Sobre Obama, Erdoğan e os rebeldes sírios
6/4/2014, [*] Seymour M. Hersh,
London Review of Books (online)
Seymour M. Hersh on Obama, Erdoğan and the Syrian
rebels
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Síria e as "linhas vermelhas" de Obama (por Steve Bell/2013) |
Em 2011,
Barack Obama comandou uma intervenção de aliados contra a Líbia, sem consultar
o Congresso dos EUA. Em agosto passado, depois de um ataque com gás sarín em
Ghouta, subúrbio de Damasco, estava pronto para ordenar ataque aéreo de
norte-americanos e aliados, dessa vez para castigar o governo da Síria por,
supostamente, ter infringido uma “linha vermelha” que Obama demarcara em 2012
sobre uso de armas químicas.
Então,
faltando menos de dois dias para o planejado ataque, Obama anunciou que pediria
a aprovação do Congresso para a intervenção. O ataque foi adiado para que o
Congresso realizasse audiências e, na sequência, foi cancelado, quando Obama
aceitou a oferta, por Assad, de entregar seu arsenal químico, em negociação
intermediada pela Rússia.
Por que
Obama adiou e depois cancelou o ataque à Síria, se não teve cuidado algum no
momento de atacar a Líbia?
A resposta
está na disputa dentro do governo Obama, entre os que queriam fazer valer a
“linha vermelha” e os líderes militares que entendiam que ir à guerra seria ao
mesmo tempo injustificável e potencialmente desastroso.
A mudança,
em Obama, começou em Porton Down, o laboratório que a Defesa britânica mantém
em Wiltshire, Inglaterra. A inteligência britânica obtivera uma amostra do gás
sarín usado no ataque do dia 21, e análises demonstraram que o gás não era o
mesmo que se sabia que existia no arsenal químico sírio. A mensagem de que os
sírios não mentiam e que o caso contra o exército de Assad logo seria
desmontado, chegou rapidamente aos chefes do Estado-Maior dos EUA. O relato
britânico fez aumentar as dúvidas dentro do Pentágono; os chefes militares já
preparavam para avisar Obama de que seus planos para atacar com mísseis e
bombas a infraestrutura síria levaria a guerra muito mais ampla no Oriente
Médio. Consequência da notícia recém-chegada, os militares norte-americanos
apressaram-se a levar ao presidente mais aquele alerta de cuidado, o qual, na
visão dos militares, levou o presidente a cancelar o ataque.
Primeiro-Ministro da Turquia Recep Tayyp Recep Erdoğan (por Medi Belortaja) |
Há muitos
meses os altos comandantes militares e a comunidade de inteligência preocupa-se
com o papel da guerra na convivência com os vizinhos da Síria, especialmente o
papel da Turquia. Sabia-se que o Primeiro-Ministro Recep Erdoğan estava
apoiando a Frente al-Nusra, grupo jihadista incorporado à oposição rebelde, e a
outros grupos rebeldes islamistas.
Sabíamos que havia alguns, no governo turco, disse-me
um ex-alto funcionário da inteligência dos EUA, com acesso à inteligência
atual, que acreditavam que poderiam
enredar Assad, provocando um ataque com gás sarín dentro da Síria – o que
forçaria Obama a fazer valer a ameaça da ‘linha vermelha.
Os altos
chefes militares também sabiam que o que o governo Obama andava dizendo, que só
o exército sírio tinha acesso ao sarín, era falso. As comunidades de
inteligência norte-americana e britânica já sabiam, desde a primavera de 2013,
que algumas unidades rebeldes na Síria estavam desenvolvendo armas químicas.
Dia 20/6, analistas da Agência de Inteligência da Defesa dos EUA [orig.DIA]
distribuíram documento altamente secreto de cinco páginas, dos “pontos de
conversa” [(orig. talking points):
são os itens que podem ser falados à imprensa e discutidos em público e os que
não podem], para atualizar o vice-diretor da Agência DIA, David Shedd,
no qual se lê que a Frente al-Nusra mantinha célula de produção de gás sarín; o
programa, dizia o documento, era:
(...) o plano mais avançado para uso de sarín
desde o esforço da al-Qaeda antes de 11/9. (Segundo um consultor do
Departamento de Defesa, a inteligência dos EUA sabia, há muito tempo, que a
al-Qaeda estava trabalhando em testes com armas químicas, e tem um vídeo de um
de seus testes, com cachorros).
O documento
da Inteligência da Defesa prosseguia:
Antes, o foco da comunidade de inteligência
se mantivera quase completamente fixo sobre as armas químicas sírias; agora já
sabemos dos esforços da Frente al-Nusra para produzir suas próprias armas
químicas (...) A relativa
liberdade de operação da Frente al-Nusra dentro da Síria nos leva a estimar
que, no futuro, será difícil conter as ambições desse grupo.
O documento
reunia informação secreta de várias agências:
Agentes facilitadores baseados na Turquia e
na Arábia Saudita – dizia o documento – tentaram
obter os precursores do sarín em grande quantidade, dezenas de quilos,
antecipando o esforço para produção em grande escala na Síria.
