domingo, 27 de março de 2011

Os líbios merecem coisa melhor que essa “coalizão” de vontades-ocultadas

Jornalismo é o seguinte: NENHUM jornal empresa escapa. Mas a gente pode se metê nos artigos e mandá vê, pêqmepê!
Vila Vudu

26/3/2011, com argumentos de The Independent, UK, mas tradução e conclusão da Vila Vudu
  
A velocidade com que foram tomadas as decisões sobre a intervenção militar na Líbia reflete forte senso de emergência. Havia, essencialmente, uma corrida na direção de Benghazi. (...)

Essa velocidade fez com que se atirassem ao mar várias importantes decisões.

Entre elas, algum indispensável acordo sobre a estrutura de comando de toda a operação. O custo dessa omissão tornou-se cada vez mais aparente, para grande embaraço dos envolvidos. Não só houve lamentável confusão sobre os reais objetivos dos envolvidos na operação – à parte o dever de proteger civis – , mas também houve dúvidas sobre quem comandaria, dado que Washington parecia tão ansiosa para iniciar a operação quanto para livrar-se das responsabilidades decorrentes dela.

Acordo firmado afinal ontem lança alguma luz sobre tudo isso. A OTAN ficará com a incumbência (que inicialmente coube aos EUA) de implantar a zona aérea de exclusão e fazer cumprir o embargo. E Grã-Bretanha, França e EUA tomarão as decisões sobre os alvos em terra. 

Essa divisão reflete a recusa da Turquia, que absolutamente não participará de operações que impliquem atirar contra forças terrestres (“é impensável, para a Turquia, atirar contra cidadãos árabes” – nas palavras do primeiro-ministro turco); reflete também a dificuldade das negociações para estabelecer algum objetivo aceitável para todos os 28 países da OTAN. A Alemanha já se abstivera, na votação no Conselho de Segurança da ONU que aprovou a Resolução n. 1.973, que autorizou o ataque militar à Líbia; e a Liga Árabe, depois, manifestou discordância sobre a interpretação do conceito de “no-fly zone”. (...)

Mas nem todos esses esforços para mostrar um muito necessário consenso depois do fato conseguem mascarar a persistente falta de qualquer consenso ou a inviabilidade do atual arranjo. A OTAN, sem dúvida, tem a experiência, a expertise e a capacidade necessária para implantar a zona aérea de exclusão, mas o precedente no Kosovo sugere que as decisões sobre identificação de alvos terrestres, a serem tomadas entre EUA, Grã-Bretanha e França, nem sempre será tranquilamente consensual, nem há meios para que as decisões sejam tomadas por critérios claros.

Há lições a serem incorporadas aqui, além da óbvia: é indispensável definir a estrutura de comando e a distribuição de forças antes, não durante, operação militar. A primeira dessas lições é que o mundo precisa aprender a negociar com EUA que não querem (ou já não podem) liderar militarmente o mundo. Quanto a isso, é possível que caiba a Barack Obama missão que nenhum outro presidente dos EUA jamais teve, antes dele. É possível que a disposição para uma reaproximação com os países muçulmanos seja traço individual do homem, naquele lugar e no atual momento. Se for esse o caso, e se o mundo estiver entrando no fim da era das intervenções militares pelos EUA, nesse caso, a Europa também terá de mudar muito.

A segunda fonte de preocupações é a ONU. Blocos regionais e suas respectivas organizações internacionais – a União Europeia, a OTAN, a Liga Árabe – estavam divididos sobre a intervenção militar na Líbia. O Conselho de Segurança da ONU efetivamente se sobrepôs a todas as divisões (e recebeu a inestimável cooperação de China e Rússia, que não exerceram o direito de vetar a Resolução que determinou a invasão à Líbia). Mas todos esses arranjos complicaram a implementação da própria decisão de invadir. (...)

Neste ponto, os tradutores da Vila Vudu separam-se de The Independent, depois de termos recolhido do jornal uma satisfatoriamente clara reconstituição dos eventos. 

Aqui nos separamos do jornal, porque, deste ponto em diante, The Independent deixa de expor fatos e passa a propagandear uma posição política, talvez nacional, do jornal. E é posição ocidental, imperial e belicista.

O jornal conclui, do acima exposto e traduzido, que “Se a ONU tivesse exército próprio, estariam superadas as dificuldades que hoje põem em risco a própria operação Alvorada da Odisséia. É preciso, pois, repensar a possibilidade de a ONU ter capacidade militar própria”. Aí, discordamos absolutamente de The Independent.

