Syed Saleem Shahzad |
18/3/2011, Syed Saleem Shahzad, Asia Times Online
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu
ISLAMABAD. O acordo armado entre o Paquistão e os EUA que permitiu que o norte-americano Raymond Davis – acusado de ter cometido duplo assassinato – se livrasse da cadeia em Lahore na 4ª-feira, pôs fim a crise sem precedentes ente os dois países – e ambos, agora, calculam o que lhes custou essa saga de seis semanas.
Davis, 36, apresentado pelos funcionários dos EUA como guarda-costas contratado pela CIA, foi absolvido depois de um acordo pelo qual boa quantidade de "dinheiro tinto de sangue" foi pago às famílias das vítimas. Davis baleou e matou dois homens que, segundo declarou, tentaram assaltá-lo em Lahore dia 27 de janeiro.
Funcionário do governo do Paquistão informou que a CIA pagou 700 mil dólares a cada família. O sistema legal do Paquistão permite que as famílias de vítimas de assassinato perdoem o assassino, em troca de compensação monetária.
Negócio fechado
A prisão de Davis, depois dos tiros, precipitou grave crise entre EUA e Paquistão. O centro da crise foi a alegação, pelos EUA, de que o assassino teria imunidade diplomática; os paquistaneses insistiam em que o caso fosse conduzido nos termos do que determina a lei paquistanesa.
Com tensões cada vez mais graves dia a dia, entre ameaças e contra-ameaças, e a guerra do Afeganistão em impasse, como que suspensa, já há quase um mês e meio, os altos comandos militares dos dois países afinal sentaram-se para discutir o caso, em segredo, num resort em Omã, dia 22 de fevereiro, depois de intervenção da Arábia Saudita.
Os EUA foram representados pelo almirante Mike Mullen, chefe do comando do Estado-Maior; pelo general David Petraeus, comandante da Força Internacional de Segurança e Assistência no Afeganistão; pelo almirante Eric Olson, comandante do Comando de Operações Especiais dos EUA; e pelo comandante da Marinha dos EUA general James Mattis, comandante do Comando Central dos EUA – como noticiou o jornal militar Stars and Stripes.
A delegação paquistanesa incluiu o general Ashfaq Parvez Kiani, chefe do Estado-Maior do Exército e o major-general Javed Iqbal, diretor general das operações militares do Paquistão.
Três atores ajudaram a tornar possível a reunião de Omã:
O tenente general Shuja Pasha, diretor geral do serviço secreto do Paquistão, Inter-Services Intelligence (ISI), que recebeu o presente de mais um ano no cargo, dois dias antes de Davis deixar a prisão.
O embaixador paquistanês em Washington Husain Haqqani, ex-professor da Boston University, que vive em eterna lua de mel com os governos dos EUA. Em outros tempos, Haqqani convenceu o então presidente dos EUA George W Bush a dar uma ajuda na substituição do militar-presidente Pervez Musharraf pelo atual presidente Asif Ali Zardari.
E o senador John Kerry, vice-presidente dos EUA.
Haqqani entrou em ação imediatamente depois de a crise ter eclodido, e conclamou todos os lados a resolver aquele problema o mais rapidamente possível. Percebeu que enviar mensagens ameaçadoras a Washington seria contraproducente. Os EUA já haviam excluído o Paquistão das conversações estratégicas sobre o Afeganistão, realizadas em Washington nos dias 23-23 de fevereiro. Haqqani não tinha qualquer dúvida de que quanto mais tardasse a reconciliação, mais o Paquistão ficaria isolado.
Mas um segmento dos militares paquistaneses interpretavam o quadro de outro ângulo. Para eles, em situação crítica no Afeganistão, e com a situação mais explosiva a cada dia no Oriente Médio, Washington não estaria em condições de pressionar ninguém, nem o Paquistão. E sabiam também que o caso despertara sentimentos muito intensos na rua paquistanesa.
Dia 5 de fevereiro, o Paquistão celebrou o Dia da Caxemira. O movimento Jamaatut Dawa (JuD), novo nome do banido grupo Laskhar-e-Taiba, afamado pelas atividades jihadistas na Caxemira administrada pela Índia, e acusado de responsável pelo violento ataque na cidade de Mumbai, na Índia, em novembro de 2008, estava nas ruas, promovendo manifestações. Adiante, depois da visita de Kerry ao Paquistão, o JuD ampliou muito o escopo das manifestações, com seu comandante Hafiz Muhammad Saeed liderando pessoalmente comícios em que exigia que Davis fosse enforcado.
“Parece que na crise gerada pelo caso Davis, o Paquistão está mobilizando organizações terroristas como o Jamaatut Dawa, e todo o processo de cortar as asas das organizações jihadistas sob pressão dos EUA depois do 11/9 parece estar sendo revertido” – disse na ocasião um alto oficial indiano ao jornal Asia Times Online.
A Índia, com o Afeganistão e até a Rússia, preocupavam-se com que a não-cooperação do Paquistão na guerra dos EUA no Afeganistão levaria a problemas na Região, se os islamistas proscritos encontrassem novos espaços para se movimentar.
