quarta-feira, 6 de julho de 2011

Pepe Escobar: A paranoia da Casa de Saud

Iranofobia
Pepe Escobar
6/7/2011, Pepe Escobar, Asia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Aconteceu recentemente, na base da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) em Molesworth, Reino Unido, um encontro do qual não se falou. Frente aos britânicos, lá esteve ninguém menos que o príncipe Turki al-Faisal, ex-diretor geral do temido Mukhabarat (centro dos serviços de inteligência) da Arábia Saudita, o mesmo príncipe Turki que foi íntimo amigo do falecido Osama bin Laden, da al-Qaeda. 

O príncipe Turki lá esteve para explicar o modo como a Casa de Saud vê a grande revolta árabe de 2011. Para irmos logo ao ponto, Turki disse aos britânicos – e aos norte-americanos – que esqueçam, de vez, suas ridículas ideias sobre “democracia”. Nada, ali, tem a ver com democracia alguma. É tudo conspiração dos iranianos. 

As tropas da Arábia Saudita mandadas para o Bahrain e o Iêmen, e os mercenários wahhabistas mandados para a Líbia e a Síria, foram, apenas, armas necessárias para o inadiável combate ideológico – ajudaram também a tornar mais brutal a repressão, ok – contra os xiitas iranianos, que lutam por ampliar sua influência em todo o mundo árabe. 

A cobertura desse bolo é a transformação, que está em curso, do Conselho de Cooperação do Golfo – o “Clube Contrarrevolucionário do Golfo” – , em uma aliança de monarquias sunitas (Arábia Saudita, Qatar, Omã, Bahrain, Kuwait e os Emirados Árabes Unidos), às quais se incorporarão a Jordânia e o Marrocos.

A Casa de Saud é a indispensável proverbial aliada de Washington/Londres, unidas todas num “relacionamento diferenciado”, com os petrodólares ($300 bilhões em lucros em 2011, só possíveis porque a Casa de Saud é dona de 12% da produção global de petróleo) comprando quem encontrem pela frente, do Egito à Líbia e à Palestina, enquanto redes árabes ligadas à al-Qaeda vão alegremente tomando conta dos levantes ‘rebeldes’ na Líbia e na Síria. 

Contudo – pensa consigo essa Casa da Suprema Paranoia –, o que será dela quando já não for considerada aliada indispensável, proverbial, diferenciada e tal? E se Washington/Londres convencerem-se de que um Oriente Médio mais aceitável bem poderia tomar por “modelo” a Turquia e a Fraternidade Muçulmana? 

No front crucial da energia, a Casa de Saud percebeu, claro, que os EUA preferirão concentrar suas necessidades futuras de energia no gás – não no petróleo. E, isso, quando as reservas sauditas começam a declinar, e a China já divide com a Arábia Saudita o trono de “principal parceiro comercial” (aí está uma das razões chaves pelas quais a China não vetou a Resolução 1973 sobre a invasão da Líbia: Pequim não quis antagonizar Riad). 

Não há dúvidas de que Washington/Londres também se assustaram e viram aumentar seus próprios medos de um desastre regional, quando o príncipe Turki declarou, sem meias palavras, que a Arábia Saudita sairá em busca de sua própria bomba atômica, caso o Irã chegue à dele. Isso, apesar de não haver nenhuma prova, segundo relatórios da Agência Internacional de Energia Atômica, de que o Irã tenha qualquer plano de desenvolver armas nucleares. Quanto a isso, além do mais, o próprio príncipe Turki já dissera, noutra ocasião, que o único ator regional autorizado a ter armas atômicas é Israel.

O que o príncipe Turki declarou à OTAN nesse encontro “secreto” foi, na essência, que eles estão por cima no Golfo e na Península Arábica, e que, doravante nós-faremos-primeiro-o-que-decidamos-fazer, mesmo que não coincida com o que vocês-queiram-que-nós-façamos. 

Sim, seria a pista definitiva, o sinal que faltava, para que Washington se separasse, que afinal deixasse para trás esse aliado medieval, inconveniente, embora rico, que quer-porque-quer deter o fluxo da história. – Mas, não. O mais recente movimento da Casa de Saud não será interpretado desse modo. 

Trata-se da iranofobia 

A Casa de Saud usou a grande revolta árabe de 2011 para impulsionar a iranofobia no mundo árabe sunita ao nível de histeria total. A iranofobia tem sido usada há anos como instrumento de manipulação psicológica orquestrado pelos sauditas – com o objetivo de isolar o Irã no arco do norte da África ao sudoeste da Ásia. 