(Perguntado
sobre o documento da Inteligência da Defesa, porta-voz do diretor da Agência Nacional
de Inteligência disse: Tal documento
jamais foi solicitado ou entregue pela comunidade de analistas de inteligência).
Em maio
passado, mais de dez membros da Frente al-Nusra foram presos no sul da Turquia,
com o que a polícia local informou a jornalistas que seriam dois quilos de
sarín. Em documento de acusação de 130 páginas, o grupo foi acusado de tentar
comprar pavios e detonadores para construção de morteiros e produtos químicos
precursores do gás sarín. Cinco dos detidos foram libertados logo depois. Os
demais, inclusive o líder, Haytham Qassab, para quem o procurador pediu
sentença de 25 anos de prisão, foram postos em liberdade condicional à espera
de julgamento. Ao mesmo tempo, a imprensa turca fervia com especulações sobre
se o governo Erdoğan estaria ocultando a extensão de seu envolvimento com os
rebeldes. Numa conferência de imprensa no verão passado, Aydin Sezgin,
embaixador da Turquia em Moscou, não deu importância às prisões e disse aos
jornalistas que o suposto gás sarín não passaria de “anticongelante”.
Terroristas da Frente al-Nusra na Síria |
Segundo o
documento da Inteligência da Defesa, as prisões seriam sinal de que a Frente
al-Nusra estava expandindo seu acesso a armas químicas. Dizia que Qassab se
“autoidentificara” como membro da Frente al-Nusra e que era diretamente
conectado a Abd-al-Ghani, “o emir da Frente al-Nusra para produção de
equipamento militar”. Qassab e seu associado Khalid Ousta trabalharam com Halit
Unalkaya, empregado de uma empresa turca, Zirve Export, que ofereceu “cotação
para preços de grandes quantidades de precursores de sarín”. O plano de
Abd-al-Ghani era que dois associados aperfeiçoassem a produção de sarín e, na
sequência, fossem para a Síria para treinar outros e iniciar a produção em
larga escala num laboratório não identificado, na Síria”. O documento da
Inteligência da Defesa dizia que um de seus operadores comprara um precursor no
“mercado químico de Bagdá”, o qual “dera servira de base a pelo menos sete
esforços para produzir armas químicas desde 2004”.
Uma série
de ataques com armas químicas em março e abril de 2013 foram investigados nos
poucos meses seguintes, por uma comissão especial da ONU enviada à Síria. Uma
pessoa com conhecimento bem próximo da atividade da ONU na Síria disse-me que
havia provas que ligavam a oposição síria ao primeiro ataque com gás, dia 19/3,
em Khan Al-Assal, vila próxima de Aleppo. No relatório final, em dezembro, a
missão disse que pelo menos 19 civis e um soldado sírio estavam entre as
vítimas fatais, além de muitos feridos. A Comissão não tinha a atribuição de
determinar a responsabilidade pelo ataque, mas a mesma pessoa, muito bem
informada sobre a missão da ONU, disse:
Os investigadores da ONU entrevistaram o povo
que estava lá, inclusive os médicos que atenderam as vítimas. Era perfeitamente
claro que os rebeldes lançaram o gás. Não veio a público, porque ninguém quis
saber.
Nos meses
antes do início dos ataques, um ex alto funcionário do Departamento da Defesa
contou-me que a Agência de Inteligência da Defesa estava fazendo circular um
relatório secreto diário, conhecido como SYRUP [2] com toda a inteligência
relacionada ao conflito na Síria, incluindo material sobre armas químicas. Mas
na primavera, a distribuição da parte do relatório sobre armas químicas foi
suspensa, por ordens de Denis McDonough, Chefe de Gabinete da Casa Branca.
“Havia alguma coisa ali que fez McDonough entrar em surto”, disse o
ex-funcionário do Departamento da Defesa. “Num dia, era grande coisa. De
repente, depois dos ataques com sarín em março e abril” – ele estalou os dedos
– “sumiu”. A decisão de restringir a distribuição de informações foi tomada
quando o Estado-Maior dos comandantes militares ordenou intensa planificação de
urgência para uma possível invasão por terra contra a Síria, cujo principal
objetivo seria eliminar armas químicas.
Meu
informante, o ex alto oficial da inteligência, disse que muitos, no establishment
de segurança nacional dos EUA há muito tempo estavam tendo problemas com
interpretar a tal “linha vermelha” do presidente:
Os
comandantes militares perguntaram à Casa Branca “o que significa essa linha vermelha?”, “Como se traduz em termos de ordens para os militares? Coturnos em solo? Ataque massivo? Ataque
limitado?”. A inteligência militar recebeu ordens de estudar um modo de
cumprir a ameaça. Nunca obtiveram qualquer resposta sobre o que o presidente
estaria pensando.
