terça-feira, 15 de março de 2011

O peso da oposição africana à “no-fly zone” na Líbia: contra os ditadores-“playboys” árabes

M. K. Bhadrakumar

15/3/2011, M K Bhadrakumar, Asia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


“O verdadeiro significado e o valor da compaixão e da não-violência aparecem quando nos ajudam a ver o ponto de vista do inimigo, a ouvir o que pergunta, a conhecer o que pensa sobre nós. Porque assim, desse ponto de vista, podemos de fato conhecer as fraquezas de nossas posições, e, se estivermos suficientemente maduros, podemos aprender e crescer e nos beneficiar da sabedoria dos irmãos que são chamados de ‘a oposição’.” [“Beyond Vietnam: A Time to Break Silence”, discurso de Martin Luther King Jr, 4/4/1967, NY, EUA]

No auge do levante egípcio, o conhecido repórter e jornalista investigativo Seymour Hersh disse, em entrevista à rede al-Jazeera, que os EUA tinham um “plano B”, no caso de Hosni Mubarak ser derrubado. 

Segundo Hersh, seria precisamente Amr Moussa – “saiba ele disso, ou não”. Até agora não há qualquer sinal de que Moussa não saiba. 

É homem suficientemente bem conectado para saber – é diplomata de carreira, foi ministro das Relações Exteriores por mais de 45 anos e secretário-geral da Liga Árabe [ing. Arab League (AL)] desde 2001. Tem esperança de suceder Mubarak na presidência do Egito. 

Moussa entrega a encomenda ... 

O plano-Moussa ganhou forte impulso com a decisão da Liga Árabe, no sábado, de recomendar que se imponha uma zona aérea de exclusão sobre a Líbia. Sua estrela subiu muito acima da de Mohammed ElBaradei. Dois grandes países árabes opuseram-se à decisão da Liga Árabe – Síria e Argélia –, mas Moussa venceu o obstáculo, graças aos pesos-pesados da Liga Árabe que clamam por democracia e pelo fim das ditaduras – Arábia Saudita, Kuwait, Omã, os Emirados Árabes Unidos, o Bahrain, o Iêmen, a Jordânia. 

Que drama bizarro! A verdade nua e crua é que a OTAN [ing. North Atlantic Treaty Organization (NATO)] e a União Europeia [ing. European Union (EU)] haviam expressamente encomendado que a Liga Árabe dissesse o que disse, porque precisam de uma folha de parreira para abordarem o Conselho de Segurança da ONU. 

A ministra das Relações Exteriores da União Europeia, Catherine Ashton, estava no Cairo no sábado, ao lado de Moussa, para garantir que Mussa entregaria o que o “Plano B” dos EUA lhe encomendara. Moussa entregou a encomenda. Imediatamente, EUA, Grã-Bretanha, França e Canadá “saudaram” a declaração da Liga Árabe. A OTAN reunir-se-á na 3ª-feira, para dar os últimos retoques na ação contra a Líbia. 

Grã-Bretanha e França, que comandaram a arriscada campanha pra mobilizar o “apoio” árabe à intervenção da OTAN na Líbia, festejaram o sucesso. O primeiro-ministro britânico David Cameron e o recém-indicado ministro das Relações Exteriores da França Alain Juppe visitaram o Cairo para conferir se a região leste da Líbia – a Cyrenaica rica em petróleo – poderia ser deixada a cargo da junta militar. 

... mas a África não concorda

Antes, as potências ocidentais haviam-se referido, quase como se fossem uma só entidade, de um só fôlego, à Liga Árabe e à União Africana como se fossem representantes de alguma “opinião regional”. Não são. E, agora, como não há opinião uniforme entre as duas – a tal “opinião regional”, tão alardeada, mas que não existe, virou problema. Os africanos parecem ser osso mais duro de roer que os ditadores-play-boys árabes. 

Como seria de prever, há virtual boicote, em todas as mídias, sobre o que declarou a União Africana sobre a Líbia. Vale a pena, então, rememorar. “A [União Africana] reafirma seu firme (sic) compromisso com respeitar a unidade e a integridade territorial da Líbia, e rejeita qualquer forma de intervenção estrangeira na Líbia” – disse Ramtane Lamamra, comissário da União Africana para Paz e Segurança, em Addis Abbaba. O Conselho de Paz e Segurança da União Africana (15 membros) decidiu “nomear uma comissão ad hoc, de alto nível” para monitorar a crise líbia. 

Os governantes da África do Sul, Uganda, Mauritânia, a República Democrática do Congo [orig. Democratic Republic of Congo (DRC)] e o Mali formarão a comissão ad-hoc. “A comissão ad hoc foi nomeada (...) para fazer contato com todos os grupos líbios e promover um diálogo inclusivo, e engajar parceiros da União Africana (...) para apressar a resolução da crise líbia” – declarou a União Africana. Lamamra disse que os eventos na Líbia exigem “urgente ação africana” para por fim às hostilidades. 

Mais importante que isso, a União Africana “registrou a prontidão com que o governo líbio engajou-se na via das reformas políticas. A União Africana manifesta sua solidariedade à Líbia e destaca a legitimidade das aspirações dos povos líbios por democracia, reformas políticas, justiça, paz e segurança, além de desenvolvimento econômico e social.” 

