Os caminhos do dinheiro, na crise iraniana
17/1/2012, Pepe Escobar, Tom Dispatch
Traduzido pelo
pessoal da Vila
Vudu
Comecemos pela linha vermelha. Cá está ela, colhida
diretamente da boca do leão [1]. Semana
passada, o secretário de Defesa Leon Panetta disse dos iranianos: “Estão
tentando desenvolver bomba atômica? Não. Mas sabemos que estão tentando
desenvolver alguma capacidade nuclear. E é isso que nos preocupa. Nossa linha
vermelha para o Irã é “não desenvolvam bomba atômica”. Para nós, é a linha
vermelha.”
Estranho, mesmo, é que as tais linhas vermelhas não
param de encolher. Era uma vez, antigamente, a linha vermelha para Washington
era “o enriquecimento” do urânio. Agora, só falam de bomba atômica. Lembrem
todos que, desde 2005, o Supremo Líder iraniano, aiatolá Khamenei já dizia
[2] que seu país não trabalha para
construir bomba atômica. A mais recente
National Intelligence Estimate [3] sobre o Irã, produzida pela inteligência dos
EUA já disse várias vezes que o Irã não está, de fato, construindo bomba atômica
(o que não significa que não venha, algum dia, a ter capacidade para
construir).
Mas e se não se
tratar de coisa alguma como “linha vermelha”? E se tratar-se, de fato, de algo
completamente diferente, de uma, digamos, “linha do
petrodólar”?
Sanções e novos
bancos?
Comecemos por aqui: em dezembro de 2011, indiferente às
graves consequências para a economia global, o Congresso dos EUA – sob as
pressões habituais pelo lobby israelense (não que fossem necessárias)
– impôs um pacote de sanções goela abaixo do governo Obama (100 a zero no Senado, e apenas
12 [4] votos “não” na
Câmara de Deputados). Começando em junho, os EUA terão de boicotar todos os
bancos e empresas de terceiros países que negociem com o Banco Central do Irã, o
que implica paralisar as vendas de petróleo do país. (O Congresso prevê algumas
“exceções”).
O
objetivo final? Mudar o regime – e o que mais seria? – em Teerã. O funcionário
norte-americano não identificado de sempre admitiu claramente ao Washington Post, e o jornal publicou
o comentário. (“O objetivo dos EUA e das novas sanções contra o Irã é levar o
regime ao colapso, disse alto funcionário da inteligência dos EUA, em clara
indicação de que o governo Obama tem, no mínimo, uma intenção de derrubar o
governo do Irã, apesar do corrente engajamento”). Mas... Epa! O jornal logo
depois teve de revisar [5] esse trecho,
para eliminar essa citação embaraçosamente clara. Sem dúvida, essa “linha
vermelha” aproximara-se excessivamente da verdade e abalara o conforto
geral.
O ex-comandante
geral do Estado-Maior das Forças dos EUA almirante Mike Mullen acreditava que só
evento monstro estilo choque-e-pavor, que humilhasse completamente a liderança
em Teerã, levaria a genuína mudança de regime – e de modo algum estava sozinho.
Defensores de ações que vão de ataques aéreos à invasão (pelos EUA, por Israel
ou por alguma combinação de ambos) sempre foram legiões na Washington
neoconservadora. (Basta ver, por exemplo, o relatório de 2009 da Brookings Institution, Which Path to Pérsia [6]).
O problema é que
quem conheça, por pouco que seja, o Irã, sabe que esse tipo de ataque fará a
população cerrar fileiras a favor de Khamenei e dos Guardas Revolucionários.
Nessas circunstâncias, o que menos importará é a profunda aversão que vários
iranianos nutrem contra a ditadura militar do mulariato.
Além disso, até a
oposição iraniana apoia um programa nuclear nacional pacífico. É questão de
orgulho nacional.
Intelectuais iranianos, mais familiarizados com as
fumaças e espelhos persas que os ideólogos em Washington, descartam
completamente [7] quaisquer
cenários de guerra. Dizem que o regime de Teerã, afiado nas artes do teatro de
sombras persa, não tem qualquer intenção de provocar qualquer tipo de ataque que
levaria ao cerco contra o próprio governo. Por sua vez, certos ou não, os
estrategistas de Teerã assumem que Washington não tem condições para lançar mais
uma guerra no Oriente Médio Expandido, sobretudo se se fala de guerra que
levaria a terrível dano colateral para a economia
mundial.