Obama e a "linha vermelha" na Síria (por A.F.Branco) |
Logo depois
do ataque de 21 de agosto, Obama ordenou que o Pentágono listasse os alvos a
serem bombardeados. No início do processo, disse meu informante, “a Casa Branca
rejeitou 35 alvos propostos pelos comandantes militares, por serem insuficientemente dolorosos para o
regime de Assad”. Esses primeiros alvos só incluíam alvos militares e nada
próximo da infraestrutura civil. Sob pressão da Casa Branca, o plano de ataque
dos EUA evoluiu para um “ataque monstro”: dois bombardeiros B-52 e tripulações
foram deslocadas para bases aéreas próximas à Síria, além de submarinos e
outras naves da Marinha equipadas com mísseis Tomahawk.
A cada dia, a lista ficava mais longa – disse-me
meu informante – Os estrategistas do
Pentágono disseram “não se pode usar só Tomahawks para atacar os silos de
mísseis na Síria, porque o equipamento está protegido muito fundo, no subsolo.
Por isso foram designados para a missão os dois B-52, com bombas de uma
tonelada. E precisaremos de equipes de resgate para pilotos derrubados, e de drones para alvos selecionados. Virou
operação monstro”.
As novas
listas de alvos estavam pensadas para “erradicar qualquer capacidade militar
que Assad tenha”, disse-me meu informante, o ex funcionário da Inteligência. Os
principais alvos envolviam redes elétricas, depósitos de petróleo e gás, todos
os depósitos conhecidos de armas e logística, todos os comandos e controles de
instalações e todos os prédios conhecidos da estrutura militar e de
inteligência.
Grã-Bretanha
e França teriam ambas de participar. Dia 29 de agosto, dia em que o Parlamento
britânico rejeitou o pedido de Cameron para que a Grã-Bretanha se integrasse ao
ataque, o jornal The Guardian noticiou
que Cameron já ordenara que seis jatos de combate RAF Typhoon fossem deslocados
para Chipre e oferecera um submarino capaz de disparar mísseis Tomahawk. A
Força Aérea francesa – que teve papel crucial em 2011 no ataque à Síria – estava
também profundamente comprometida, segundo matéria publicada no Le Nouvel
Observateur; François Hollande ordenara que vários jatos Rafale se unissem
à força de ataque norte-americana. Seus alvos, segundo o noticiário, estavam no
oeste da Síria.
Nos últimos
dias de agosto, o presidente dera aos comandantes militares uma data final para
o início do ataque.
A hora H estava marcada para algum momento
antes da 2ª-feira [2/9/2013]
de manhã, o ataque massivo para
neutralizar Assad – continua meu informante.
Por isso,
foi surpresa para muitos quando, em discurso no Jardim das Rosas na Casa
Branca, dia 31/8, Obama disse que o ataque estava suspenso, e que ele pedira
autorização do Congresso, a ser votada.
Naquela
altura, a premissa de Obama – de que só o exército sírio tinha capacidade para
usar sarín – já estava em farrapos. Em poucos dias depois do ataque de 21 de
agosto, disse-me meu informante, agentes da inteligência militar russa já
haviam recolhido amostras do agente químico, em Ghouta. Analisaram tudo e
passaram as amostras para a inteligência militar britânica. Esse é o material
recebido em Porton Down, Inglaterra. (Um porta-voz de Porton Down disse:
“Muitas das amostras analisadas na Grã-Bretanha deram resultado positivo para o
agente de efeito neurológico, sarín. O MI6 disse que não comenta assuntos de
inteligência”).
O mesmo ex
funcionário da inteligência dos EUA disse que o russo que entregou as amostras
ao Reino Unido, era “fonte segura – alguém com acesso, conhecimento e currículo
de confiabilidade”. Depois dos primeiros usos noticiados de armas químicas na
Síria, ano passado, agências de inteligência norte-americanas e aliadas
(...) fizeram um esforço para encontrar a resposta
sobre o que fora usado, se algo tivesse sido usado – e a origem do material
– disse-me meu informante. – Usamos a
troca de dados como parte da Convenção sobre Armas Químicas.
A linha básica sobre a qual trabalhava a DIA consistia em conhecermos a
composição de cada linhagem de armas químicas fabricadas pelos soviéticos. Mas
não sabíamos que linhagens havia então nos arsenais do governo Assad. Poucos
dias depois do incidente em Damasco, pedimos a uma fonte no governo sírio que
fornecesse uma lista das armas químicas realmente existentes no arsenal sírio.
Por isso conseguimos confirmar tão rapidamente que o sarín usado em Damasco não
era do governo sírio.
Na
primavera anterior o processo não dera muito certo, disse-me meu informante,
porque os estudos da inteligência ocidental “eram inconclusivos para o tipo de
gás. Ninguém, então, falou em “sarín”. Discutiu-se muito sobre isso, mas dado
que não se podia concluir que gás fora usado, não se podia dizer que Assad
tivesse cruzado a tal “linha vermelha” do presidente”. Em 21/8/2013, continuou
meu informante, “a oposição síria com certeza já sabia disso e anunciou, antes
de qualquer análise, que teria sido usado “sarín” do exército sírio. E a
imprensa-empresa e a Casa Branca saltaram para apanhar aquela chance: se era
sarín, então... “Foi Assad”.
A equipe de
Defesa da Grã-Bretanha que divulgou os resultados das análises feitas em Porton
Down para os comandantes militares estava, simultaneamente, mandando um
“recado”, disse meu informante: “Nós estamos sendo enganados nessa história”.
