15/4/2014, [*] Pepe Escobar, Asia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Vila de Bandol - vista noturna |
Pé na estrada
na Provence – Para citar Lênin, o que fazer? Voltar a Bruxelas e Berlim? Um
encontro íntimo com o triste norte do OTANistão, consumido pela paranoia de sua
obsessão anti-Rússia e escravizado pelo infinitamente expansível euro-embuste
do Pentágono? Quem sabe uma excursão ao Erdogastão bêbado de guerra-à-Síria?
Nem se
discute. A joie de vivre resolveu tudo; assim, esse Olhar Errante
pendurou-se em Nick, Olhar-Errante-Filho, na Catalunha e, armados com La
Piccolina – a caravan Peugeot 1980, motor Citroën, de Nick − metemos o
pé na estrada pela Provence, mansão de restauração, no sul do OTANistão. Em vez
de metermos o pé na jaca do crystal meth, foi pé na jaca non-stop
no primor dos líquidos de infieis e gastronomia provençal de primeira.
Chamem de
investigação subterrânea, sem saudade-de-casa, sem fossa, sobre o mal-estar
econômico das nações do Club Med; a pauperização da classe média europeia; o
avanço da extrema direita; e a possibilidade iminente de uma OTAN econômica.
Tudo isso emoldurado por ótimo, super ótimo, um tempo com a família. E, super
subversivo, com laptop e celular desligados.
Tivemos a
sorte de estar lá na semana da inauguração da Fundação Van
Gogh em Arles – com um notável
portal e a assinatura de Van Gogh em tamanho gigante; o jardim suspenso de
espelhos coloridos; e exibição estupenda da evolução cromática do pintor
durante os frenéticos 15 meses que viveu em Arles. Alguns minutos de
contemplação frente à La Maison Jaune
[Casa Amarela] (1888) − imagem a seguir − é intimar a imortalidade, revelação do
que é, isso sim, ser excepcional.
La Maison Jaune (Vincent van Gogh) |
Iluminações
estéticas, por todos os lados – do castelo de Baux ao pôr-do-sol com um Perrier mint num terraço sobre o campo, em torno
da colina de Gordes; de uma noite estrelada ao ar livre no Colorado Provençal (estranhamente, atravessado por um
helicóptero militar voando baixo, estilo avançada-em-Bagdá), a discutir os
méritos do “Chèvre de Banon” – aquele
queijo epicúreo, queijo “de exceção”, embrulhado em folhas de castanheira.
E cruzando
daí para o grande canyon de Verdon – o mais norte-americano dos canyons
europeus, que se ataca por várias faces, tanto pelo norte como pelo sul,
incluindo uma trilha que acompanha a velha trilha romana e encontro com as
silhuetas caóticas, fantasmagóricas de Les Cadieres (“cadeiras”,
em provençal) – resposta de Verdon às
Torres Gêmeas. Uma montagem peculiar de imagem de Osama e al-Zawahiri fazendo
trilha pelo Hindu Kush.
Quando
descíamos do Col de Leques, o proprietário de um café de montanha contou-nos
que acabava de abrir para a temporada, que vai até meados de setembro. Mas
aqui, no começo de abril, o Verdon estava banhado em silenciosa glória, exceto
um ou outro ciclista, ruidoso, incômodo.
Então – como
em Pierrot Le Fou de Godard – mergulho para o Mediterrâneo. Primeira
parada, Toulon, controlada pelo Front
National, tão limpa, tão organizada, tão assustadiça ante, até, skatistas visitantes, não imigrantes, já
exibindo um navio cargueiro monstro da OTAN em plena ostentação.
É impossível
comer um prato de moules [mexilhões] no porto, no meio da tarde; mas no
restaurante chinês Ah-Ha há canyons de Verdon de comida, 24 horas por
dia, e serve para mostrar mais uma vez que a fúria empreendedorista da Ásia já
deixou a Europa a comer poeira.
Bouillabaisse (sopa de frutos do mar, típica da região de Marselha) |
Corta para um
banquete platônico no venerando Auberge Du Port Bandol – bouillabaisse orgíaca, com o melhor
vinho da casa, perfeitamente comparável a uma combinação de Bastide de la
Ciselette com Domaine de Terrebrune. Nenhum desses deslumbrantes líquidos de
infiel, por falar nisso, foram sequer tocados pela globalização.
