4/1/2011, *M K
Bhadrakumar, Asia Times Online
Traduzido pelo
Coletivo da Vila
Vudu
Digam os chineses o
que disserem sobre 2012 ser ano do dragão, será, mesmo, o ano dos Talibã, no que
tenha a ver com os EUA.
O Ano Novo começou
com excitante “vazamento” “vazado” por altos funcionários dos EUA em Washington,
segundo o qual o governo Barack Obama estaria analisando a possibilidade de
entregar à custódia dos afegãos um alto comandante Talibã – Mulá Mohammed Fazl,
mantido prisioneiro há nove anos na prisão norte-americana na baía de
Guantánamo, Cuba.
Os funcionários
disseram que Fazl pode ser libertado (ou transferido para o Qatar), para atender
a pedido já antigo de Kabul e como medida para “construir confiança”, que
mostraria aos Talibã que os EUA estariam seriamente interessados em
“engajá-los”.
Mapa da região com as fronteiras étnicas e políticas |
De fato, o governo
Obama mal consegue esperar para “engajá-los”. Só restam quatro meses antes da
reunião da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) em Chicago, evento
previsto para marcar a liderança de Obama sobre a Aliança ocidental – e mostrar
que Obama lidera no front – integrado, o evento, à campanha eleitoral
presidencial nos EUA, de resultado, até agora, imprevisível. Supõe-se que
encontro consiga dirigir a atenção do mundo para a situação no
Afeganistão.
Com os europeus
tomados de profunda angústia existencial, dada a grave crise econômica, Obama
terá de usar todo seu charme sobre os colegas da OTAN, para que não o deixem
encurralado no Afeganistão. Para isso, terá de convencê-los de que os está
liderando rumo à saída daquele túnel escuro. O encontro de Chicago de modo algum
pode fracassar como fracassaram os dois eventos preparatórios – em Istambul, dia
2/11; e a Conferência Bonn II, dia 2/12.
Mas a coisa, na
região em torno do Afeganistão, está cada dia mais feia. Moscou acertou direto
devastador no plexo do jogo traçado pelos EUA e pelo secretário-geral da OTAN
Anders Fogh Rasmussen, que haviam idealizado, em termos táticos, fazer da Ásia
Central um quintal para operações no Afeganistão, no caso de as relações
EUA-Paquistão deteriorarem de vez; e, em termos estratégicos, fazer da Região
uma plataforma de lançamento do grande jogo rumo à Rússia, China e Irã.
Num importante
movimento no jogo geopolítico, a reunião da Organização do Tratado de Segurança
Coletiva (OTSC) [ing. Collective Security Treaty Organization (CSTO)] em
Moscou, dia 20/12, decidiu que, para que se instalem bases militares
estrangeiras no território da OTSC, passa a ser indispensável a aprovação por
todos os estados-membros da Aliança liderada por Moscou (Armênia, Bielorrússia,
Cazaquistão, Quirguistão, Rússia, Tadjiquistão e Uzbequistão). O presidente
Nurusultan Nazarbayev do Cazaquistão anunciou, em tom
sério:
“O mais importante resultado de nossa
reunião foi um acordo firmado sobre a coordenação das instalações de
infraestrutura militar de estados não membros da OTSC em território de estados
membros da OTSC. A partir de agora, para que um terceiro país instale base
militar em território de estados-membros da OTSC, terá de obter aprovação
oficial de todos os estados membros da OTSC. Parece-me que temos aí sinal claro
da unidade da Organização e da absoluta lealdade de todos os membros às relações
aliadas”.
A última frase pinga
de ironia, porque o governo Obama acaba de anunciar que oferecerá assistência
militar ao Uzbequistão, reviravolta política que não esconde a tentativa de
capturar aquele país chave na Ásia Central, para minar a unidade da OTSC. Para
grande frustração de Washington, o presidente Islam Karimov do Uzbequistão não
apenas esteve presente à reunião da OTSC em Moscou, como discursou e expôs com
clareza seu apoio à decisão da Aliança de Moscou.
Com isso, Moscou
começa a sugerir, na direção de Washington, que o monopólio dos EUA na resolução
dos conflitos no Afeganistão tem de acabar.
Os EUA podem, se
quiserem, tentar reconquistar as simpatias do Paquistão, para convencer
Islamabad a reabrir as rotas de trânsito que permanecem fechadas já há um mês;
podem também, se preferirem, voltar a usar a Rede Norte de Abastecimento, como
rota de retirada de soldados, equipamentos e armas da OTAN, quando a retirada
ganhar urgência, ao longo de 2012.
A decisão da OTSC
pende como espada de Dâmocles sobre as bases militares norte-americanas em
Manas, próxima de Bishkek, capital do Quirguistão – e centro radial estratégico
para o transporte aéreo.
Não há até aqui
qualquer sinal de que Rússia e Paquistão tenham começado a trabalhar juntos, mas
na declaração em que apresentou as prioridades da política externa russa para
2012, o ministro de Relações Exteriores da Rússia Sergey Lavrov, sim, reservou
situação à parte, para o Paquistão.
Mas, seguindo o voo
do corvo...
Nesse quadro, a
possível libertação de Fazl deve ser vista como jogada esperta, com a qual
Washington tenta fazer explodir toda aquela crescente unidade regional em torno
do Afeganistão. O plano do governo Obama é soltar uma raposa, dentro do
galinheiro.
