Slavoj Žižek |
11/1/2012, Slavoj Žižek, London Review of Books (só Online)
Traduzido
pelo pessoal da Vila
Vudu
Como Bill Gates tornou-se o homem mais rico dos EUA? Sua
riqueza nada tem a ver com os custos de produção do que a Microsoft vende: i.e., não é resultado de ele produzir
bom software a preços mais baixos que a concorrência, nem
de “explorar” seus operários com melhores resultados (a Microsoft paga salários
relativamente altos aos operários intelectuais que contrata). Fosse assim, a
Microsoft já teria falido há muito tempo: as pessoas teriam escolhido sistemas
abertos, como o Linux que são tão bons, ou até melhores, que os produtos
Microsoft.
Milhões de pessoas continuam a comprar software da Microsoft porque a Microsoft impôs-se,
ela mesma, como padrão quase universal, praticamente monopolizou o campo,
encarnação do que Marx chamou de “intelecto
geral” [1],
significando conhecimento coletivo em todas as suas formas, da ciência ao
saberes práticos. Gates efetivamente privatizou parte do intelecto geral e
enriqueceu apropriando-se do lucro que extraiu dessa
apropriação.
A possibilidade de
que o intelecto geral fosse algum dia privatizado jamais passou pela cabeça de
Marx, nem por perto de seus escritos sobre o capitalismo (em boa parte porque
Marx passou ao largo das dimensões sociais do capitalismo). Mas a questão está
na base das lutas de hoje em torno da propriedade intelectual: o papel do
intelecto geral – baseado no conhecimento coletivo e na cooperação social –
aumentou no capitalismo pós-industrial, assim como a riqueza que se acumula,
fora de qualquer proporção com o trabalho usado para produzi-lo.
O resultado não está sendo, como
parece que Marx esperava, a autodissolução do capitalismo, mas a gradual
transformação do lucro gerado pela exploração do trabalho em renda apropriada
mediante a privatização do conhecimento.
Vale o mesmo para
os recursos naturais, cuja exploração é um das principais fontes de lucros no
mundo. Daí brota a luta permanente entre os aspirantes àqueles lucros: os
cidadãos do Terceiro Mundo, ou as corporações ocidentais.
Há alguma ironia
na evidência de que, ao explicar a diferença entre o trabalho (que, usado,
produz mais valia) e outras
commodities (cujo valor é
integralmente consumido, ao serem usadas), Marx fale do petróleo como exemplo
de commodity “comum”.
Hoje, qualquer tentativa de ligar
aumentos e quedas do preço do petróleo a aumentos e quedas nos custos de
produção ou no preço do trabalho explorado seria absolutamente sem sentido: os
custos de produção são desprezíveis, como proporção do preço que se paga pelo
petróleo, preço que, de fato, é o lucro que os proprietários dos recursos podem
exigir, graças à oferta limitada.
Uma modificação na
função do desemprego é outra das consequências do aumento na produtividade, por
causa do crescimento exponencial no impacto do saber coletivo.
O desemprego é
produzido por um capitalismo muito bem-sucedido (maior eficiência, maior
produtividade etc.) – que torna os trabalhadores cada vez mais inúteis: o que
deveria ser uma bênção – haver cada vez menos trabalho braçal – converteu-se em
maldição. Ou, dito de outro modo: a chance de ser explorado num trabalho de
longo prazo é vista hoje como privilégio.
O mercado mundial,
como diz Fredric Jameson, é agora “um espaço no qual todos foram um dia
trabalhador produtivo e no qual o trabalho, por todas as partes, começou a ser
precificado fora do sistema”.
No atual processo
da globalização capitalista, a categoria do desempregado já não está confinada
ao “exército de trabalho reserva”; inclui também, como Jameson escreve, “essas
populações massivas em todo o mundo que, como aconteceu, caíram fora da
história”, que foram deliberadamente excluídas dos projetos de modernização do
Primeiro Mundo capitalista e descartadas como casos terminais sem esperança”: os
chamados estados falidos (República Democrática do Congo, a Somália), vítimas de
fome epidêmica ou desastre ecológico, presas na armadilha de pseudo arcaicos
“ódios étnicos”, objetos de filantropia de ONGs ou alvos da “guerra ao
terror”.