(Isso explica uma mensagem tensa, que um alto funcionário da CIA distribuiu no
final de agosto: “Não é coisa do atual regime [sírio]. Grã-Bretanha e EUA
sabem”.) Mas naquele momento, faltavam poucos dias para o ataque, e aviões,
navios e submarinos dos EUA, Grã-Bretanha e França já estavam em prontidão.
Martin Dempsey por Webb Murray |
O
comandante responsável geral pelo planejamento e execução do ataque à Síria era
o general Martin Dempsey, Comandante do Estado-Maior das forças conjuntas.
Desde o início da crise, disse meu
informante, os Comandantes do Estado-Maior
mantiveram sérias dúvidas quanto ao argumento do governo Obama de que havia
fatos a confirmar sua certeza de que Assad era culpado. Pressionaram a Agência
de Inteligência da Defesa e outras agências, para que apresentassem provas mais
substanciais.
Não havia o que os convencesse de que a Síria
teria usado gás sarín, porque sabiam que Assad estava vencendo a guerra – disse
meu informante.
Dempsey
irritou muita gente no governo Obama, de tanto que repetiu, também no
Congresso, sobre o risco de um envolvimento militar dos EUA na Síria. Em abril,
depois de uma avaliação otimista sobre avanços dos rebeldes feita pelo
secretário de Estado John Kerry diante da Comissão de Assuntos Estrangeiros da
Câmara de Deputados, Dempsey disse à Comissão de Forças Armadas do Senado que
“há risco de esse conflito estar em empate”.
A ideia
inicial de Dempsey depois de 21/8/2013 era que um ataque dos EUA à Síria –
baseado na certeza de que o governo Assad fosse responsável pelo ataque com
sarín – seria completa estupidez, do ponto de vista militar, disse meu
informante. Mas depois que chegaram as informações de Porton Down, os chefes
militares viram-se obrigados a levar ao presidente uma preocupação ainda mais
grave: que o ataque que a Casa Branca tanto estava querendo, seria injustificado
e injustificável ato de agressão.
Foram os
chefes militares que levaram Obama a mudar completamente de curso. A explicação
oficial da Casa Branca para dar meia volta – a história que a imprensa-empresa
contou – foi que o presidente, em caminhada pelo Jardim das Rosas com seu chefe
de Gabinete, Denis McDonough, repentinamente, decidiu buscar aprovação para o
ataque, num Congresso ferozmente dividido, com o qual Obama vivia em conflito
já há anos.
Meu
informante contou-me que a Casa Branca deu outra explicação, diferente, aos
membros do comando civil do Pentágono: o bombardeio havia sido suspenso, porque
haveria inteligência que informava que “o Oriente Médio pegaria fogo”, se o
ataque acontecesse.
A decisão
do presidente de ir ao Congresso foi vista inicialmente pelos principais
assessores na Casa Branca − disse meu informante − como replay do
gambito de George W. Bush no outono de 2002, antes da invasão do Iraque:
Quando ficou claro que não havia armas de
destruição em massa no Iraque, o Congresso, que havia apoiado a guerra do
Iraque, e a Casa Branca, ambos, partilharam a culpa e sempre falaram de
inteligência errada. Se o atual Congresso fosse obrigado a votar para apoiar o
ataque, a Casa Branca conseguiria o que queria, e ainda mais – varreria a Síria
com ataque massivo e validaria a palavra do presidente sobre a tal “linha
vermelha”; e o presidente ainda poderia atribuir metade da culpa ao Congresso,
no caso de algum dia vir a público que o governo sírio nada tivera a ver com o
uso de gás em Goutha.
Nanci Pelosi, líder do Partido Democrata no Congresso dos EUA |
O “meia
volta, volver” colheu de surpresa até as lideranças Democratas no Congresso. Em
setembro, o Wall Street Journal noticiou que três dias antes do discurso
do Jardim das Rosas, Obama telefonara a Nancy Pelosi, líder dos Democratas na
Câmara de Deputados, “para discutir as opções”. Mais tarde, ela mesma disse a
deputados, segundo o WSJ, que não sugeriu ao presidente que pusesse o
bombardeio em votação no Congresso.
Rapidamente,
o movimento de Obama de buscar a aprovação do Congresso chegou a um beco sem
saída.
O Congresso não poderia deixar que aquilo
prosseguisse – disse meu informante. O Congresso, então, decidiu que, diferente do que fora feito quando da
autorização para guerra ao Iraque, dessa vez haveria uma série de audiências
públicas.
Nesse ponto, a Casa Branca foi tomada por uma
espécie de desespero − diz meu informante − e foi quando surgiu o Plano B. Não se fala mais de bombardear a Síria,
e Assad concordaria em assinar unilateralmente o tratado sobre guerra química e
aceitaria entregar seu arsenal químico para ser destruído sob supervisão da
ONU.
