segunda-feira, 22 de outubro de 2012

O fim da Nova Ordem Mundial [1]


19/10/2012, Seumas Milne, Guardian, UK

The end of the New World Order

Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

A questão é assegurar uma maioria de esquerda. Mas é completamente impossível, se nos limitarmos a gaguejar slogans extremistas, anti-isso, anti-aquilo, anti-qualquer coisa, anti-qualquer um, enquanto mostramos à direita que somos incapazes de chegar a qualquer acordo sobre coisa alguma, sem sequer analisar qualquer condição objetiva da luta.
J. L. Mélenchon (Le Monde, 28/1/2010)*

Seumas Milne
No final do verão de 2008, dois eventos, em rápida sucessão, marcaram o fim da Nova Ordem Mundial. Em agosto, a Geórgia, estado-cliente dos EUA foi esmagada em guerra breve, mas brutal, depois de ter atacado soldados russos no território disputado da Ossétia do Sul.

A ex-república soviética sempre fora estado favorito dos neoconservadores de Washington. O presidente-ditador local nunca se cansava de trabalhar para que a Geórgia se unisse ao movimento de expansão da OTAN na direção da Rússia. Em movimento de muito evidente inversão da realidade, Dick Cheney, então vice-presidente dos EUA, denunciou a resposta dos russos como ato “de agressão” que “não pode ser deixado sem resposta”. Como se jamais tivesse declarado sua guerra catastrófica contra o Iraque, George Bush disse que “a invasão pela Rússia de um estado soberano” seria “inaceitável no século 21”.

Quando a luta terminou, Bush alertou a Rússia para que não reconhecesse a independência da Ossétia do Sul. A Rússia fez exatamente isso, com os navios de guerra dos EUA passando a ser obrigados a “desviar” do Mar Negro. Aquele conflito marcou um ponto de virada no cenário internacional. O blefe dos EUA foi exposto ao mundo, com o ímpeto militarista dos EUA já minado pela guerra ao terror, no Iraque e no Afeganistão. Depois de vinte anos, durante os quais os EUA marcharam sobre o mundo esmagando o que viam pela frente, o tempo de poder incontestado dos EUA chegava ao fim.

Três semanas depois, um segundo evento, de consequências ainda mais amplas, atingia o coração do sistema financeiro global dominado pelos EUA. Dia 15 de setembro, a crise de crédito finalmente irrompeu, quando faliu o quarto maior banco de investimentos dos EUA. A falência do Lehman Brothers mergulhou o mundo ocidental em sua mais profunda crise desde os anos 1930s.

A falência do Banco Lehman Brothers
A primeira década do século 21 sacudiu a ordem internacional, virando de cabeça para baixo o que as elites globais diziam saber sobre o mundo; 2008 foi o ponto de virada. Até ali nos diziam que, com o fim da Guerra Fria, as grandes questões econômicas e políticas haviam sido resolvidas. A democracia liberal e o capitalismo de livre-mercado haviam triunfado. O socialismo passara à categoria de relíquia histórica. Todas as controvérsias políticas seriam doravante guerras culturais e questão de cortar gastos e impostos.

Em 1990, George Bush Pai inaugurara uma Nova Ordem Mundial, baseada em incontestada supremacia militar dos EUA e domínio econômico do ocidente sobre o planeta: mundo unipolar sem rivais. Poderes regionais curvariam os joelhos ante o novo império planetário. A própria história, como houve quem dissesse, chegara ao fim.

Mas, entre o ataque às Torres Gêmeas e a quebra de Lehman Brothers, essa ordem mundial ruiu. Dois fatores foram cruciais. Ao final de uma década de guerras ininterruptas, os EUA afinal deixaram ver os limites, não a extensão gigante, de seu poderio militar. E o modelo de capitalismo neoliberal, que reinara supremo durante uma geração, espatifou-se.

Ataque às torres gêmeas
Foi a reação dos EUA ao 11/9, que quebrou a sensação de invencibilidade do primeiro verdadeiro império global. A resposta escandalosamente errada do governo Bush converteu as atrocidades em New York e Washington no mais bem-sucedido ataque terrorista de toda a história.