Enquanto isso, as expectativas de Washington, de que
sanções duríssimas possam forçar os iranianos a ceder um pouco, se o governo não
for derrubado, podem revelar-se nada além de quimera. Em Washington, os
especialistas só falam de uma suposta mega-desvalorização desastrosa da moeda
iraniana [8], o Rial, dadas as novas sanções.
Infelizmente para os fãs do colapso econômico do Irã, o professor Djavad
Salehi-Isfahani [9] já expôs em detalhes elaborados a natureza
de longo prazo desse processo, que os economistas iranianos receberam como
dádiva. Afinal, as sanções farão aumentar a importância de outros itens de
exportação iraniana e ajudarão a indústria local, hoje obrigada a enfrentar a
concorrência dos produtos chineses baratos. Em resumo: um Rial desvalorizado tem
boas chances de ajudar a reduzir o desemprego no Irã. [10]
Mais conectado que
o Google
Embora poucos nos
EUA tenham observado, o Irã não está absolutamente “isolado”, por mais que
Washington deseje que esteja. O primeiro-ministro do Paquistão Yusuf Gilani
tornou-se passageiro frequente de voos para Teerã. E não se compara, em
assiduidade, com o chefe da segurança nacional da Rússia, Nikolai Patrushev, que
recentemente alertou Israel para que não force os EUA a atacar o Irã.
Acrescente-se a tudo isso também o aliado dos EUA e presidente do Afeganistão
Hamid Karzai. Num Loya
Jirga (Grande Conselho) no final de
2011, frente a 2.000 chefes tribais, Karzai disse que Kabul planejava
aproximar-se ainda mais de Teerã.
Oleodutostão - as várias linhas que passam e/ou saem do Irã |
Nesse
crucial tabuleiro eurasiano de xadrez, o Oleodutostão (orig. Pipelineistan [11]), gasoduto Irã-Paquistão (IP) de
gás natural – para extremo incômodo de Washington – está em pleno andamento. O
Paquistão precisa muito de energia e o governo já decidiu claramente que não
está disposto a esperar até o dia do juízo final pelo projeto que é a
menina-dos-olhos de Washington [12]
– o oleogasoduto Turcomenistão-Afeganistão-Paquistão-Índia (TAPI) – para tentar
atravessar o Talibãnistão.
Até o ministro das
Relações Exteriores da Turquia Ahmet Davutoglu esteve recentemente em Teerã,
embora as relações entre os dois países estejam cada dia mais complicadas.
Afinal, a energia sobrepõe-se a todas as ameaças na região. A Turquia é membro
da OTAN e já está envolvida em operações clandestinas na Síria, aliada a sunitas
fundamentalistas linha-duríssima no Iraque e – em movimento ostensivo de dar as
costas à(s) primavera(s) árabe(s) – trocou um eixo Ankara-Teerã-Damasco por eixo
Ankara-Riad-Doha. Já planeja até hospedar componentes do longamente planejado
sistema de mísseis de defesa de Washington, mirados para o
Irã.
Tudo isso, vindo
de um país para o qual o mesmo Davutoglu inventara uma política exterior de
“zero problemas com nossos vizinhos”. Apesar de tudo, a necessidade de
Oleogasodutostão faz disparar todos os corações. A Turquia precisa
desesperadamente de acesso aos recursos energéticos do Irã e, se o gás natural
iraniano algum dia chegar à Europa Ocidental – chegada que os europeus esperam
com máxima ansiedade – a Turquia será país de trânsito daquele gás, com os
correspondentes privilégios e impostos a cobrar. Líderes turcos já demonstraram
que rejeitam quaisquer novas sanções que os EUA imponham ao petróleo
iraniano.