A ideia de dar à ONU “capacidade militar própria” – e até a ideia de que se “repense” essa possibilidade, como The Independent sugere e encaminha fortemente a favor da própria sugestão (“a ideia de que a ONU tenha capacidade militar própria merece ser repensada”, como se lê no jornal) – implica aumentar a militarização do mundo. NADA pode ser pior que isso. 

Conclusões alternativas, que The Independent sequer considera, porque, claramente, o jornal trabalha para fazer-crer que não seriam vias que “merecessem” ser repensadas, são, como sugere qualquer boa lógica democrática e não belicista: 

(a) reforçar a face política ou assistencial humanitária da ONU e, simultaneamente, fazer sumir todas as excepcionalidades autoritárias que viciam toda a estrutura da ONU como, dentre outras, o inadmissível poder que têm algumas potências de vetar e impedir que se convertam em resolução o que seja vontade da maioria das nações representadas na ONU; ou

(b) fechar a ONU, extingui-la, fechar para sempre, demolir o prédio, demitir todo mundo e salgar o terreno. Para sempre e completamente. Talvez pareça proposta alucinada, mas certamente não é proposta mais alucinada do que a que The Independent encaminha, de militarizar AINDA MAIS a ONU e o mundo.

Criada na, para, da e com a Guerra Fria, para dar alguma identidade a uma “comunidade internacional” que nunca foi comunidade e só existiu, como a OTAN, “para salvar o mundo ameaçado pelos comunistas”, a ONU está, flagrantemente perdendo capacidade até para enganar o mundo quanto à existência de alguma chamada “comunidade” internacional. 

“Comunidade internacional” é expressão que, já há algum tempo, só aparece, no mundo – repetida incansavelmente em todo o planeta pela imprensa-empresa – em circunstâncias nas quais EUA-Israel precisem esconder do mundo o que EUA-Israel fazem no mundo árabe em geral e na Palestina em especial. 

Agora, a expressão volta a aparecer em circunstâncias nas quais, mais uma vez, EUA-Israel precisam esconder do mundo que, mais uma vez, atacam militarmente país árabe, país muçulmano e país do Terceiro Mundo, país que, sobretudo, interessa a EUA-Israel “varrer do mapa”, para, supostamente, garantir “a segurança” de Israel-EUA. 

O que a temerária, enlouquecida, mal pensada e mais mal ainda executada invasão da Líbia mostra é, precisamente, a fraqueza, o fracasso da ONU, como organização que foi superada pela realidade histórica desses últimos 50 anos, no planeta. 

Evidentemente, a ONU não foi superada pela história – pelos ventos novos dos levantes populares não violentos em todo o mundo árabe – “porque” não tenha exércitos próprios. De fato, hoje, é ótimo que não tenha! 

Se, mesmo a ONU não tendo exércitos seus, EUA-Israel já conseguiram meios “via ONU” para legalizar uma invasão militar de agressão inadmissível a mais um país árabe, muçulmano e de Terceiro Mundo – quando bem entenderam, depois de décadas de nada fazer e ao mesmo tempo em que nada fazem em outros pontos do mundo onde também há populações civis atacadas a tiros, também hoje e também por ditaduras - o que fariam EUA-Israel, se a ONU tivesse exércitos seus?!

A ONU foi superada pela história – pelos ventos novos dos levantes populares não violentos em todo o mundo árabe – isso, sim, porque a ONU já não tem sentido algum, num mundo que já não é bipolar e no qual os EUA já não querem (ou, muito mais provavelmente, já não podem) mandar. É como se, empurrada pelos ventos novos dos levantes populares não violentos em todo o mundo árabe, a própria ideologia ocidental, imperial e belicista que gerou a ONU tenha, afinal, perdido a capacidade para enganar todos, todo o tempo. 

É, pois, verdade que “os líbios merecem coisa melhor que essa “coalizão” de vontades-ocultadas”, como The Independent declara, em manchete. Mas não é verdade que algum líbio algum dia alcançará coisa melhor, se o mundo seguir a ideia-proposta que The Independent esconde no fim do artigo, na última linha, fazendo jornalismo que, como se vê, tem lado e é lado imperial, autoritário e belicista. 

O fato de o belicismo aparecer ocultado, em The Independent, envergonhado de dizer o próprio nome, é, bem feitas as contas, o único sinal que autoriza a acalentar alguma esperança de que haja algum átomo de consciência democratizatória e progressista nesse jornalismo de bordel planetário, que não deixa de ser de borde  por esconder-se sob o silicone das manchetes tão “politicamente corretas”, tão falsamente “éticas”, quanto ainda são desavergonhadamente imperiais e belicistas.

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