13/10/2012, MK Bhadrakumar*, Asia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
“O que estamos fazendo - nem nós mesmos
sabemos,
mas a cada momento, mais isso nos
assusta...
Como quem saiu da
prisão,
sabemos algo um do
outro,
algo terrível. Estamos num círculo
infernal.
Mas talvez isto não sejamos
nós”.
“Através dos
Espelhos”, in Anna Akhmatova - Poesia: 1912-1964, Porto Alegre, Ed. L&PM,
1991 - trad. port. do Brasil, de Lauro Machado Coelho*
O Prêmio Nobel de Literatura ter
sido dado ao romancista chinês Mo Yan provocará mais de um olhar de incômodo ou
de arrogância
[1].
Não porque Mo não mereça a honraria, mas porque o prêmio tem história sempre
muito controvertida.
Em
2012, as controvérsias distribuem-se em três categorias – se o premiado
realmente merece tão excepcional honra; por que alguns outros autores foram mais
uma vez deixados de lado; e, terceira categoria, claro, a nacionalidade do
premiado.
A
primeira categoria induz a crer que nada se sabe nem se pode saber (por algum
tempo) – até que a comissão do Nobel desencave outro nome excitante.
A segunda categoria de
controvérsias é causa de incômodo – Anna Akhmatova, Yevgeny Yevtushenkov e
Andrey Voznesensky foram deixados de lado, e Joseph Brodsky “ganhou”. (Vladimir
Mayakovsky suicidou-se aos 37 anos,
[2]
antes de que o Nobel sequer soubesse de sua existência).
A
terceira categoria de controvérsias obriga a considerar uma verdadeira pequena
galeria de souvenirs excêntricos do tempo da Guerra Fria.
E
onde entra Mo?
Sinceramente, só li sobre ele e
não o conheço diretamente; parece ser romancista de vanguarda como Gao Xingjian
(2000) cujo A Montanha da Alma [São Paulo: Alfaguara/Objetiva] li duas
vezes (e talvez volte a ler), embora esteja longe do romancista emigrado que foi
Gao (rejeitado pelo establishment chinês, optou pelo exílio). Todos os
comentários concordam [3]
em que Mo é autor valiosíssimo. Gao é autor de experimentos com a escritura de
diferentes modalidades narrativas, e Mo, ao que parece, buscou reconectar-se à
cultura e as tradições chinesas.
Fã
apaixonado do realismo mágico na ficção, mal posso esperar para ler Mo.
Mas...
É a nacionalidade, estúpido!
O que mais se discute, no caso de
Mo, é ele ser CHINÊS e, ainda mais inacreditável e surpreendente, que Mo integra
“a sociedade chinesa mainstream” [4],
como escreve ardilosamente o Global Times chinês. O que nos leva à
questão seguinte: haverá aí alguma mensagem política?
Ah, sim! A política jamais se
afasta do Prêmio Nobel – como quando premiaram Pasternak (ainda em vida de
[Anna] Akhmatova [5]).
Em
tom de incontrolável euforia, o Global Times chinês compara 2012 e 1930,
quando Sinclair Lewis recebeu o Nobel — como se o Nobel estivesse reconhecendo o
aparecimento da China no cenário global hoje; assim como teria reconhecido o
aparecimento dos EUA no cenário global, como grande potência, há 82 anos.
Mikhail Sholokov |
Em minha opinião, a coisa aí está
mais para Mikhail Sholokov [6]
(1965), tudo outra vez. Aqueles tempos foram tão tumultuosos quanto os tempos
chineses, hoje.
O “Degelo de Khruchev” [7]
arquitetou e promoveu transformação irreversível na economia, na política e na
sociedade soviéticas. Autores libertos, desmesurados, nas artes, literatura,
música; atletas soviéticos conquistando medalhas olímpicas às pencas; a muito
simbólica retirada da múmia de Josef Stalin de onde estivera até então, no
Mausoléu de Lênin; a URSS abrindo-se para a “comunidade internacional”; teorias
da coexistência pacífica; consumismo; novas cozinhas familiares privadas, não
mais coletivas. (Evidentemente, todos esses eventos enfraqueceram muito, dali em
diante, o Partido Comunista Soviético).
E então sobreveio a demissão de
Khruchev, em 1964. Um ano depois, havia ainda grandes perguntas no ar, sem
respostas, sobre para que lado sopraria o vento, que estrada a União Soviética
tomaria. O julgamento Sinyavsky-Daniel [8]
com seus traços de ideologia autoritária que lutava para se reimplantar,
aconteceu em 1965. Nesse momento, precisamente, Sholokov foi escolhido para
receber o Nobel.