Por
falar em conexões, o mundo assistiu, semana passada, a um espetacular coup de théâtre diplomático, com o tour do presidente Mahmoud
Ahmadinejad do Irã, pela América Latina. A direita dos EUA imediatamente pôs-se
a falar sobre um eixo do mal Teerã-Caracas – que supostamente estaria promovendo
o “terror” na América Latina, como preparação para futuros ataques contra a
superpotência do norte – mas, de volta à vida real, o que se viu foi outro tipo
de clara verdade [13]. Mesmo depois de tantos anos,
Washington ainda não é capaz de digerir a ideia de que perdeu o controle e, até,
a influência, sobre aquelas duas potências regionais sobre as quais, há tempos,
exerceu sua impiedosa hegemonia imperial.
Acrescente a tudo
isso a barreira de desconfiança que só fez solidificar-se desde a revolução
islâmica do Irã de 1979. Misture também uma América Latina nova, já praticamente
soberana e que busca a integração, não só pelos governos de esquerda na
Venezuela, Bolívia e Equador, mas também pelas potências regionais Brasil e
Argentina. Mexa tudo e você obterá as fotos históricas em que se veem os
presidentes Chávez da Venezuela e Ahmadinejad do Irã, , saudando o presidente
Daniel Ortega da Nicarágua.
Washington
continua a tentar divulgar a imagem de um mundo do qual o Irã teria sido
completamente desconectado. Como já aconteceu, a porta-voz do Departamento do
Estado Victoria Nuland insistia novamente, recentemente, que “o Irã permanece em
total isolamento internacional”. Não.
Como também acontece com frequência, a porta-voz precisa prestar mais atenção
aos fatos.
Esse Irã que
permaneceria “isolado” tem $4 bilhões em projetos conjuntos com a Venezuela,
dentre os quais – crucialmente importante – um banco (como também com o Equador,
o Irã tem vários projetos planejados, da construção de usinas a, outra vez,
também bancos). Tudo isso levou a equipe dos “Primeiro-Israel” que Israel
controla em Washington a exigir, em altos brados, que se aplicassem sanções
também contra a Venezuela. O problema é o seguinte: como, nesse caso, os EUA
pagariam para receber o petróleo da Venezuela de que muito
precisam?
A
imprensa dos EUA comentou muito que Ahmadinejad não tenha visitado o Brasil
nesse tour latino-americano, mas não há dúvidas de que
Teerã e Brasília continuam em sintonia diplomática. No que tenha a ver com o
dossiê diplomático, a história do Brasil só atrai simpatias. Afinal, o Brasil
desenvolveu – e depois cancelou – um programa de armas nucleares. Em maio de
2010, Brasil e Turquia construíram um acordo de troca de urânio para o Irã que
bem poderia ter desatado os nós mais apertados do imbróglio nuclear entre EUA e Irã.
Aquele acordo foi imediatamente sabotado por Washington. Membro chave dos BRICS,
o clube das principais economias emergentes, Brasília opõe-se firmemente à
estratégia dos EUA de sanções/embargo [14].
O Irã está
“isolado” dos EUA e da Europa Ocidental, mas dos BRICS aos MNAs (120 países do
Movimento dos Não Alinhados), o Irã tem, a seu favor, a maioria do sul global.
E, além do mais, há os aliados de Washington, Japão e Coreia do Sul, que
suplicam para serem excluídos da obrigação de boicotar/embargar o Banco Central
do Irã.
Não surpreende,
porque essas sanções unilaterais dos EUA visam também a atingir a Ásia. Afinal,
China, Índia, Japão e Coreia do Sul, juntos, compram nada menos que 62% de todo
o petróleo que o Irã exporta.
Com a
polidez que é marca registrada asiática, o Ministro das Finanças do Japão Jun
Azumi fez saber ao secretário do Tesouro dos EUA Timothy Geithner o problema que
Washington está criando para Tóquio, que depende do Irã para suprir 10% do
petróleo que consome. Está prometendo [15] pelo menos
“reduzir” aquela proporção “o mais depressa possível”, para obter de Washington
uma isenção daquelas sanções, mas que ninguém espere muita coisa. A Coreia do
Sul já anunciou que, em 2012, comprará do Irã, sim, 10% do petróleo de que
necessita.