Não resta um
milímetro quadrado de solo não construído na costa em torno de Marselha – é parte
de um bem conhecido dossiê, a destruição ambiental do sul do OTANistão. Mesmo
assim, demos jeito de encontrar um canto relativamente reservado para o
apropriado mood à Rimbaud (la mer, la mer, toujours recommencée) [o
mood pode ser de
Rimbaud, mas o verso é de Paul Valéry (em “Cimetière Marin”)
NTs].
Foi quando
chegou o temido momento e ergueu sua cabeça feia – em Sanary-sur-Mer,
onde Huxley escreveu Admirável Mondo Novo em sua Villa Huxley,
e Thomas Mann andava pelo Chemin de la Colline. Brecht de fato bem pode ter
cantado canções anti-Hitler de uma mesa no Le Nautique; então, depois de
debater com Nick os méritos comparativos dos veleiros
Beneteau, decidi, finalmente
parar com tanto distanciamento brechtiano,
caminhei até a banca mais próxima, comprei os jornais, pedi um café com leite e
liguei o celular.
Bar-tabac Le Nautique em Sanary-sur-Mer |
Que NADA me
impressionou muito é dizer pouco. Uma semana fora da grade, e a mesma sarabanda
de paranoia, pivoteamentos os mais frenéticos e excepcionalismo monocromático.
Até que, lá estava ela, como um pérola no fundo cor de turquesa do
Mediterrâneo, soterrada na info-avalanche: a notícia, a definitiva notícia, a
notícia da semana, talvez do ano, talvez da década.
O presidente
da Gazprom, Alexey Miller, encontrou-se com o presidente da China National Petroleum Corporation, Zhou
Jiping em Pequim, na quarta-feira (9/4/2014). Estão no processo para assinar “o
mais rapidamente possível” o megacontrato, para 30 anos, para fornecer à China
gás natural siberiano. Provavelmente será assinado dia 20 de maio, quando Putin
estará em Pequim.
Isso, sim, é
material genuíno. O Oleogasodutostão encontra a parceria estratégica
Rússia-China, solidificada nos BRICS e na Organização de Cooperação de Xangai,
com a arrepiante possibilidade de o negócio preço/pagamento ser feito por fora
dos petrodólares, a chamada “opção termonuclear”. Comparada a isso, a Ucrânia é
terceiro palco.
Bem-vindos ao
Ratódromo de Bruxelas
Foi na
estrada, do Mediterrâneo de volta a Arles, via Aix-en-Provence: a coisa me
pegou, feito um drone de Obama. Toda essa viagem, afinal, cuidou só do
sublime queijo de leite de cabra envolto em folhas de castanheira em Banon,
daquelas garrafas cor rosa-pétala, de vinho; em Bandol, produtores artesãos e
gente da montanha que só falam de seus medos, pelos mercados das pequenas
cidades e pequenos, despretensiosos chateaux. Tudo isso é, sempre, a
OTAN econômica.
Queijo de leite de cabra de Banon aberto da embalagem de folhas de castanheira |
O Tratado
Trans-Atlântico de Livre Comércio é prioridade top do governo Obama. As
tarifas já são quase desprezíveis para muitos produtos, entre os EUA e a União
Europeia. Portanto, se trata, essencialmente, de o Grande Agronegócio dos EUA
passar a mão nos mercados continentais (numa invasão de produtos geneticamente
modificados), e de os gigantes da empresa-imprensa dos EUA, idem. Podem chamar
de um pequeno adendo à Parceria Trans-Pacífico [orig. Trans-Pacific
Partnership (TPP)] – o qual, para dizer numa linha, significa os EUA
ocuparem a super protegida economia japonesa.
O sul do OTANistão,
sim, oferece rápidas imagens de um paraíso europeu pós-histórico – um jardim de
rosas Kantiano protegido contra o imundo mundo Hobbesiano, pelo Império
“benigno” (a nova expressão a ser repetida e repetida, cunhada – e por quem
mais seria? – por neoconservadores da cepa de Robert Kagan). Mas a principal
emoção que envolve o sul do OTANistão, como vi desde o início de 2014 sucessivamente
na Itália, Espanha e França, é o medo. Medo do Outro – do pobre que chega,
negro ou mulato; medo do desemprego perene; medo do fim dos privilégios da
classe média até recentemente tidos por garantidos; e medo da OTAN econômica –
porque praticamente nenhum europeu médio confia naquelas hordas de burocratas
de Bruxelas.