A guerra de Bush falhou, para começar, em seus próprios termos, ao fazer brotar terroristas em todos os cantos do mundo; e sua campanha de assassinatos premeditados, tortura e sequestros desacreditou, também, tudo que o ocidente sempre dissera ao mundo sobre os EUA serem guardiães dos direitos humanos. As invasões no Afeganistão e no Iraque, por EUA-Grã-Bretanha, revelaram ao mundo a incapacidade de o ocidente impor a própria vontade a povos decididos a resistir. Afeganistão e Iraque foram derrota estratégica para os EUA e seus aliados mais próximos.

O fim do momento unipolar foi a primeira de quatro mudanças decisivas que transformaram o mundo – sob alguns aspectos decisivos, para melhor. A segunda foi o crash de 2008 e a crise da ordem capitalista ocidental dominada pelo ocidente que a primeira mudança desencadeou, e que apressou o declínio relativo dos EUA.

A crise de 2008 foi crise made in USA e aprofundada pelo custo descomunal das várias guerras norte-americanas. E seu impacto mais devastador aconteceu nas economias cujas elites compraram mais entusiasticamente a ortodoxia neoliberal de dar todo o poder a grandes corporações a mercados financeiros desregulados.

O modelo de capitalismo voraz, metido goela abaixo do mundo como único modo de administrar uma economia moderna, ao custo de fazer inflar desmedidamente a desigualdade social e a degradação do meio ambiente, fora desacreditado – e só foi salvo do colapso total pela maior intervenção do Estado na economia, de toda a história mundial. A farsa dos irmãos gêmeos – conservadores e liberais – foi posta em prática e testada até se autodestruir, até o total fracasso.

O fracasso da farsa dos conservadores e liberais acelerou a ascensão da China – a terceira mudança radical das décadas iniciais do século 21. O crescimento dramático da China tirou milhões de homens e mulheres da miséria. E o modelo econômico chinês, de investimentos puxados pelo Estado, varreu do cenário o projeto ocidental; fez, da ortodoxia do mercado, piada; e criou um novo centro global de poder. Nesse novo cenário, o poder de manobra aumentou, para muitos estados menores.

Pequim e a ascensão da China
A ascensão da China ampliou o espaço no qual cresceu a maré de mudanças progressivas que hoje se alastra pela América Latina – o quarto avanço global. Por toda a América Latina, governos socialistas e social-democratas foram levados ao poder em eleições democráticas, passando a atacar a injustiça econômica e racial, construindo independências regionais e retomando, das mãos das grandes corporações, o poder. Apenas duas décadas depois de nos terem convencido de que não haveria saída além do capitalismo neoliberal, os latino-americanos já estavam criando várias saídas.

São mudanças que cobram preço alto, e claro, e exigem altíssimas qualificações. Os EUA permanecerão como potência militar dominante não se sabe até quando; as derrotas que sofreram no Iraque e no Afeganistão foram pagas com morte e destruição em escala colossal; e a multipolaridade implica seus próprios riscos de conflitos. O modelo neoliberal foi desmascarado e desacreditado, mas ainda há tentativas de trazê-lo à tona mediante programas selvagens de “austeridade”. O sucesso da China também custou preço alto em termos de desigualdades, direitos civis e violência contra o meio ambiente. E, na América Latina, elites apoiadas ainda pelos EUA ainda insistem em forçar o recuo de todos os avanços sociais, o que conseguem às vezes mediante golpes violentos, como se viu em Honduras em 2009. As mesmas contradições também levaram ao mar de sangue em que o mundo árabe foi mergulhado em 2010-11 – onde se assiste a outra mudança de proporções globais planetárias.

Guerra do Iraque
Hoje, a ataque às Torres Gêmeas já está convertida em tal fonte de embaraços e problemas, que o próprio governo dos EUA decidiu mudar-lhe o nome: hoje, a guerra ao terror já é referida como “operações contingenciadas no estrangeiro”. O Iraque já é desastre universalmente identificado, o Afeganistão já é empreitada completamente fracassada. Mas o real significado desse realismo claro e cru não poderia ser mais diferente do que as fontes de informação e notícias ocidentais diziam que essas ações seriam, quando foram lançadas.

Se se recorda o que diziam EUA e britânicos – políticos e especialistas, intelectuais e jornalistas adestrados – logo depois do 11/9, a única conclusão é que viviam num universo paralelo de fantasias envenenadas. Nenhum esforço deixou de ser feito para desacreditar todos os que se opuseram à invasão e à ocupação do Iraque – os mesmos que, em pouco tempo, já estavam amplamente vingados.