Rota da Seda Redux
O
mais importante de tudo é que um Irã “isolado” é assunto gravíssimo, de alta
segurança nacional, para a China, que rejeitou [16]
imediatamente as últimas sanções de
Washington, sem nem piscar [17]. O
ocidente parece esquecer que o Império do Meio e a Pérsia fazem negócios já há
quase dois mil anos. (“Rota da Seda”, alguém já ouviu
falar?)
Os
chineses já montaram grande negócio [18] para o
desenvolvimento do maior campo de petróleo do Irã, Yadavaran. Há também a
questão de entregar o petróleo iraniano no Mar Cáspio, por um oleoduto que se
estende do Cazaquistão à China Ocidental. De fato, o Irã fornece nada menos que
15% do petróleo e do gás natural que a China consome. O Irã é mais crucial
[19] para a China,
especialista em energia, que a Casa de Saud para os EUA, que importam da Arábia
Saudita 11% do petróleo que consomem.
A
verdade é que a China pode sair como vencedora [20] da nova rodada
de sanções de Washington, porque provavelmente conseguirá preço mais baixo por
petróleo e gás, com os iranianos agora mais dependentes do mercado chinês. Nesse
momento, de fato, os dois países estão em meio a uma complexa negociação
[21] sobre o preço
do petróleo iraniano, e os chineses aumentaram a pressão cortando muito de leve
as compras de energia. Mas tudo isso estará resolvido em março, pelo menos dois
meses antes de a última rodada de sanções dos EUA entrar em vigência, segundo
especialistas em Pequim. No final, os chineses com certeza comprarão muito mais
gás e petróleo iranianos, mas o Irã permanecerá na posição de seu terceiro maior
fornecedor de petróleo [22], depois de Arábia Saudita e
Angola.
Quanto a outros
efeitos sobre a China das novas sanções, que ninguém conte muito com eles.
Empresários chineses no Irã estão produzindo carros, redes de fibras óticas e
expandindo o metrô de Teerã. O comércio bilateral é de $30 bilhões hoje e deve
alcançar os $50 bilhões em 2015. Não há dúvidas de que comerciantes chineses
encontrarão um meio de circunavegar os impedimentos bancários impostos pelas
novas sanções.
A
Rússia, é claro, é outra apoiadora chave do “isolado” Irã. Opôs-se fortemente
contra as sanções aplicadas através da ONU e as aplicadas pelo pacote aprovado
em Washington [23] e que visam o Banco Central do
Irã. De fato, a Rússia deseja que sejam suspensas as sanções já aplicadas pela
ONU e também trabalha num plano alternativo [24]que poderia, pelo menos
teoricamente, levar a um acordo nuclear aceitável, sem demérito, por todas as
partes.
No front nuclear, Teerã já manifestou
disposição para acertar-se com Washington, seguindo as linhas do plano que
Brasil e Turquia sugeriram e Washington boicotou imediatamente, em 2010. Dado
que hoje já se vê bem claramente que, para Washington – com certeza para o
Congresso – a questão nuclear é secundária (e a mudança de regime é a questão
principal) – quaisquer novas negociações estão condenadas a enfrentar processo
extremamente doloroso.
Tudo
isso é especialmente verdade agora que os líderes da União Europeia conseguiram
afastar-se de qualquer futura mesa de negociação, atirando, eles mesmos, nos
próprios pés calçados em sapatos Ferragamo. À moda típica, seguiram caninamente
a liderança de Washington para implementar um embargo ao petróleo do Irã. Como
alto funcionário da União Europeia disse a Trita Parsi, presidente do Conselho
Iraniano Norte-americano [25], e diplomatas da União Europeia
disseram também a mim em termos bem claros, eles temem que a situação esteja
agora a um passo de nova guerra.
Enquanto isso, uma equipe da Agência Internacional de
Energia Atômica acaba de visitar o Irã [26]. A AIEA está supervisionando tudo que tenha a ver com
programa nuclear no Irã, inclusive a nova usina de enriquecimento de urânio
[27] em Fordow,
próxima da cidade santa de Qom, que deverá estar em plena produção em junho. A
AIEA é positiva: no Irã ninguém cogita de bomba. Mesmo assim, Washington (e os
israelenses) continuam a agir como se fosse apenas questão de tempo – e pouco
tempo.