Seu
romance mais conhecido (Tikhy Don [O Don Corre Tranquilo]) é retrato
pungente da luta heroica e trágica dos cossacos, pela independência da região do
Don, contra os bolcheviques.
Sholokov
era melhor personagem que Mo. Era membro do Comitê Central do Partido Comunista
da União Soviética; membro do Soviete Supremo; membro da Academia Soviética;
Herói do Trabalhismo Socialista – e laureado com o Prêmio Stálin. Mas, examinado
mais de perto, também era figura enigmática – arquetípico e rebelde.
Sholokov
escreveu cartas a Stálin reclamando das terríveis consequências do programa de
coletivização no final dos anos 1920s e início dos 1930s. E acompanhou Khruchev
em sua histórica visita aos EUA em 1959. Foi símbolo do “Degelo de Khruchev”. E
denunciou Alexander Solzhenitsyn.
Notas
de rodapé
*Epígrafe
acrescentada pelos tradutores [NT].
[1] 12/10/2012, New York Times, em: “After Fury Over 2010 Peace Prize, China Embraces Nobel Selection”
[2] Prominent
Russians: Vladimir
Mayakovsky (July 19, 1893 – April 14, 1930)
[3] 12/10/2012, The Guardian,
UK, Howard Goldblatt em: “My
hero: Mo Yan”.
[4] 12/10/2012, Global Times,
em: “Nobel Prize a win for
mainstream values”
[5] Collection of Poems by Anna
Akhmatova: ((Born 1889, Died
1966)
[6] Leia mais sobre “Mikhail
Sholokhov”.
[7]
Orig.
Khrushchev
Thaw. Período, de meados dos anos 1950s ao início dos 1960s, quando
a repressão e a censura foram reduzidas na URSS e milhões de prisioneiros foram
libertados dos campos de trabalhos forçados, com a política de
“des-stalinização” de Nikita Khrushchev. [NT].
[8]
Orig. Sinyavsky-Daniel
Trial. “Em setembro de 1965, autoridades soviéticas prenderam um
conhecido crítico literário, Andrei Sinyavsky, e um tradutor relativamente
obscuro, Yuly Daniel, e os acusaram de denegrir o sistema soviético em trabalhos
publicados no exterior, sob pseudônimo. Os trabalhos em questão eram satíricos,
mas de modo algum antissoviéticos; no ensaio On Socialist Realism [Sobre
o realismo socialista], por exemplo Sinyavsky (ou "Abram Tertz") advogava nada
mais radical que um retorno ao estilo aventuroso de Vladimir Mayakovsky. Apesar
disso, depois de uma campanha furiosa de denúncias pela imprensa em janeiro de
1966, os dois foram condenados, em tribunal espetaculoso em fevereiro. Sinyavsky
foi condenado a sete anos, e Daniel a cinco, em regime fechado, num campo de
trabalhos forçados.
Tudo
sugere que elementos conservadores do regime Brezhnev-Kosygin, determinados a
por fim aos “experimentos” artísticos da era Khrushchev, criaram o “caso” como
sinal para alertar os artistas de que havia uma linha vermelha que não poderia
ser ultrapassada; e para calar os intelectuais. Mas foi sinal ambíguo, em
momento em que os conservadores absolutamente não estavam firmemente plantados
no poder – e o “sinal” não produziu os efeitos esperados. Sinyavsky e Daniel
recusaram-se a representar os papéis a eles atribuídos e defenderam-se
vigorosamente no tribunal. Houve protestos nas ruas de Moscou contra as prisões
em dezembro de 1965, seguidos de uma campanha pública, que fez crescer o número
de protestos e samizdat [prática pela qual indivíduos e grupos de pessoas
copiavam e distribuíam clandestinamente livros e outros bens culturais que
haviam sido proibidos pelo governo na União Soviética], que levaram à edição de
Chronicle of Current Events [Crônica dos Eventos Atuais] em abril de
1968.
O
julgamento Sinyavsky-Daniel tem sido interpretado como a faísca que galvanizou o
movimento dissidente, e acabou por induzir muitos intelectuais a deixar de
trabalhar dentro do sistema” [De WALLACE, JONATHAN D.. “Sinyavsky-Daniel Trial". Encyclopedia of Russian History.
2004. [NT].
__________________________________
MK
Bhadrakumar* foi
diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União
Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão,
Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões do
Afeganistão e
Paquistão e escreve sobre temas de energia e segurança para várias publicações,
dentre as quais The
Hindu, Asia
Online e Indian Punchline.
É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista,
tradutor e militante de Kerala.
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