Numa
conferência de imprensa em Londres, dia 9/9/2013, Kerry ainda falava sobre intervenção:
“O risco de não agir é maior que o risco de agir”. Mas quando um repórter
perguntou-lhe se haveria algo que Assad pudesse fazer para deter o bombardeio,
Kerry disse:
Claro! Ele que entregue cada pedacinho [orig. every single bit] de seu arsenal químico à comunidade
internacional semana que vem... Mas não vai acontecer, não pode ser feito,
obviamente.
Como o New
York Times noticiou dia seguinte, o acordo negociado pelos russos que
emergiu em seguida já teria sido discutido antes entre Obama e Putin, no verão (julho)
de 2012. Mas embora os planos de ataque tivessem sido arquivados, o governo
Obama não mudou sua versão pública da justificativa para ir à guerra. “Naquele
nível, ninguém nunca erra” – disse o ex funcionário da inteligência com quem
conversei, falando dos altos funcionários da Casa Branca. “Ninguém ali jamais
declarará: Nós estávamos errados”. (O
porta-voz da Inteligência Nacional da Defesa disse: “O regime Assad, e só o
regime Assad, pode ter sido responsável pelo ataque químico que aconteceu dia
21/8/2013”).
***
Ainda
demorará para que venha à luz a extensão da cooperação entre EUA, Turquia,
Arábia Saudita e Qatar, na ajuda que deram e dão à oposição rebelde na Síria. O
governo Obama jamais admitiu publicamente o papel que teve na criação do que a
CIA chama “um caminho de rato” – um caminho clandestino, de fato, uma ampla
rodovia, que leva direto à Síria.
O caminho
de rato, autorizado no início de 2012, foi usado para infiltrar armas e
munições vindas da Líbia, pelo sul da Turquia e pela fronteira com a Síria,
para a oposição síria. Muitos dos que, no fim da trilha, na Síria, receberam as
armas eram jihadistas, alguns dos quais afiliados à al-Qaeda. (O
porta-voz da Inteligência da Defesa disse: “A ideia de que os EUA forneceram a
quem quer que fosse armas vindas da Líbia é falsa”).
Em janeiro,
a Comissão de Inteligência do Senado distribuiu documento sobre o assalto, por
uma milícia local, em setembro de 2012, ao consulado norte-americano e a uma
instalação clandestina da CIA que funcionava na mesma área, em Benghazi, e que
resultou na morte do embaixador Christopher Stevens dos EUA e três outros. A
crítica que o documento fez ao Departamento de Estado, por não ter dado
adequada segurança ao consulado; e à comunidade de inteligência, por não ter
alertado os militares sobre a presença da CIA na mesma área, recebeu manchetes
de primeira página e reacendeu animosidades em Washington, com os Republicanos acusando
Obama e Hillary Clinton de operarem na clandestinidade.
Homenagem póstuma ao Embaixador Christopher Stevens |
O documento
divulgado veio acompanhado e um anexo, que não foi divulgado, e que informa
sobre um acordo secreto, assinado no início de 2012, entre o governo Obama e o
governo Erdoğan. É o acordo que criou a linha do rato. Pelos termos desse
acordo, o dinheiro veio da Turquia, da Arábia Saudita e do Qatar; a CIA,
com apoio do MI6, ficou responsável por infiltrar na Síria armas retiradas do
arsenal de Gaddafi. Várias empresas de fachada foram criadas na Líbia, algumas
criadas como se fossem entidades australianas. Soldados norte-americanos
aposentados, que nem sempre souberam quem realmente os empregava, foram
contratados para administrar despacho e embarque. Essa operação era comandada
por David Petraeus, diretor da CIA que logo renunciaria, quando se
divulgou que mantinha um affair com sua biógrafa. (Porta-voz de Petraeus
negou que essa operação tenha algum dia existido).
Essa
operação jamais foi informada, quando foi montada, às comissões de Inteligência
do Senado e da Câmara de Deputados no Congresso, nem às lideranças do
Congresso, como a lei exige, desde os anos 1970s. O envolvimento do MI6
permitiu à CIA burlar a lei, apresentando a missão como operação de
ligação. Meu informante explicou que durante muitos anos havia uma exceção
reconhecida na lei que permite que a CIA não informe ao Congresso suas
atividades de ligação, porque implicaria revelar atividade de terceiros.
(Operações clandestinas da CIA [que não sejam operação de ligação] têm de ser
informadas num documento escrito, chamado finding, submetido às
lideranças no Congresso, e têm de ser aprovadas).
Esse anexo
só foi lido pelos redatores do documento e por oito pessoas no Congresso: os
líderes Republicano e Democrata na Câmara, no Senado e nas Comissões de
Inteligência da Câmara e do Senado. Não se pode dizer que haja aí alguma
genuína prestação de informação ou possibilidade de controle: não há instância,
no governo dos EUA, na qual esses oito líderes encontrem-se para discutir
informação secreta que só eles, em todo o governo, recebem.
O anexo não
conta toda a história do que aconteceu em Benghazi antes do ataque nem explica
por que o consulado dos EUA foi atacado.
A única missão daquele consulado era dar cobertura
ao movimento de armas – disse meu informante, ex funcionário da inteligência,
que leu o anexo − não tinha nenhuma real
função política.
Depois do
ataque ao consulado, Washington pôs fim repentinamente ao trabalho da CIA
na transferência de armas da Líbia para a Síria, mas a linha de rato continuou
ativa.