Já são agora
nove meses que a Comissão Europeia negocia uma chamada Parceria de Comércio e
Investimento [orig. Trade and Investment Partnership]. A “transparência”
que cerca o que será o maior acordo de livre comércio da história do mundo,
envolvendo mais de 800 milhões de consumidores, cobre King Jong-eun da Coreia
do Norte de vergonha.
Todo aquele
blá-blá-blá secreto dá-se em torno de eufemísticos “obstáculos não tarifários”
– uma rede de normas éticas, ambientais, jurídicas e sanitárias − que protegem
os consumidores, não as gigantes multinacionais. O que esses monstros querem, por
sua vez, é coisa lucrativa “livre-para-todos” – que implica, só para dar um
exemplo, o uso indiscriminado da ractopamina,
energético para porcos, já proibido até na Rússia e na China.
Ractopamina, produto proibido por provocar doenças nos sistemas cardiovasculares, músculo-esqueléticos, reprodutivos e endócrinos em seres humanos |
Assim sendo,
por que o governo Obama, de repente, parece tão apaixonado por um Acordo de Livre
Comércio com a Europa? Por que o Big Business dos EUA finalmente
descobriu que o Santo Graal daquele pivoteamento econômico para a China nada
tem, nem de santo, nem de Graal, bem feitas as contas. A coisa será sempre
conduzida, lá, por parâmetros chineses – com as principais marcas chinesas se
qualificando, progressivamente, para controlar a maior parte do mercado chinês.
Então... veio
o Plano B: um mercado transatlântico que submeta 40% do comércio internacional
às mesmas normas-amigas-do-Big-Business.
Obama só faz repetir e repetir que o acordo criará “milhões de empregos norte-americanos
bem remunerados”. Muito discutível, para dizer o mínimo. Mas que ninguém se
engane quanto ao movimento dos EUA; Obama está pessoalmente envolvido.
Quanto aos
europeus, parecem, mais, ratos tentando salvar-se pelos buracos de uma sala
secreta de jogatina. Com a Agência de Segurança Nacional dos EUA a monitorar
todos os telefones e telefonemas em Bruxelas, os europeus médios absolutamente
não têm nem ideia de com que porrete serão espancados. O debate público sobre o
acordo é verboten [alemão no original; “proibido”] para todas as
finalidades práticas, para a sociedade civil europeia.
Os
negociadores da Comissão Europeia só falam com lobbyistas e presidentes
de multinacionais. Em caso de acontecer “volatilidade de preços” aí, pelo
caminho, os fazendeiros europeus serão os maiores perdedores, não os
norte-americanos, agora protegidos por uma nova “Farm Bill” [aprox. “Lei dos
produtores agrícolas”].
Não
surpreende que a mensagem direta e indireta que recebi de praticamente todos,
no interior da Provence, seja “Bruxelas está nos vendendo em liquidação”. No
final, o que desaparecerá, morrendo morte de mil talhos, é a agricultura de
alta qualidade, procissões de pequenos produtores artesanais, os únicos que
conhecem um savoir-faire acumulado ao longo de muitos séculos.
Assim sendo,
viva os hormônios, viva os antibióticos, viva o cloro e os organismos
geneticamente modificados (transgênicos). E cortem a cabeça dos pequenos
produtores!
A OTAN a
lançar ameaças contra a Rússia é tática muito conveniente, suja, diversionista.
Deixando a Provence, com La Piccolina carregando sua carga preciosa de produtos
artesanais sublimes, entendo perfeitamente a tamanha Van Goghiana ansiedade com que os locais veem chegar a futura OTAN
econômica.
[*] Pepe Escobar (1954) é jornalista,
brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em
inglês. Mantém coluna (The Roving Eye) no Asia Times Online; é também analista de política do blog Tom Dispatch e correspondente/ articulista das
redes Russia Today, The Real News Network Televison e Al-Jazeera. Seus artigos podem ser lidos, traduzidos para o português
pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu e João Aroldo, no blog redecastorphoto.
Livros:
− Globalistan:
How the Globalized World is Dissolving into Liquid War, Nimble Books, 2007.
− Red
Zone Blues: A Snapshot of Baghdad During the Surge, Nimble Books, 2007.
− Obama
Does Globalistan, Nimble Books, 2009.
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