudou-se para o euro. Em março de 2003, o Iraque foi invadido e aconteceu a inevitável mudança de regime. A Líbia de Muammar Gaddafi propôs um dinar de ouro, previsto para ser moeda comum africana e moeda que a Líbia aceitaria em pagamento por seus recursos energéticos vendidos. Outra intervenção e mais um regime “mudado”.

Mas Washington/OTAN/Telavive oferecem narrativa completamente diferente. As “ameaças” dos iranianos seriam o xis da questão da atual crise, embora as ameaças, de fato, só tenham acontecido como reação contra a incansável guerra clandestina que EUA-Israel movem contra o Irã [33], e agora, também, contra a guerra econômica. Aquelas “ameaças” reza a narrativa de Washington, estão fazendo aumentar o preço do petróleo e alimentando recessão cada vez maior. A culpa de tudo é do Irã, não do capitalismo de cassino de Wall Street nem as dívidas massivas de EUA e países europeus. A fina-flor dos 1% nada tem contra altos preços do petróleo, desde que o Irã possa ser atirado às massas, como judas a malhar.

Michael Klare, [34] especialista em energia lembrou recentemente que estamos hoje numa nova era de geoenergia, que com certeza será extremamente turbulenta no Golfo Persa e em outros pontos. Mas deve-se ver 2012 como o ano do início do que bem poderá ser deserção massiva do dólar como moeda global preferencial. Como pensar também é realidade, imaginem o mundo real – quase todo o sul global – fazendo todas as suas necessárias contas; aos poucos, começando a negociar em suas próprias moedas; e investindo quantidades cada dia menores dessas moedas, na compra de bônus do Tesouro dos EUA. 

Claro que os EUA sempre podem contar com o Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) – Arábia Saudita, Qatar, Omã, Bahrain, Kuwait e os Emirados Árabes Unidos – que sempre prefiro chamar de Clube Contrarrevolucionário do Golfo (basta ver o que fizeram durante a Primavera Árabe). Para todas as finalidades geopolíticas práticas, as monarquias do Golfo são satrapias dos EUA. A promessa imorredoura, que fizeram há décadas, de só usar o petrodólar implica em que são todas, hoje, apêndices do poder do Pentágono projetados para o Oriente Médio. O Comando Central dos EUA (Centcom) está, afinal de contas, baseado no Qatar; a V Frota dos EUA, no Bahrain. 

De fato, em todas aquelas terras imensamente ricas em fontes de energia, que se podem identificar como o Oleodutostão Expandido – que o Pentágono costumava chamar de “o arco de instabilidade” – e que avançam pelo Irã na direção da Ásia Central, o Conselho de Cooperação do Golfo continua a ser elemento crucial da periclitante hegemonia norte-americana.

Se se tratasse de recriação econômica do conto “O Poço e o Pêndulo” de Edgar Allen Poe [35], o Irã seria uma engrenagem numa máquina infernal que estaria lentamente esmagando o dólar como moeda mundial de reserva. Mas é a engrenagem na qual Washington foca hoje toda a atenção. A mudança de regime é ideia fixa. Só falta uma faísca para iniciar o incêndio (em – deve-se acrescentar – todas as direções nas quais Washington não esteja preparada).

Lembrem-se da Operação Northwoods [36], o plano de 1962, rascunhado pelos comandantes do Comando Conjunto, de encenar operações terroristas nos EUA e culpar os cubanos de Fidel Castro. (O presidente Kennedy fulminou o projeto). Ou recordem o incidente no Golfo de Tonkin em 1964, que o presidente Lyndon Johnson usou como justificativa para ampliar a Guerra do Vietnã. Os EUA acusaram barcos armados do Vietnã do Norte de ataque não provocado contra barcos dos EUA. Adiante se comprovou que os ataques sequer algum dia aconteceram e que o presidente mentiu sobre todo o “incidente”.

Não é delírio imaginar que pregadores linha-dura da doutrina da Dominação de Pleno Espectro dentro do Pentágono possam, a qualquer momento, inventar um incidente de falsa bandeira no Golfo Persa para atacar o Irã (ou podem, simplesmente, usar golpe semelhante para induzir Teerã a cometer algum erro fatal de avaliação). Considerem-se também a nova estratégia militar dos EUA que o presidente Obama acaba de divulgar, segundo a qual Washington estaria tirando os olhos de duas guerras em solo fracassadas no Oriente Médio Expandido, para movê-los agora na direção do Pacífico (e, portanto, da China). O Irã está exatamente no meio do caminho, no sudoeste da Ásia, mandando todo aquele petróleo diretamente para as bocas vorazes do Império do Meio, atravessando águas vigiadas [37] pela Marinha dos EUA.

Quero dizer que, sim, sim. Esse psicodrama maior que a vida, que chamamos “caso do Irã” pode vir a revelar-se o caso do dólar norte-americano contra a China; ou o caso das políticas do Golfo Persa, sob o manto de uma inexistente bomba iraniana. A pergunta é: que besta mostruosa, chegada a hora, arrasta-se para Pequim, para renascer? [38]




Notas dos tradutores

1 Face the Nation” transcript: January 8, 2012 










11 Liquid War” 
























35  The Pit and the Pendullum [1843]. em ingles; em português O Poço e o Pêndulo.



38  Orig. “What rough beast, its hour come round at last, slouches towards Beijing [Belém, no orig.] to be born?” É verso de William Butler Yeats (1865-1939), em The Second Coming [A segunda vinda]. Pode ser lido em português (tradução não identificada).

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