Os EUA já não têm qualquer controle sobre o
que os turcos estão entregando aos jihadistas – disse meu informante.
Em poucas
semanas, cerca de 40 lançadores portáteis de mísseis terra-ar, conhecidos como manpads,
estavam em mãos de rebeldes sírios.
Joby Warrick |
Dia
28/11/2012, Joby Warrick do Washington Post noticiou que, na véspera,
rebeldes na região de Aleppo haviam, quase com certeza, usado um manpads
para derrubar um helicóptero de transporte sírio.
O governo Obama − escreveu
Warrick − muito se opôs a que se armasse
a oposição síria com esses equipamentos, alertando que essas armas facilmente
cairiam em mãos de terroristas e poderiam a qualquer momento ser usadas para
derrubar aviões comerciais.
Dois
funcionários da inteligência do Oriente Médio apontaram o Qatar como fonte das
armas, e um ex-analista de inteligência dos EUA especulou que os manpads
poderiam ter sido roubados de depósitos de armas do exército sírio assaltados
por rebeldes. Não há qualquer indicação de que a posse desse tipo de armamento
pelos rebeldes possa ser algum tipo de consequência não desejada de alguma
operação clandestina dos EUA que tenha escapado do controle dos EUA.
No final de
2012, toda a inteligência norte-americana entendia que os rebeldes estavam
perdendo a guerra.
Erdoğan estava furioso – continua
meu informante – Sentia-se deixado para
trás, pendurado no galho. Era dinheiro dele. E a saída da CIA foi interpretada como traição.
Na
primavera de 2013, a
inteligência dos EUA soube que o governo turco – usando elementos de sua
agência nacional de inteligência, MIT, e a Gendarmerie, unidade
policial militarizada – estava trabalhando diretamente com a Frente al-Nusra e
seus aliados para desenvolver capacidade de armas químicas.
O MIT fazia a ligação política com os rebeldes, e
a Gendarmerie cuidava da logística militar, aconselhamento e treinamento em campo –
inclusive treinamento para guerra química. Ampliar
o papel da Turquia na primavera de 2013 foi visto como movimento chave − disse
meu informante.
Erdoğan sabia que, se ele suspendesse o apoio
aos jihadistas, a coisa estaria
acabada. Os sauditas não têm como apoiar diretamente a guerra na Síria, por
causa da logística – as grandes distâncias envolvidas e a dificuldade para mover
armas e suprimentos. A esperança de Erdoğan era criar um fato que forçasse os
EUA a acionar a linha vermelha. Mas em março e abril, Obama não respondeu.
Recep Erdoğan e Barack Obama |
Não houve
nenhum sinal público de discordância, quando Erdoğan e Obama encontraram-se,
dia 16/5/2013 na Casa Branca. Em conferência de imprensa, depois, Obama disse
que os dois concordavam que “Assad tem de sair”. Perguntado sobre se entendia
que a Síria tivesse cruzado a linha vermelha, Obama disse que havia evidência
de que aquelas armas haviam sido usadas, mas acrescentou: “É importante para
nós garantir que obtenhamos informação mais específica sobre o que, exatamente,
está acontecendo lá”. A linha vermelha continuava ainda intacta.
Um
especialista em política externa dos EUA, que fala regularmente com
funcionários em Washington e Ancara contou-me sobre um jantar de trabalho que Obama
ofereceu a Erdoğan, durante sua visita em maio. O jantar foi dominado pela
insistência, dos turcos, de que a Síria já ultrapassara a linha vermelha, e
suas reclamações de que Obama relutava em fazer alguma coisa quanto a isso.
Obama estava acompanhado por John Kerry e Tom Donilon, o conselheiro de
segurança nacional que pouco depois deixaria o cargo. Erdoğan estava com Ahmet
Davutoglu, Ministro de Relações Exteriores da Turquia, e Hakan Fidan, chefe do MIT.
Fidan é conhecido por ser fortemente leal a Erdoğan, e tem sido visto como
dedicado apoiador da oposição rebelde na Síria.
Esse
especialista em política externa dos EUA contou-me que o que ouviu ele ouviu de
Donilon. (Adiante a informação foi confirmada por um ex-funcionário do governo
dos EUA, que ouviu o mesmo relado de um alto diplomata turco). Segundo esse
especialista, Erdoğan quis o encontro para demonstrar a Obama que a linha
vermelha fora infringida, e levou Fidan para expor os detalhes de sua posição.
Quando Erdoğan tentou introduzir Fidan na conversa e Fidan começou a falar, Obama
o interrompeu: “Já sabemos”. Erdoğan tentou outra vez introduzir Fidan, uma
segunda vez, e, pela segunda vez, Obama cortou-lhe a palavra: “Nós sabemos”.
Nesse
ponto, furioso, Erdoğan disse “Mas sua linha vermelha já foi ultrapassada!”, e
Donilon contou ao especialista, meu informante:
(...) aquele filho da puta do Erdoğan meteu o dedo
no nariz do presidente, dentro da Casa Branca.