Michael Gove
Michael Gove, que hoje é ministro de um Gabinete dos Tories, lançou ácido puro contra o jornal Guardian que publicou amplo debate sobre o ataque ao Iraque; chamou o Guardian de “gangue Prada-Meinhof” de “quinta-colunas”. O Sun, de Rupert Murdoch, disse que os que se opunham à invasão do Iraque seriam “propagandistas antiamericanos da esquerda fascista”. Quando o regime dos Talibã foi derrubado, o próprio Blair sentenciou a condenação triunfalista de todos (eu incluído) que se haviam oposto à invasão do Afeganistão e à guerra ao terror. Todos, declarou Blair, estariam “comprovadamente errados”.

Dez anos depois, poucos são os que ainda duvidam de que o governo Blair, ele sim, estava “comprovadamente errado”, erro de consequências catastróficas. Os EUA e seus aliados não conseguirão submeter o Afeganistão, previam os mais bem informados. A guerra ao terror, ela mesma, criará terror e terroristas. Atropelar direitos civis terá consequências terríveis – e qualquer ocupação do Iraque será desastre afogado em sangue.

Os “especialistas” do partido da guerra, como o ex “vice-rei da Bósnia” Paddy Ashdown, zombou das advertências de que invadir o Afeganistão levaria “a longa campanha de guerra de guerrilha”; disse que seriam ideias “fantasiosas”. Mais de dez anos depois, a resistência armada está mais forte do que nunca e a guerra do Afeganistão já é a mais longa de toda a história dos EUA.

História similar aconteceu no Iraque – embora, então, a oposição à guerra já estivesse nas ruas, aos milhões. Os que se opunham à guerra ainda eram acusados de “frouxos” [orig. appeasers]. O secretário de Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, dizia que a guerra duraria seis dias. Muitos, também na mídia em língua inglesa, previam que a resistência desabaria em poucos dias. Todos esses, sim, estavam comprovadamente errados.

Na primeira semana da invasão-ocupação do Iraque, escrevi que se devia esperar “forte resistência dos guerrilheiros, mesmo muito depois da partida de Saddam Hussein” e que os ocupantes daquela ocupação de estilo colonialistas “seriam expulsos”. Não estava errado. As tropas britânicas enfrentaram ataques incansáveis, da resistência local armada, até 2009. O mesmo aconteceu aos soldados regulares dos EUA, até decidirem pela retirada, em 2011.

Mas não foi só na guerra ao terror que se comprovou que os que se opõem à Nova Ordem do Mundo acertaram, e que os promotores de guerras nada diziam que não fosse o mais calamitoso delírio. Por 30 anos, as elites ocidentais insistiram que só livres-mercados, privatizações e microimpostos para os mais ricos trariam crescimento e prosperidade.

Desde antes de 2008, o modelo do “livre-mercado” já vinha sendo alvo de ataque feroz: o neoliberalismo estava transferindo o poder para bancos e grandes empresas absolutamente “opacos”, sem fresta de transparência – diziam os ativistas da globalização antibancos e anticorporações; e assim o neoliberalismo estava fazendo aumentar a miséria e a injustiça social e esquartejando democracia – e que esse movimento era insustentável, simultaneamente, economicamente e ecologicamente.

Ao contrário dos políticos do New Labour, que diziam que as políticas “de bolhas” [orig. “boom and bust”] eram coisa do passado, os críticos lembravam que nada mais absurdo que dar por “abolido” o ciclo do mercado capitalista. Desregulação, financeirização e incansável promoção da especulação mais desenfreada, levaria sem dúvida possível, como levou, à crise.

A grande maioria dos economistas que previram que o modelo neoliberal caminhava a passos acelerados para o desastre eram, é claro, de esquerda. E assim, enquanto os principais partidos na Grã-Bretanha apoiavam “regulação leve” da finança, os opositores argumentavam, há muito tempo, que a City “liberalizada” ameaçava toda a economia.