Siga o dinheiro
O
mote do isolamento iraniano enfraquece ainda mais se se sabe que o país está
abandonando o Dólar no comércio com a Rússia, que passará a ser feito nas
respectivas moedas nacionais, Rials e Rublos [28]
–
movimento semelhante ao que já se vê no comércio entre China e Japão. Quanto à
Índia, usina econômica na região, os líderes também se recusam [29] a suspender as
compras de petróleo iraniano, troca comercial que, no longo prazo, parece que
também não será conduzida em dólares. A Índia já está usando o Yuan em negócios
com a China; Rússia e China também já negociam em Rublo e Yuanshá mais de um
ano; Japão e China comerciam entre eles em Yen e Yuan. Como para Irã e China,
todos os novos negócios e investimentos conjuntos serão pagos em Yuan e
Rial.
Tradução, caso
seja necessária: no futuro próximo, com europeus excluídos do mix, praticamente nenhum petróleo
iraniano será comerciado em dólares.
Importante também, três dos BRICS (Rússia, Índia e
China) aliados do Irã são grandes possuidores (e produtores) de ouro. Suas
complexas negociações não serão afetadas pelos humores do Congresso dos EUA. De
fato, quando o mundo em desenvolvimento assiste à profunda crise [30] no Ocidente da
OTAN, o que vêem ali é dívida massiva dos EUA, o Fed imprimindo moeda como se o
fim do mundo estivesse próximo, muita injeção de dinheiro nos bancos [orig.
“quantitative easing”] e, claro, a eurozona abalada até os
alicerces.
Siga o dinheiro.
Deixe de lado, por um instante, as novas sanções contra o Banco Central do Irã,
que só entrarão em vigência daqui a alguns meses; ignore as ameaças iranianas de
fechar o Estreito de Ormuz (pouco viáveis, porque aquela é a principal via pela
qual o petróleo iraniano chega ao mercado), e é possível que a razão chave pela
qual a crise no Golfo só faz crescer esteja na decisão de torpedear o petrodólar
usado como moeda de troca em todos os negócios.
A
ideia foi introduzida pelo Irã e com certeza gera ansiedade máxima em
Washington, que se vê ultrapassada não só por uma potência regional, mas,
também, pelos seus dois principais concorrentes estratégicos, China e
Rússia. Não surpreende que todos
aqueles porta-aviões estejam nesse instante em viagem para o Golfo Persa
[31], mas enviados para o mais estranho
dos combates: naves militares, com ordens para desarticularem arran os
econômicos.
Nesse
contexto, vale recordar que, em setembro de 2000, Saddam Hussein abandonou o
petrodólar como moeda de pagamento pelo petróleo iraquiano [32 ], e
mudou-se para o euro. Em março de 2003, o Iraque foi invadido e aconteceu a
inevitável mudança de regime. A Líbia de Muammar Gaddafi propôs um dinar de
ouro, previsto para ser moeda comum africana e moeda que a Líbia aceitaria em
pagamento por seus recursos energéticos vendidos. Outra intervenção e mais um
regime “mudado”.
Mas
Washington/OTAN/Telavive oferecem narrativa completamente diferente. As
“ameaças” dos iranianos seriam o xis da questão da atual crise, embora as
ameaças, de fato, só tenham acontecido como reação contra a incansável guerra
clandestina que EUA-Israel movem contra o Irã [33], e agora,
também, contra a guerra econômica. Aquelas “ameaças” reza a narrativa de
Washington, estão fazendo aumentar o preço do petróleo e alimentando recessão
cada vez maior. A culpa de tudo é do Irã, não do capitalismo de cassino de Wall Street nem as dívidas massivas de
EUA e países europeus. A fina-flor dos 1% nada tem contra altos preços do
petróleo, desde que o Irã possa ser atirado às massas, como judas a
malhar.