Fazl é dos mais
experientes comandantes Talibã, esteve ao lado de Mullah Omar praticamente desde
o primeiro dia e tem homens seus nas posições chaves do exército dos Talibã. É
um dos favoritos de Mullah Omar e dos serviços secretos do Paquistão [orig.
Inter-Services Intelligence (ISI)], e sua “volta ao lar” encheria todos
esses de satisfação.
Mas, por outro lado,
Fazl é também responsável pelo massacre de milhares de xiitas hazaras nos anos
1998-2001; e há fortes indícios de que seja também responsável pela execução de
oito diplomatas iranianos em Mazer-i-Sharif, no norte do
Afeganistão.
Fazl provoca reações
viscerais de ódio entre os iranianos e pode facilmente gerar mal-entendidos nas
relações Paquistão-Irã (que têm melhorado nos últimos anos) o que geraria grave
dilema para Islamabad, nas relações com Mullah Omar.
Fazl também é
personalidade conhecida na Ásia Central e dos russos, porque atuava como homem
dos Talibã nos contatos com a al-Qaeda e seus grupos afiliados na região, como o
Movimento Islâmico do Uzbequistão [orig. Islamic Movement of Uzbekistan
(IMU)] e os rebeldes chechenos. Fazl comandou também a região estratégica de
Kunduz, na fronteira do “soft underbelly” da Ásia Central, onde mantinha
sua base com o chefe Juma Namangani, do Movimento Islâmico do Uzbequistão, ao
tempo da intervenção norte-americana, em outubro de 2011.
Fazl é homem da era
“pré-Haqqani”. A rede Haqqani – elemento chave da guerrilha comandada pelos
Talibã a partir das áreas tribais do Paquistão – aceitará a autoridade de Fazl,
decorrência de seus muitos serviços prestados, e abrirá mão da própria
autoridade hoje, cedendo o comando a ele? O Paquistão talvez se veja forçado a
definir prioridades entre seus “ativos estratégicos”. Nesse quadro, todos se
movimentam sobre terreno minado.
E entra em cena o
Qatar, que a cada dia mais emerge como o mais próximo aliado dos EUA no Oriente
Médio, comparável, só, a Israel. O governo Obama está impressionado pela
habilidade que o Qatar demonstrou em teatros tão diversos como Líbia, Egito e
Síria, nos contatos com a Fraternidade Muçulmana e outros grupos islamistas
aparentemente intratáveis, e com o quanto o Qatar ajudou os EUA a empurrar-se
para “o lado certo da história” no Oriente Médio.
O governo Obama está
otimista ante a possibilidade de entregar Fazl aos cuidados do Qatar, e espera
vê-lo reciclado como político islâmico para tempos democráticos.
Fazl tem as
credenciais necessárias para trazer para bordo o Mullah Omar e iniciar
conversações formais de paz. Fazl tem credibilidade aos olhos das milícias
Talibã e elas se inclinariam na direção de estimular uma reencarnação de Fazl.
Seus laços com forças islamistas no Paquistão e com o ISI seriam úteis canais de
comunicação com Islamabad, que seria pressionada a cooperar em conversações de
paz lideradas pelos EUA, ou, no mínimo, a não
boicotá-las.
De fato, Fazl é o
antídoto perfeito contra a influência do Irã no Afeganistão. Se o Qatar
acertar-se com Fazl, ele passará a ser o parceiro certo para Washington no
grande jogo, se a Primavera Árabe aparecer pela Ásia Central, com perspectivas
de mudança de regime e o surgimento de “democracias islâmicas” nas estepes. É
razoável esperar que Fazl consiga persuadir os Talibã a não fazer muito alarido
contra os planos dos EUA de estabelecer bases militares no
Afeganistão.
Mas...
o plano funcionará? O Paquistão parece já ter usado o primeiro tiro dos fogos de
artifício do Ano Novo para demolir o plano dos EUA, quando o porta-voz do
ministro das Relações Exteriores, Abdul Basit, disse em Islamabad na
2ª-feira:
“É impossível qualquer segurança e
estabilidade estáveis no Afeganistão sem o Irã. Para estabelecer segurança e
revigorar o Afeganistão, é indispensável dar a devida atenção ao Irã e confiar
no Irã, porque é impossível investir em qualquer tendência de paz e estabelecer
segurança e estabilidade estáveis é impossível sem a parceria com o
Irã”.
Estreito de Ormuz |
Basit falava ao som
ainda dos ecos do disparo do míssil cruzador iraniano que leva o feroz nome
de Qader (Potência, “o Todo
Poderoso”) disparado de local secreto, e que demonstra, acima de qualquer
dúvida, que Teerã pode, se quiser, bloquear o estratégico Estreito de
Ormuz.
Diplomata consumado, Basit com
certeza sabe que Doha, capital do Qatar, está a apenas 547 km de distância, seguindo
o voo do corvo, a partir do Estreito de Ormuz. Em Doha, Fazl não estaria em
segurança.
*MK Bhadrakumar foi diplomata de
carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética,
Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e
Turquia. É especialista em questões do Afeganistão e Paquistão e escreve sobre
temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as
quais
The
Hindu,
Asia
Online e Indian Punchline.
É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista,
tradutor e militante de Kerala.
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