Os críticos alertaram que privatizar serviços públicos sairia mais caro, geraria serviços piores e serviria como combustível para mais corrupção. Exatamente o que aconteceu. E na União Europeia, onde privilégio para bancos e corporações e ortodoxia de mercado foram formalizados em tratado, o resultado foi ruína de proporções continentais. A combinação de banking liberal com união monetária antidemocrática, pervertida e deflacionária, que críticos (nisso, unânimes, de direita e de esquerda) sempre disseram que não tinha qualquer coesão interna, nunca passou de desastre esperando para acontecer. O crash serviu, ali, de gatilho.

A esquerda sempre foi mais eloquente na crítica contra o capitalismo neoliberal. Foi também, sempre, mais eloquente na oposição às guerras de invasão e ocupação promovidas pelos EUA. Mas a esquerda mostrou-se estranhamente lenta e muda, no momento de capitalizar a seu favor os seus muitos acertos nas discussões centrais de toda essa era. Nem deve surpreender, talvez, se se considera a perda de confiança que contaminou as esquerdas mundiais, efeito de suas muitas derrotas no século 20, inclusive de suas próprias alternativas sociais.

Mas recuperar para nós as lições desses muitos desastres era essencial, para que não se repitam os erros. Mesmo depois do Iraque e do Afeganistão, a guerra ao terror prosseguiu, na matança de civis, na guerra de drones que hoje devasta, do Paquistão à Somália. As potências ocidentais foram decisivas na derrubada do regime líbio – agindo em nome de proteger civis, os mesmos civis que, imediatamente, passaram a ser assassinados aos milhares, numa guerra civil que a OTAN fez alastrar-se pela região, com a Síria, já devastada pelo mesmo conflito, sendo ameaçada de intervenção; e o Iraque, de ataque de tipo “solução final”.

E, enquanto o neoliberalismo era desacreditado em vários fronts, governos ocidentais usavam a crise para tentar entrincheirá-lo e protegê-lo. Não se cortaram só empregos, salários e benefícios como jamais antes em toda a história: as privatizações também prosseguiram. Acertar nas análises, é claro, jamais foi suficiente. Ainda falta muita pressão social e política, e terá de ser forte, para virar a mesa do poder.

Em 2008, cresceu também muito acentuadamente a revolta contra uma elite desacreditada e seus projetos sociais e econômicos fracassados. Com o peso da crise já descarregado sobre os ombros das maiorias, alastraram-se os protestos, as greves e vitórias eleitorais, o que mostra que a pressão por mudança efetiva está só começando. Rejeitar a ganância, a arrogância e o poder das grandes corporações já é o senso comum de época.

Eric Hobsbawm
O historiador Eric Hobsbawm descreveu o crash de 2008 como “equivalente, no mundo da direita, à queda do muro de Berlim” [2]. Virou lugar comum dizer que, depois da implosão do comunismo e ante a ascensão da social-democracia tradicional, a esquerda teria ficado sem alternativa sistêmica a oferecer. Mas nenhum modelo jamais foi servido pré-cozido. Todos, do poder soviético e do estado de bem-estar keynesiano ao neoliberalismo de Thatcher-Reagan, cresceram de improvisações ideologicamente motivadas em circunstâncias histórias específicas.

O mesmo vale para o dia seguinte da crise da ordem neoliberal. A necessidade de reconstruir uma economia quebrada, em novas bases, mais democráticas, mais igualitárias e mais racional, começa a ditar o formato de uma alternativa menos instável, mais sustentável. Ambas, a crise econômica e a crise ecológica já exigiram propriedade social partilhada, intervenção pública, com a riqueza e o poder já trocando de mãos. A vida real está empurrando na direção de soluções socialmente avançadas.

Os levantes dos primeiros anos do século 21 abriram a possibilidade de um novo tipo de ordem global e de genuína mudança social e econômica. Como os comunistas aprenderam em 1989, e os defensores do capitalismo só descobriram 20 anos depois, nada, em nenhum caso, estará jamais resolvido para sempre.



*Epígrafe acrescentada pelos tradutores, cortada-colada-traduzida de MOSCHONAS, Gerassimos, The European Union and the Dilemmas of the Radical Left, Transform, n. 09/2011, em tradução.

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Notas de tradução
[1] Versão editada de extrato de MILNE, Seumas, The Revenge of History: the Battle for the 21st Century [A vingança da história: a batalha pelo século 21], New York: Verso. [2] Eric Hobsbawm, Libération, 23/5/2009, em: Une réponse à la propagande libérale

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