Obama então
se virou para Fidan e disse: “Nós sabemos o que você está fazendo com os
radicais na Síria”. (Donilon, que passou a integrar o Conselho de Relações
Exteriores em julho passado (2013) não responde perguntas sobre esse jantar. O
Ministério de Relações Exteriores da Turquia não responde perguntas sobre esse
jantar. Um porta-voz do Conselho de Segurança Nacional confirmou que o jantar
aconteceu e enviou uma fotografia em que se vê Obama, Kerry, Donilon, Erdoğan,
Fidan e Davutoglu à mesa. Disse que “além do que aí vai, não há detalhes das
discussões”).
Nem por
isso Erdoğan saiu de mãos abanando. Obama continua a permitir que a Turquia
explore um furo numa ordem executiva do presidente que proíbe exportar ouro
para o Irã, item do regime de sanções dos EUA contra o país. Em março de 2012,
respondendo a sanções contra bancos iranianos impostas pela União Europeia, o
sistema de pagamento eletrônico SWIFT, que facilita pagamentos
trans-fronteiras, expulsou dúzias de instituições financeiras iranianas, o que
restringiu severamente a capacidade do país para atuar no comércio
internacional. Os EUA vieram logo depois, com a ordem executiva, em julho, mas
deixaram aberta uma porta que viria a ser conhecida como “furo dourado”: podem
continuar os embarques de ouro para entidades privadas iranianas. A Turquia é a
maior compradora de petróleo e gás iranianos, e beneficia-se do “furo dourado”,
depositando seus pagamentos pela energia que compra em liras turcas, numa conta
iraniana na Turquia; esse dinheiro então é usado para comprar ouro turco que é
exportado para empresas no Irã. Sabe-se que entraram US$13 bilhões em ouro, no
Irã, por essa via, entre março de 2012 e julho de 2013.
US$ 13 bilhões em ouro entraram no Irã vindos da Turquia |
Esse
programa rapidamente se converteu em vaca de tetas fartas para políticos
corruptos e comerciantes na Turquia, no Irã e nos Emirados Árabes Unidos.
Os intermediários fazem o que sempre fazem – disse o
ex funcionário da inteligência, meu informante – Ficam com 15%. A CIA estimou
em cerca de 2 bilhões de dólares a parte não oficial desses negócios. Ouro e
liras turcas grudam nos dedos.
O escândalo
do “gás por ouro” veio a público na Turquia em dezembro, e resultou em
denúncias criminais contra duas dúzias de pessoas, empresários conhecidos e
familiares de altos funcionários do governo, além de ter gerado renúncia de
três ministros, um dos quais exigiu que Erdoğan também renunciasse. O principal
executivo de um banco estatal turco envolvido no escândalo insistiu que os mais
de US$ 4,5 milhões em dinheiro que a polícia encontrou em sua casa, metidos em
caixas de sapato, destinavam-se a doações para instituições de caridade.
No final do
ano passado, Jonathan Schanzer e Mark Dubowitz em matéria para a Foreign
Policy noticiaram que o governo Obama fechara o “furo dourado” em janeiro
de 2013, mas “trabalhou para garantir que a legislação só começasse a viger
depois de seis meses”. Os autores especulam que o governo quis usar aquele
tempo “extra” como “incentivo para trazer o Irã à mesa das barganhas sobre seu
programa nuclear, ou para acalmar seu aliado turco na guerra civil síria. Os
seis meses garantiram alguns bilhões a mais, em ouro, ao Irã, e minaram ainda
mais o regime de sanções”.
*****
A decisão
dos EUA de pôr fim ao apoio da CIA ao embarque de armas para a Síria
deixou Erdoğan exposto politicamente e militarmente.
Uma das questões da reunião de maio era o
fato de que a Turquia é a única via para fazer chegar armas aos rebeldes na
Síria – disse meu informante ex funcionário da inteligência. As armas não podem chegar pela Jordânia
porque o terreno ao sul é aberto e há sírios por toda parte. Não podem ser
deslocadas pelos vales e colinas do Líbano – porque ninguém nunca sabe o que
encontrará do outro lado.” Sem o apoio militar dos EUA aos rebeldes – disse
ele – o sonho de Erdoğan de ter na Síria
um estado cliente está evaporando. Depois de a Síria vencer a guerra, Erdoğan
sabe para onde irão aqueles milhares de rebeldes. E para onde iriam?! Erdogan está a um passo de ter milhares de radicais
bem ali, no quintal dele.
Um
consultor de inteligência dos EUA contou-me que poucas semanas antes de 21/8/2013,
viu um documento altamente secreto preparado para Dempsey e o Secretário de
Defesa, Chuck Hagel, que falava da “aguda ansiedade” do governo Erdoğan quanto
às perspectivas sombrias para os rebeldes. A análise alertava que a liderança
turca expressara “a necessidade de fazer alguma coisa que precipite uma
resposta militar dos EUA”.
