17/10/2012, Corey Robin, Stop NATO
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
A London Review of Books
que acaba de sair, publica resenha do livro Age of Fracture [Tempo de
Fratura], de Daniel Rodgers, assinada por mim [1]. Só para assinantes da revista, o
que é uma pena, não só porque é minha opinião, mas também porque é minha opinião
sobre livro sensacional. Sem meias palavras, é a mais ampla história intelectual
do pensamento social norte-americano no pós-guerra que jamais li. Merece muita
atenção e discussão. Como já escrevi lá, é, também, uma reflexão falhada. O tema
ao qual Rodgers se dedica não é alguma “fratura”: é uma contrarrevolução. Aqui,
um aperitivo do que escrevi lá:
Corey Robin |
Se
se examinam os livros publicados entre 1944 e 1963 – dentre os quais An
American Dilemma [2], The Origins of
Totalitarianism [3], The Power Elite
[4], The Organisation Man
[5], The Feminine Mystique
[6] e The Making of the
English Working Class [7] – vê-se que mostram um mundo
que estaria em movimento, rumo a uma coesão quase claustrofóbica. As classes
consolidam-se, os brancos oprimem os negros, os “colarinhos brancos” oprimem os
sem colarinho algum, os ternos caros caminham pelas ruas dos centros financeiros
das grandes cidades, onde só se veem bancos e escritórios de grandes empresas.
Auschwitz
talvez estivesse a um mundo de distância de Levittown, mas o que Hannah Arendt
viu como atos totalitários – “destruir todos os espaços entre os homens e
empurrar homens contra homens” – autores do pós-guerra tomaram como boa
descrição de toda a vida social.
Quando
Betty Friedan recorreu ao campo de concentração como metáfora para o mundo da
mulher, refletiu o pensamento de uma geração treinada para pensar em termos de
blocos de homens e de mulheres obrigados a viver em espaços limitados, modelados
ou constituídos por diferentes vias, por padrões sociais.
As
décadas seguintes assistiram à publicação de The Declining Significance of
Race [8], In a Different Voice
[9], Free to Choose
[10], Gender Trouble
[11] e Freakonomics
[12]. A unidade ou foi-se ou
está em ponto morto. Nenhuma
regra, nenhuma lei conta ou interessa. Fora a lei. Viva o desvario personalista.
Tudo que era (supondo-se que algum dia tenha sido) sólido derreteu-se no ar.
Mas
onde Marx foi melancólico ou foi ao êxtase ao pensar essa noção, supondo que
refletiria uma dissolução genuína do mundo social (burguês), autores e
intelectuais veem hoje essa fragmentação não simplesmente como um modo
transitório de ser do mundo, mas como a própria condição do conhecimento.
Professor,
historiador da história intelectual, Daniel Rodgers chama a esse tempo “Tempo de
Fratura”, percebendo a tendência entre os intelectuais das últimas quatro
décadas, de trocar “leituras fortes da sociedade” por “leituras mais fracas”.
Entre meados do século 19 e meados do século 20, diz ele, “os pensadores sociais
envolveram o ego [orig. self] em círculos cada vez mais e mais amplos de
relações, estruturas, contextos e instituições. Os seres humanos nasciam dentro
de normas sociais, dizia-se. As chances da vida eram maiores ou menores conforme
o lugar que cada um ocupasse na estrutura social; até as características de
personalidade ganhavam forma dentro do campo das forças da socialização.” E,
então, tudo se quebrou. Não só o mundo externo – tudo se quebrou, afinal de
contas, desde o início da modernidade; os últimos 25 anos do século 20 foram só
um pouco mais partidos e fraturados que os primeiros 25 anos do século 17 – mas
também, e especialmente, “no campo das ideias e da percepção”. “Ouve-se cada vez
menos sobre sociedade, história e poder; e cada vez mais sobre indivíduos,
transitoriedade, contingência e escolhas”.
Rodgers
rastreia essa “desagregação” das categorias sociais em vários discursos:
econômicos, do Direito, da Ciência Política, da História, da Antropologia, sobre
raças, gêneros e nos discursos filosóficos. E, se algumas das trajetórias que
ele retraça são familiares (do patriarcado à performance nos estudos
femininos, do pluralismo de grupos de interesse à teoria da escolha racional
individualista na Ciência Política), o efeito cumulativo de ler outra vez, mais
uma vez a mesma história, em tantos campos, é significativa e sedutora.