A categoria dos
desempregados expandiu-se, pois, e hoje inclui vastas quantidades de pessoas,
dos temporariamente desempregados, passando pelos já não empregáveis e
permanentemente desempregados, até os habitantes de guetos e favelas (gente que
o próprio Marx várias vezes descartou como “lumpen-proletários”),
chegando, finalmente, a populações inteiras ou estados excluídos do processo
capitalista global, como os espaços em branco dos mapas antigos.
Há quem diga que
essa nova forma de capitalismo oferece novas possibilidades de emancipação.
Essa, seja como for, é a tese de Hardt e Negri em Multidão, onde tentam radicalizar
Marx, dizendo que, se se decapitar o capitalismo, obteremos o socialismo.
Marx, como esses
autores o veem, foi historicamente limitado pela noção de trabalho industrial
mecanizado, centralizado, automatizado e hierarquicamente organizado, razão pela
qual entendeu o “intelecto geral” como algo de certo modo semelhante a uma
agência central de planejamento; só hoje, com o crescimento do “trabalho
imaterial”, essa virada revolucionária tornou-se “objetivamente possível”.
Esse trabalho
imaterial estende-se entre dois polos: do trabalho intelectual (produção de
ideias, textos, programas etc.) ao trabalho afetivo (dos médicos, babás e
aeromoças). Hoje, o trabalho imaterial é “hegemônico” no sentido em que Marx
proclamou que, no capitalismo do século 19, a grande produção industrial era
hegemônica: porque se impõe não pela força dos números, mas pelo papel
estrutural chave, emblemático que desempenha. Emerge daí um vasto novo domínio
chamado o “comum” conhecimento partilhado e novas formas de comunicação e
cooperação.
Os produtos da produção imaterial
não são objetos, mas novas relações sociais e interpessoais; a produção
imaterial é biopolítica, a produção da vida social.
Hardt e Negri
descrevem aí o processo que os ideólogos do capitalismo “pós-moderno”n celebram como a passagem da produção material
à produção simbólica; da lógica centralista-hierárquica à lógica da
auto-organização e cooperação multicêntrica. A diferença é que Hardt e Negri são
efetivamente fiéis a Marx: tentam provar que Marx estava certo, que o
crescimento do intelecto geral no longo prazo é incompatível com o
capitalismo.
Os ideólogos do capitalismo
pós-moderno dizem exatamente o contrário: a teoria (e a prática) marxista
continua dentro dos limites da lógica hierárquica do controle estatal
centralizado e, portanto, não conseguem lidar com os efeitos sociais da
revolução da informação. Há boas razões empíricas que sustentam essa posição: o
que realmente levou à ruína os regimes comunistas foi a inabilidade para
acomodarem-se à nova lógica social sustentada pela revolução da informação:
tentaram dirigir a revolução construindo dentro dela um outro projeto
centralizado de planejamento estatal em larga escala. O paradoxo está em que o
que Hardt e Negri celebram como a única chance de superar o capitalismo é
celebrado pelos ideólogos da revolução da informação como o nascimento de um
capitalismo “sem atrito”.
A análise de Hardt
e Negri tem alguns pontos fracos – o que explica como o capitalismo conseguiu
sobreviver ao que teria sido (em termos marxistas clássicos) uma nova
organização da produção que o teria tornado obsoleto.
Os autores subestimam a extensão em
que o capitalismo de hoje (pelo menos no curto prazo) já conseguiu privatizar o
próprio intelecto geral; subestimam também a evidência de que, mais que a
burguesia, os próprios trabalhadores estão-se tornando supérfluos (com número
sempre crescente de trabalhadores já não só temporariamente desempregados, mas
estruturalmente inempregáveis).
Se o velho capitalismo envolvia
idealmente um empreendedor que investia dinheiro (seu ou emprestado) na produção
que ele próprio organizava e comandava e, na sequência, o empreendedor embolsava
o lucro, um novo tipo ideal começa a emergir hoje: já não se trata do
empreendedor dono da própria empresa, mas do gerente especialista (ou de um
conselho de gerência e administração presidido por um presidente executivo) que
administra uma empresa cujos proprietários são bancos (também administrados por
gerentes que não são os donos dos bancos) ou investidores dispersos. Nesse novo
tipo ideal de capitalismo, a velha burguesia, que ficou sem função, é
refuncionalizada como gerência assalariada: a nova burguesia recebe salários,
mesmo que seja proprietária de partes da empresa; e parte de sua remuneração são
ações da própria empresa (“bônus” pelo “sucesso”).