As preocupações em Washington aumentaram, quando Pasha, chefe do serviço secreto paquistanês ISI instruiu Haqqani a enviar mensagem alta e clara aos EUA, de que a era de operações ilimitadas de inteligência com agências estrangeiras, no Paquistão, estava acabada.
O ISI já implementara uma “operação de contrainteligência” contra todos os diplomatas ocidentais, o que significa vigilância física ininterrupta, 24 horas ao dia, sete dia por semana. A operação afetou gravemente as operações da CIA no Paquistão. Antes, só diplomatas indianos, iranianos, russos e afegãos eram vigiados.
Depois de 11/9, a CIA e o ISI concordaram em partilhar inteligência. Mas a CIA estabeleceu escritórios e bases próprias e só informava ao ISI pouco antes de iniciar alguma operação. Depois da queda do governo de Musharraf em 2008, a CIA distendeu ainda mais seus tentáculos, trazendo empresas contratadas pelo Departamento de Defesa, que recrutavam agentes locais paquistaneses. Era quebra do acordo firmado pós 11/9 e configurava intervenção direta no Paquistão.
Em 2009, começou a reação paquistanesa, mas ainda muito cautelosa. O Paquistão recusou-se a dar vistos a pessoal norte-americano não ligado à embaixada dos EUA e iniciou um movimento de contrainteligência.
Quando houve o crime envolvendo Davis, o Paquistão pegou o touro pelos cornos e disse aos EUA que a presença da CIA no Paquistão, doravante, teria de ser só administrativa, restrita às quatro paredes dos consulados e embaixadas, de onde produziriam, no máximo, relatos escritos sobre o Paquistão. Todas as operações de segurança teriam de ser conduzidas exclusivamente pelas vias do ISI.
O Paquistão fez o que pode para enquadrar os EUA. Recusou-se a lançar operações militares na área tribal do Waziristão Norte contra a al-Qaeda e militantes, e manteve acordos existentes de cessar-fogo com grupos militantes, apesar de haver atentados contra o Paquistão. Permitiu que organizações religiosas de direita mobilizassem quadros em manifestações anti-EUA. O Paquistão também permitiu que tribos chegassem até Islamabad para denunciar o disfarce de um chefe de base da CIA, e permitiu que a Polícia metesse na cadeia um cidadão norte-americano contratado pelo Departamento da Defesa.
O governo dos EUA foi ficando cada vez mais nervoso por o Paquistão estar trocando de cavalo no meio do páreo, sobretudo agora, que o verão de batalhas no Afeganistão está tão perto, a apenas algumas semanas. Washington não desistiu completamente, mas as ameaças que fez, de cortar toda a imensa ajuda militar que dera ao Paquistão não eram ameaças feitas de uma posição de poder.
Foi quando a Arábia Saudita intrometeu-se, e organizou-se o encontro em Omã. Ali, os EUA ofereceram outro negócio ao Paquistão, pelo qual o país teria papel estratégico mais poderoso no sul da Ásia e na Índia; e garantiram ao ISI a palavra final em todos os assuntos de inteligência dos EUA no Paquistão.
À primeira vista, o Paquistão ganhou essa disputa diplomática; e os EUA perderam.
Alguns altos oficiais paquistaneses, contudo, temem que o país ainda tenha muito a perder. Argumentam que, com a batalha contra os Talibã no Afeganistão às vésperas de recomeçar a valer, os EUA insistirão em que Islamabad retribua, no Waziristão Norte, os ‘direitos’ que de presente ganhou nesse 18/3/2011 – ou farão o que decidirem fazer, sem qualquer consideração às sensibilidades paquistanesas.
O povo, na rua, que pouco sabe de ganhos estratégicos do Paquistão no caso Davis, não aceitará que os EUA façam “o que decidam fazer”, sobretudo agora, com a desconfiança que as instituições paquistanesas inspiram ainda exacerbadas pelos eventos no Oriente Médio e Norte da África.
Com o caso Davis, a rua paquistanesa tornou-se especialmente sensível.
Já há ressentimento contra a corte de justiça por ter aceito a opção “dinheiro tinto de sangue”, em vez de processar Davis nos termos da Lei Contra Atividades Clandestinas, dado que Davis foi acusado de participar de operações de espionagem e de posse ilegal de armas
Os dois principais partidos políticos do país, o Partido do Povo [orig. Pakistan People's Party] que está no governo em Islamabad, e a Liga Paquistanesa Muçulmana Nawaz, que governa a província de Punjab, onde Davis permaneceu preso, estão sendo vistos como partidos que se curvaram aos EUA.
Todo o exército paquistanês está sendo visto pelos cidadãos ‘comuns’ como excessivamente cordial com os EUA, sobretudo agora que os EUA patrocinaram a permanência de Pasha e de Kiani – o qual ganhou o prêmio absolutamente sem precedentes, de mais três anos de mandato.
Se crescer a agitação de massas no Paquistão contra as missões de inteligência dos EUA, elas inevitavelmente atacarão os principais partidos políticos, o judiciário, o exército e também, por último, mas nem por isso menos relevantes, os EUA e seus interesses no Paquistão.
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