Quando
Ronald Reagan começa a soar como Judith Butler, e quando a ala evangélica da
direita reacionária completa a ‘virada linguística’, não há como não ver que há
algo no ar.
...
É
possível que Rodgers esteja narrando, em outras palavras, menos a história de
uma fratura intelectual ou, mesmo, uma deriva nos modos básicos do capitalismo
e, mais, uma contrarrevolução, organizada nos mais altos círculos econômicos e
acadêmicos, e que se irradiou pela cultura, não raras vezes envolvendo até os
mais convictos opositores da mesma contrarrevolução.
Se
Mises acertou ao dizer que “até os opositores do socialismo são dominados por
ideias socialistas” – e os governos de Macmillan e Eisenhower sugerem, falando
em termos amplos, que assim é – parece plausível que os opositores da
contrarrevolução do livre mercado (de tecnocratas de esquerda, a teóricos do
feminismo) podem, sim, na via contrária, ter sido dominados pelas ideias do
livre mercado.
Não
necessariamente por orientação e prescrição política – embora muitos no Partido
Democrata tendam a favorecer políticas monetárias mais que políticas fiscais e
desenvolvimento, e desenvolveram um reflexo automático de cortar impostos –, mas
no nível mais profundo das respectivas imaginações políticas, em particular no
modo de ver o mundo em termos de ações não planejadas, espontâneas, não
coordenadas, de um bilhão de particulares fraturados e desconectados; além de um
correspondente cetismo quanto aos movimentos de massa.
Há
precedentes históricos de associação entre fratura e contrarrevolução. Em
resposta às insurgências de endividados que se viram na América nos anos 1780s,
e que ameaçaram os interesses de credores e proprietários, James Madison
observou que, em pequenas sociedades, é possível, para maiorias democráticas,
com interesses claros e distintos (usualmente contra a propriedade), unir-se e
impor sua vontade à minoria. Mas “amplie a esfera” da sociedade, Madison
escreveu, “e você tem maior variedade de partidos e interesses; e você torna
menos provável que uma maioria do todo tenha motivo comum para invadir os
direitos de outros cidadãos; ou, se tal motivo comum existe, será mais difícil
para todos que dele partilhem descobrir a própria força e agir em associação uns
com outros””.
Depois da Revolução Francesa,
doutrinadores como François Guizot e Pierre Royer-Collard, e um aluno deles,
Tocqueville, chegaram a conclusões similares sobre o valor contrarrevolucionário
do pluralismo. E no Sul Velho [orig. Old South] [EUA], John Calhoun
formulou sua teoria das maiorias co-ocorrentes [orig. theory of concurrent
majorities] [13] – uma sociedade já fragmentada
fragmentar-se-á cada vez mais, pela quase impossibilidade de o governo nacional
empreender qualquer ação concertada a favor da maioria – para contra-arrestar o
Norte abolicionista. [14]
Mas
nem sempre a fratura é dispositivo contrarrevolucionário. E nem todas as
contrarrevoluções seguem a via da fratura. Mas o fato de fratura e
contrarrevolução aparecerem tão frequentemente associadas obriga a perguntar por
que a fratura tanto ameaça a revolução e a reforma; e por que é tão amigável
face à contrarrevolução e ao retrocesso? Por que unidade e coesão são condição
necessária, se não suficiente, para qualquer movimento democrático de baixo para
cima?
Movimentos
das classes subordinadas exigem ação concertada de homens e mulheres os quais,
individualmente ou localmente, têm pouco poder; mas os quais, coletivamente e
nacionalmente (ou internacionalmente) têm, potencialmente, muito poder. Se
esperam exercer o poder que têm, esses movimentos têm de pressionar a favor da
unidade e têm de manter a unidade, em inúmeros contextos de desafio e
dificuldades; e não têm só de defender a unidade dentro dos movimentos (sempre
são movimentos onde não faltam heterogeneidades, de gênero, de raça, de status,
de religião, de etnia, de ideologia): têm também de defender o poder dos
próprios comandantes. Para movimentos democráticos de baixo para cima, a unidade
é a conquista mais precária e mais preciosa, sempre sob ameaça, simultaneamente,
de dentro e de fora.