Essa nova
burguesia ainda se apropria da mais valia, mas sob a forma (mistificada) do que
tem sido chamado de “salário extra”: recebem mais que o “salário mínimo”
proletário (muitas vezes uma referência mítica, da qual os exemplos reais que se
conhecem na economia global é o salário de fome de um operário de porão chinês
na China ou na Indonésia), e é essa diferença em relação aos proletários comuns
que determina o seu status.
A burguesia no
sentido clássico tende assim a desaparecer: os capitalistas reaparecem como um
subconjunto de trabalhadores assalariados, como gerentes e administradores
qualificados para ganhar mais em virtude de sua competência (motivo pelo qual as
“avaliações” pseudo-científicas são cruciais: elas legitimam as diferenças nos
holerites).
Longe de estar limitada a gerentes,
a categoria dos trabalhadores que ganham salário extra inclui todos os tipos de
especialistas, administradores, funcionários públicos, médicos, advogados,
jornalistas, intelectuais e artistas. A mais valia assume então duas formas:
mais dinheiro (para os gerentes, etc.), mas também menos trabalho e mais tempo
livre (para – alguns – intelectuais, mas também para os administradores do
Estado, etc.).
O processo de
avaliação que qualifica alguns trabalhadores a receber “salário a mais” é
mecanismo arbitrário de poder e ideologia, sem qualquer vínculo com qualquer
competência real; o salário a mais não existe por razões econômicas, mas por
razões políticas: para manter uma “classe média” que garanta a estabilidade
social.
A arbitrariedade
da hierarquia social não é erro; é, isso sim, questão central, com a
arbitrariedade da avaliação desempenhando papel análogo à arbitrariedade do
sucesso de mercado.
A violência ameaça
explodir não quando há contingência demais no espaço social, mas, sim, quando se
tenta eliminar qualquer contingência. Em
La Marque du sacré, Jean-Pierre Dupuy concebe a hierarquia como um
de quatro procedimentos (“dispositivos simbólicos”) cuja função é tornar não
humilhante a relação de superioridade:
-
a hierarquia propriamente dita (ordem imposta de fora que me permite experienciar meu status social inferior como se não tivesse qualquer relação com meu valor inerente);
-
a desmistificação (procedimento ideológico que demonstra que a sociedade não é uma meritocracia, mas o produto de lutas sociais objetivas, que me permite evitar a dolorosa conclusão segundo a qual a superioridade de outra pessoa seria resultado de seus méritos e realizações);
-
a contingência (mecanismo similar, pelo qual se chega a entender que nossa posição na escala social depende de uma loteria natural e social; os de melhor sorte são os que nasceram com os genes certos, nas famílias ricas); e
-
acomplexidade (forças incontroláveis levam a consequências imprevisíveis; por exemplo, a mão invisível do mercado pode determinar o meu fracasso e o sucesso do meu vizinho, mesmo que eu trabalhe muito mais e seja muito mais inteligente).
Diferente do que
parecem, esses mecanismos não contestam nem ameaçam a hierarquia, porque a
tornam palatável, dado que “o que dispara o torvelinho da inveja é a ideia de
que o outro merece a boa sorte que tem, não a ideia oposta – a única que pode
ser manifesta abertamente”.
Dupuy extrai dessa premissa a
conclusão de que é grave erro pensar que uma sociedade razoavelmente justa que
se perceba como justa, estará, por isso, livre de ressentimentos: é exatamente o
contrário; precisamente nesse tipo de sociedade os que ocupam posições
inferiores buscam e encontraram, em violentas irrupções de ressentimento, vazão
para o orgulho ferido.
Ligado a isso é o
impasse que a China enfrenta hoje: o objetivo ideal das reformas de Deng foi
introduzir o capitalismo sem qualquer burguesia (porque a burguesia seria a nova
classe dominante); mas agora os líderes da China estão ante a dolorosa
descoberta de que capitalismo sem hierarquia estável (que a existência da
burguesia oferece) gera instabilidade permanente.
Que caminho
seguirá a China?