Ao trabalhar para apresentar o Irã à opinião pública árabe como o mal dos males, a Casa de Saud também espera encobrir o papel dos que realmente se beneficiam do golpe – as potências coloniais ocidentais que ocupam ou controlam, direta ou indiretamente, o mundo árabe. A iranofobia é, sobretudo, extremamente útil à Casa de Saud, como é útil à dinastia sunita al-Khalifa no Bahrain e aos governantes dos Emirados, para reprimirem brutal e violentamente suas próprias populações. 

No ocidente, a iranofobia tem sido interpretada erradamente como uma guerra fria entre a Arábia Saudita e o Irã. Nada disso. É ferramenta na guerra psicológica contrarrevolucionária conduzida pela Casa de Saud, que teme mortalmente as alianças regionais do Irã – com o Hezbollah no Líbano ou com o governo xiita em Bagdá –, tanto quanto temeu o apoio dos iranianos, por exemplo, à rebelião dos houthis, no norte do Iêmen em 2009. 

Há também corrente um mito, segundo o qual o rei Abdullah saudita, 86 anos, analfabeto e já com o pé na cova, teria tentado integrar os sauditas xiitas – sobretudo através do Centro Rei Abdulaziz para o Diálogo Nacional [ing. King Abdulaziz Center for National Dialogue]. Não é possível entender a Arábia Saudita, sem examinar o preconceito histórico contra os xiitas. Os livros escolares sauditas tratam os xiitas como infiéis não muçulmanos ou, pior – como demônios “politeístas”. 

O cerne da questão é que a Casa de Saud é ligada por laços de consanguinidade ao establishment clerical dos sunitas wahhabistas. Enquanto a monarquia seguir sua própria interpretação medieval da lei da sharia, o rei continuará a ser incensado como legítimo “guardião das duas mesquitas sagradas”. 

Assim, a iranofobia – como tem sido manipulada sobretudo depois da Praça Tahrir no Egito – só serve para promover o medievalismo wahhabista e para humilhar e calar os xiitas, dentro e fora do reino. Daí a inabalável crença, na Arábia Saudita, de que o Irã teria arrastado a ampla maioria da população do Bahrain a clamar, nas ruas, por democracia. 

Não se deve subestimar o poder da contrarrevolução saudita. Se é verdade que a Casa de Saud tremeu de medo quando Hosni Mubarak do Egito foi “abandonado” pelo governo de Barack Obama, também é verdade que se mantiveram suficientemente espertos para subornar Tantawi e a junta que hoje governam o Egito, com quase 4 bilhões de dólares. A Casa de Saud está hoje furiosa ante a possibilidade de Mubarak enfrentar julgamento. 

Asia Times Online tem noticiado extensivamente a invasão saudita e a repressão no Bahrain. No Iêmen, jatos sauditas “made-in-the-USA” fazem um simulacro do AfPak de Obama, bombardeando multidões de xiitas além da fronteira. Mas, agora, a Casa de Saud anseia por “estabilidade” – quer dizer: quer o poder, na nova era pós-Ali Abdallah Saleh. 

Na Síria, é mais complicado. Oficialmente, a Casa de Saud mantém-se calada – enquanto a mídia saudita só faz demonizar o presidente Bashar al-Assad; e redes financiadas pelos sauditas, islâmicos subservientes e até jihadistas, operam nas sombras. 

Bem-vindos ao fim da história 

Capangas da Casa de Saud, em toda a mídia controlada pelos sauditas, encarregam-se de só falar da política “de não interferência” do reino. Não há maior absurdo. Há décadas, a Casa de Saud intervém em milhares de movimentos de esquerda em todo o planeta e já arrastou vários países à guerra civil, do Líbano ao Iêmen e à Somália – ou servindo aos interesses de Washington ou, na maioria das vezes, aos interesses do clericato wahhabista saudita medieval. 

Recentemente, o rei Abdullah proibiu, simplesmente, qualquer tipo de crítica ao Grande Mufti e a outros altos clérigos. Quem se oponha, mesmo que sem alarde, à Casa, é preso: desde o 11/9, houve mais de 11.000 prisões; mais de 5.000 mil pessoas continuam presas. Ninguém sabe quem são nem o que é feito delas. Transparência zero. E não há sistema legal sequer semelhante a sistemas legais internacionalmente aceitos. 

Decapitações, às centenas: ano passado, foram 121. Não há governo eleito nem imprensa livre. Domingo passado, duas mulheres foram presas em Riad porque exigiam julgamento justo para parentes seus, segundo a Anistia Internacional. No mesmo dia, pelo menos 20 pessoas – entre as quais 16 mulheres e crianças – foram presas à frente do temido Ministério do Interior, porque pediam a libertação de presos políticos, segundo a Associação Saudita de Direitos Humanos e Políticos [ing. Saudi Civil and Political Rights Association]. 

A iranofobia é apenas uma faceta de Casa que vive sob medo perpétuo – e paranoia. Querem ver o fim da história? Basta tomar um avião para Riad.

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