Michael Klare, [34] especialista em
energia lembrou recentemente que estamos hoje numa nova era de geoenergia, que
com certeza será extremamente turbulenta no Golfo Persa e em outros pontos. Mas
deve-se ver 2012 como o ano do início do que bem poderá ser deserção massiva do
dólar como moeda global preferencial. Como pensar também é realidade, imaginem o
mundo real – quase todo o sul global – fazendo todas as suas necessárias contas;
aos poucos, começando a negociar em suas próprias moedas; e investindo
quantidades cada dia menores dessas moedas, na compra de bônus do Tesouro dos
EUA.
Claro que os EUA
sempre podem contar com o Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) – Arábia
Saudita, Qatar, Omã, Bahrain, Kuwait e os Emirados Árabes Unidos – que sempre
prefiro chamar de Clube Contrarrevolucionário do Golfo (basta ver o que fizeram
durante a Primavera Árabe). Para todas as finalidades geopolíticas práticas, as
monarquias do Golfo são satrapias dos EUA. A promessa imorredoura, que fizeram
há décadas, de só usar o petrodólar implica em que são todas, hoje, apêndices do
poder do Pentágono projetados para o Oriente Médio. O Comando Central dos EUA
(Centcom) está, afinal de contas, baseado no Qatar; a V Frota dos EUA, no
Bahrain.
De fato, em todas
aquelas terras imensamente ricas em fontes de energia, que se podem identificar
como o Oleodutostão Expandido – que o Pentágono costumava chamar de “o arco de
instabilidade” – e que avançam pelo Irã na direção da Ásia Central, o Conselho
de Cooperação do Golfo continua a ser elemento crucial da periclitante hegemonia
norte-americana.
Se se
tratasse de recriação econômica do conto “O Poço e o Pêndulo” de Edgar Allen Poe
[35], o Irã seria uma engrenagem numa
máquina infernal que estaria lentamente esmagando o dólar como moeda mundial de
reserva. Mas é a engrenagem na qual Washington foca hoje toda a atenção. A
mudança de regime é ideia fixa. Só falta uma faísca para iniciar o incêndio (em
– deve-se acrescentar – todas as direções nas quais Washington não esteja
preparada).
Lembrem-se da Operação Northwoods [36], o plano de 1962, rascunhado pelos
comandantes do Comando Conjunto, de encenar operações terroristas nos EUA e
culpar os cubanos de Fidel Castro. (O presidente Kennedy fulminou o projeto). Ou
recordem o incidente no Golfo de Tonkin em 1964, que o presidente Lyndon Johnson
usou como justificativa para ampliar a Guerra do Vietnã. Os EUA acusaram barcos
armados do Vietnã do Norte de ataque não provocado contra barcos dos EUA.
Adiante se comprovou que os ataques sequer algum dia aconteceram e que o
presidente mentiu sobre todo o “incidente”.
Não é
delírio imaginar que pregadores linha-dura da doutrina da Dominação de Pleno
Espectro dentro do Pentágono possam, a qualquer momento, inventar um incidente
de falsa bandeira no Golfo Persa para atacar o Irã (ou podem, simplesmente, usar
golpe semelhante para induzir Teerã a cometer algum erro fatal de avaliação).
Considerem-se também a nova estratégia militar dos EUA que o presidente Obama
acaba de divulgar, segundo a qual Washington estaria tirando os olhos de duas
guerras em solo fracassadas no Oriente Médio Expandido, para movê-los agora na
direção do Pacífico (e, portanto, da China). O Irã está exatamente no meio do
caminho, no sudoeste da Ásia, mandando todo aquele petróleo diretamente para as
bocas vorazes do Império do Meio, atravessando águas vigiadas [37]
pela
Marinha dos EUA.
Quero
dizer que, sim, sim. Esse psicodrama maior que a vida, que chamamos “caso do
Irã” pode vir a revelar-se o caso do dólar norte-americano contra a China; ou o
caso das políticas do Golfo Persa, sob o manto de uma inexistente bomba
iraniana. A pergunta é: que besta mostruosa, chegada a hora, arrasta-se para
Pequim, para renascer? [38]
Notas dos
tradutores
38 Orig. “What rough beast, its hour come round at last, slouches
towards Beijing [Belém, no orig.] to be born?” É verso de William
Butler Yeats (1865-1939), em The
Second Coming [A
segunda vinda]. Pode ser lido em português (tradução não
identificada).
Excelente Post, Parabéns
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