Os
ex-comunistas estão emergindo como os mais eficientes gerentes do capitalismo,
porque a inimizade histórica que nutrem contra a burguesia como classe
acomoda-se perfeitamente à tendência do capitalismo de hoje para tornar-se
capitalismo gerencial sem uma burguesia – nos dois casos, como Stálin disse há
muito tempo, “os quadros decidem tudo”. (Diferença interessante entre a China de
hoje e a Rússia: na Rússia, os professores universitários são escandalosamente
mal pagos – e, de fato, já são parte do proletariado – na China, recebem
confortabilíssimo salário “a mais”, mecanismo pelo qual sua docilidade fica
assegurada.)
A ideia do salário
a mais também lança nova luz sobre os protestos “anticapitalistas” em curso. Em
tempos de crise, os candidatos óbvios ao “aperto do cinto”: são os baixos níveis da burguesia assalariada:
o protesto político é seu único recurso, se querem evitar unir-se ao
proletariado. Embora os seus protestos sejam nominalmente dirigidos contra a
brutal lógica do mercado, estão, de fato, protestando contra a gradual erosão do
lugar econômico privilegiado (politicamente) que sempre foi deles.
Ayn
Rand tem uma fantasia em Atlas
Shrugged (1957 ) [2], de
capitalistas “criativos”, fantasia que encontra sua realização pervertida nas
greves de hoje, que são greves, na maior parte, de uma “burguesia assalariad”’
movida pelo medo de perder seus privilégios (o “a mais” sobre o salário mínimo).
Não são protestos proletários: são protestos contra a ameaça de serem reduzidos
a proletários. Quem se atreve a fazer greve hoje, em tempos em que ter emprego
fixo já é, só isso, um privilégio? Não os trabalhadores mal pagos (no que resta)
da indústria têxtil etc., mas os trabalhadores privilegiados que têm empregos
garantidos (professores, funcionários dos serviços de transporte público,
policiais). Vale o mesmo para a onda de protestos de estudantes: a principal
motivação é, pode-se dizer, o medo de que a educação superior não mais lhes
assegure “salário a mais” depois que deixarem a universidade.
Ao
mesmo tempo, é evidente que o vasto renascimento de protestos do ano passado, da
Primavera Árabe à Europa Ocidental, de Occupy Wall Street à China, da Espanha à
Grécia, não pode ser reduzido a revolta da burguesia assalariada. Cada caso tem
de ser considerado à luz dos próprios méritos. Os protestos de estudantes contra
a reforma universitária na Grã-Bretanha foram visivelmente diferentes dos
tumultos de rua de agosto, que foram carnaval de destruição consumista,
verdadeira explosão dos excluídos. [3]
Pode-se dizer que
os levantes no Egito começaram em parte como revolta da burguesia assalariada
(jovens educados em protesto contra a ausência de perspectivas de vida para eles
mesmos), mas esse foi apenas um aspecto de protesto mais amplo contra um regime
opressivo. Por outro lado, os protestos não mobilizaram trabalhadores pobres e
camponeses; e a vitória eleitoral dos islamistas é indicação de o quanto era
pequena a base secular original das manifestações de rua.
A Grécia é caso especial: nas
últimas décadas, foi criada ali uma nova burguesia assalariada (sobretudo dentro
da super ampliada base administrativa do Estado) graças à ajuda financeira e aos
empréstimos da União Europeia; e os protestos foram motivados, em grande parte,
contra as ameaças de extinguirem-se aqueles privilégios.
Ao mesmo tempo, a
proletarização das faixas de salários mais baixos da burguesia ocorre ao lado do
oposto extremo: a remuneração economicamente irracionalmente muito alta paga aos
gerentes-executivos top e banqueiros. Essa remuneração é
economicamente irracional, sim: pesquisas já comprovaram nos EUA que a
remuneração dos gerentes-executivos
top e banqueiros é
inversamente proporcional ao sucesso das respectivas empresas.
Em vez de nos
pormos a escrever crítica moralista contra essas tendências, temos de lê-las
como sinais de que o próprio sistema capitalista já não é capaz, ele mesmo, de
encontrar níveis de estabilidade autorregulada. É o mesmo que dizer que o
capitalismo está a um passo de descontrolar-se completa e
absolutamente.
Notas dos
tradutores
[1]
MARX, Karl, Grundrisse. Manuscritos econômicos de 1857-1858:
Esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2011 [trad.
Mário Duayer].
[2]
Ver também “Slavoj
Zizek fala à rede Al Jazeera:
Agora, o campo está aberto”, 8/11/2011. [3]
Ver 20/8/2011, “Assaltantes
de lojinhas do mundo, uni-vos!”.
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