O espectro da desintegração

O paradoxo, se se aceita o princípio da “opinião regional”, está em que, hoje, a opinião da União Africana tornou-se, pode-se dizer, mais importante e mais decisiva, de fato, do que a opinião da Liga Árabe. A Líbia é tão africana quanto árabe – se não for mais africana, de fato. A narrativa dos eventos na líbia pelo molde do “despertar árabe” oculta as reverberações e ondas pós-choque que o que quer que aconteça na Líbia terá na África profunda. Como disse recentemente importante intelectual russo, Yevgeny Satanovsky, especialista em questões da Região:

“[Os tumultos] não ficarão limitados ao Oriente Médio e Norte da África (...) Toda a região passará pelo que a Europa passou em 1914-18. Esses processos são demorados (...) Na Europa, os tiros começaram em 1914 e não pararam antes de 1945 (...). Não vimos ainda o que acontecerá nas outras monarquias do Golfo. Não vimos ainda os limites da agitação que tomou conta do Norte da África e do Oriente Médio. 

Pode ainda acontecer na Argélia o que já está acontecendo na Líbia; no Marrocos também. Em janeiro, vimos o Sudão ser pacificamente dividido, mas os separatistas não foram extintos. Ex-colônias, que foram aproximadas e ligadas no passado em conglomerados artificiais por ingleses e franceses, jamais formaram estados integrados. Por isso, a desintegração ainda é provável na Nigéria, no Quênia e em outros países africanos.”

Abdullah bin Abdul-Aziz da Arábia Saudita, Hamad ibn Isa Al Khalifa do Bahrain, Qaboos Bin Al Said de Omã, Abdullah II da Jordânia – todos ditadores, autocratas, não podem ser saudados como se fossem alguma espécie de apoio na luta dos líbios por democracia. O Foreign Office britânico age por oportunismo, ao dizer que a declaração da Liga Árabe “é muito significativa e garante importante apoio regional” à ideia de implantar-se uma zona aérea de exclusão na Líbia. 

Os governos dos países do Conselho de Cooperação do Golfo balançam sobre o abismo, eles próprios ansiando que a OTAN venha em socorro deles. Cada ditador mantém a própria fortuna pessoal bem guardada em bancos ocidentais e esse cordão umbilical não se rompe facilmente. 

Memórias sufocadas

Mas, por que os estados africanos são diferentes? Primeiro, quando ouvem Cameron ou Nikolas Sarkozy da França ou Anders Fogh Rasmussen secretário-geral da OTAN falarem de intervenção militar no norte da África, os africanos ouvem soar, simultaneamente, os sinos de uma consciência coletiva – as memórias sufocadas da dominação imperial, os crimes horrendos que britânicos, franceses e holandeses perpetraram contra africanos. Sabem o quanto será difícil conseguir arrancar a OTAN, depois, da África. (No sábado, o presidente Hamid Karzai do Afeganistão disse: “Gostaria de solicitar à OTAN e aos EUA, humilde e honradamente, sem qualquer arrogância, que suspendam todas as operações em nossa terra. Somos povo muito tolerante. Mas, agora, nossa tolerância está no fim.”) 

Os africanos sabem que a OTAN eventualmente se esgueirará na direção do coração do rico continente africano, se conseguir plantar uma cabeça de praia no norte. 

Por isso, a União Africana enfrenta hoje dilema existencial – diferente, portanto, da situação em que estão os estados-clientes do GGC ou a Jordânia – que não têm qualquer memória de lutas de libertação nacional. A única “revolta árabe” que Abdullah ou Abdullah II jamais conheceram foi a que a inteligência britânica e Lawrence da Arábia financiaram nas ruínas do Império Otomano, há um século. 

Além disso, a União Africana também sabe que a Líbia tem longa história de desunidade. Só em 1951 o rei Idris conseguiu unificar as três províncias autônomas da Tripolitania, Fezzan e Cyrenaica. No início da atual disputa, as tendências centrífugas afloraram muito rapidamente. A Líbia é uma coleção de dúzias de tribos; Muammar Gaddafi teceu uma aliança tênue de algumas delas, mas também nessa aliança as disputas continuam frequentes. Outros países africanos vivem experiência semelhante. 

Em algum momento, qualquer intervenção ocidental na Líbia terá de enfrentar as questões da “construção nacional” – com interferência nos assuntos internos, num futuro momento pós-Gaddafi. Os povos originários jamais aceitarão sem protestos esse envolvimento. No longo prazo, só as forças islâmicas têm a ganhar com essas disputas. A sempre surpreendente realidade política da Líbia é que, ali, o único fator que favorece a unidade é o Islã; só o Islã mantém unidas as tribos e províncias daquela nação frágil. 

Todos os governos africanos estão genuína e profundamente preocupados e ansiosos ante o risco de os EUA continuarem absolutamente cegos às complexidades do que se passa ali. O presidente Barack Obama já poderia conhecê-los melhor. Tivesse se dedicado a isso, o presidente Obama saberia, de início, que em nenhum caso a União Africana aceitaria intervenção da OTAN na Líbia. 

Os africanos seriam os “parceiros” legítimos, se se tratasse de construir qualquer democracia na África, nunca os reis playboys, os xeques ou sultões playboys, os ditadores-playboys dos desertos árabes e africanos branqueados à força. 

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