Movimentos contrarrevolucionários,
ao contrário, sempre se beneficiam, pelos mais diferentes modos, da ação de
forças de fragmentação. Elites políticas e econômicas, porque são independentes
umas das outras no controle sobre os recursos, não precisam tanto de unidade e
coordenação. Importante, para essas elites, é criar, estimular e preservar a
desunião entre seus adversários, na direção absolutamente oposta ao que disse
Rosa Luxemburg, para quem “o mais importantedesideratum” em qualquer luta
é “a máxima unidade possível da parte social-democrática das massas
proletárias”. [15]
É
muito fácil, como sempre se acaba por descobrir, construir a desunião. A
fragmentação não apenas pulveriza os revolucionários que se opõem às forças
contrarrevolucionárias, espalhando-os em vários bandos de gente tão insatisfeita
quanto incapaz de qualquer ação produtiva. A fragmentação também torna ainda
mais difícil identificar a classe ou a claque governante. A ação de massa já não
encontra alvo claro (a Bastilha, o Palácio de Inverno). O que se vê é uma
espécie de poder borrifado sobre muitos, sem qualquer ligação com alguém, grupo
ou indivíduo, potencialmente acessível para vários, tanto quanto efetivamente
acessível para ninguém.
Esse,
na minha avaliação, é um dos grandes obstáculos que a esquerda enfrentou nos
últimos cerca de 50 anos. Talvez, com o Movimento Occupy – a convocação à
unidade, o esforço de unidade com os “proletários de todo mundo” (“somos os
99%”) que já quase parecem pós-estruturais –, estejamos deixando para trás
aquele obstáculo.
Notas
dos tradutores
[1]
ROBIN, Corey.
“Achieving
desunity”. Resenha de RODGERS, Daniel, Age of Fracture,
Harvard, 360 pp, £14.95, September, ISBN 978 0 674 06436 2, in London Review of
Books, vol. 34, n. 20, 25/10/2012, p. 23-25 (só para assinantes).
[2] MYRDAL, Gunnar, An American Dilemma. The Negro Problem and Modern
Democracy [1944].
[3]
ARENDT, Hannah, Origens
do Totalitarismo [1951] (em português do Brasil ).
[4]
WRIGHT
MILLS, C. A elite do poder [1956], Rio de Janeiro: Zahar,
1968.
[5] WHYTE, William H, The Organization Man
[1956].
[6]
FRIEDAN, Betty, A Mística
Feminina [1963] (em português do
Brasil ).
[7]
THOMPSON, E. P. [1963; nova ed. revista, 1968] A Formação da Classe Operária
Inglesa: A Árvore da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 3 vols, 1987.
Trad. Denise Bottman e Antônio Augusto Pereira Prates.
[8] WILSON, J. The Declining Significance of Race: Blacks and
Changing American Institutions [1978].
[9] GILLIGAN, Carol. In a Different Voice
[1982].
[10]
FRIEDMAN, Milton;
FRIEDMAN, Rose [1980], Liberdade para escolher, Rio de Janeiro, Ed.
Record, 1980.
[11] BUTLER, Judith. Gender trouble: feminism and the subversion of
identity [1990].
[12]
DUBNER, Stephen J.; LEVITT, Steven D., Freakonomics: o lado oculto e
inesperado de tudo que nos afeta, Rio de Janeiro: Elsevier,
2007.
[13]
CALHOUN, John Caldwell [1782-1850], Dissertação sobre o governo
(Estudos introdutórios de Viriato Soromenho-Marques e Diogo Pires Aurélio. Trad.
João C.S. Duarte, Lisboa: Círculo de Leitores, imp. 2010, 175 p., Coleção:
Clássicos da política.
[14]
Para Calhoun “A
imposição dos interesses protecionistas do Norte a todo o país poderia
acontecer, mediante o fortalecimento do poder central criado pela Constituição,
entendida como compromisso pré-constituído e esgotado. A defesa dos interesses
dos Estados sulistas fez com que Calhoun afirmasse uma abertura da Constituição
ao poder constituinte, fundado na construção da política com base no antagonismo
social e que não deveria ser amarrado nos ditames do poder constituído”. [Nota
de esclarecimento, de: A
Constituição de 1787 e a Limitação da Participação
Popular]
[15] LUXEMBURG, Rosa.
Greve de massas, partidos e sindicatos. São Paulo: Kairós, 1979 [ing. The Mass Strike, the Political Party
and the Trade Unions [1906], Cap.
8: “Need for United Action of Trade Unions and Social Democracy”.
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