Chuck Hagel |
No final do
verão (agosto/setembro 2013), o exército sírio ainda estava em vantagem sobre
os rebeldes, disse o ex funcionário da inteligência, e só o poder aéreo
norte-americano conseguiria inverter a maré. No outono, prosseguiu ele,
analistas de inteligência dos EUA que continuavam a trabalhar sobre os eventos
de 21/8/2013,
(...) já sentiam que a Síria não era responsável
pelo ataque com sarín. Mas o gorila gigante continuava ali, diante deles: quem
teria feito aquilo, em Goutha? Os suspeitos, de imediato, foram os turcos,
porque só os turcos tinham todas as peças para fazer acontecer o que aconteceu.
Com mais
dados e novas comunicações interceptadas relacionadas aos ataques de 21/8/2013,
a comunidade de inteligência viu provas que apoiavam suas suspeitas.
Agora já sabemos que foi operação clandestina
planejada por gente de Erdoğan, para forçar Obama a atacar, por “infração à
linha vermelha” – disse-me meu informante, ex funcionário da inteligência
dos EUA. – Eles tinham de escalar para um
ataque a gás, em Damasco ou perto de Damasco, quando os inspetores da ONU (que
chegaram a Damasco dia 18/8, para investigar ataques anteriores) – “estivessem lá”. Era indispensável fazer
algo espetacular. Nossos mais altos funcionários militares foram informados
pela Agência de Inteligência da Defesa e outras fontes de inteligência, de que
o sarín chegou até lá através da Turquia – que só poderia ter chegado lá com
apoio da Turquia. Os turcos também deram treinamento para produzirem e
manusearem o gás sarín.
Muita da
informação que dá apoio a essa avaliação veio dos próprios turcos, através de
conversas interceptadas logo depois do ataque.
A principal prova veio das muitas
manifestações de alegria e felicitações mútuas, claras em numerosas conversas
interceptadas. Operações secretas sempre são muito supersecretas durante o
planejamento, mas milhares de moscas voam para todos os lados, na hora das
comemorações. Não há vulnerabilidade maior que os autores, depois, quando
começam a querer parabéns pelo sucesso, disse meu informante.
Para Erdoğan, seus problemas estariam, no dia
seguinte, resolvidos: Soltem o gás, Obama declara “pisou na linha vermelha’,
EUA atacam a Síria... Ou pelo menos, a ideia era essa. Mas não funcionou como o
esperado, concluiu.
A
inteligência sobre a Turquia, depois do ataque, não chegou à Casa Branca.
Hakan Fidan |
Ninguém quer falar sobre isso – disse o
ex oficial de inteligência, meu informante. – Há muita relutância em contradizer o presidente, embora a comunidade de
inteligência jamais tenha apoiado unanimemente a versão da culpa dos sírios.
Jamais surgiu nem fiapo de prova posterior do envolvimento dos sírios no ataque
com sarín que tenha sido apresentada pela Casa Branca, desde que o bombardeio
foi cancelado. O governo de Obama nada pode dizer, porque eles mesmos agimos de
modo muito irresponsável. Além do mais, já que culpamos Assad, agora não
podemos nos desdizer e culpar Erdoğan.
A presteza
com que a Turquia manipula os eventos na Síria na direção de seus próprios
objetivos foi bem demonstrada no final do mês passado (março/2014), alguns dias
antes de eleições locais na Turquia, quando a gravação de uma conversa,
supostamente entre Erdoğan e seus associados, foi postada em YouTube. Incluía discussão sobre uma
operação a ser atribuída a terceiros, que justificaria uma incursão de
militares turcos na Síria. A operação girava em torno do túmulo Suleyman Shah,
avô do reverenciado Osman I, fundador do Império Otomano, localizado perto de
Aleppo, mas túmulo que foi cedido à Turquia em 1921, quando a Síria estava sob
governo francês. Uma das facções islamistas rebeldes ameaçava destruir o
túmulo, como local de idolatria, e o governo Erdoğan ameaçava publicamente
retaliar, se o túmulo sofresse qualquer ataque. Segundo matéria distribuída
pela Reuters, sobre a conversa que vazou, uma voz, que se suspeita seja Fidan,
falava de criar uma provocação:
Olhe aqui, meu comandante [Erdoğan],
se precisa de justificativa, a
justificativa é eu mandar quatro homens até o outro lado. Mando dispararem oito
mísseis em terra vazia [perto do túmulo]. Isso não é problema. A justificativa, se cria.
O governo
turco reconheceu que houve uma reunião de segurança nacional, sobre ameaças
vindas da Síria, mas disse que a gravação fora manipulada. Na sequência, o
governo turco bloqueou completamente o acesso público ao canal YouTube.
Exceto essa
ação, que foi barrada por Obama, o mais provável que a intromissão da Turquia
na Síria prossiga.
Perguntei a colegas meus se há algum modo de
vedar o continuado apoio de Erdoğan aos rebeldes, sobretudo agora, que tudo
está tomando rumo tão ruim” – disse-me meu informante, ex funcionário da
inteligência dos EUA. A resposta deles foi “Estamos ferrados”. Até poderíamos
tentar ir a público, se fosse outro. Mas a Turquia é caso especial. A Turquia é
aliada na OTAN. Os turcos não confiam no ocidente. Não continuariam conosco se
adotássemos qualquer procedimento ativo contra interesses turcos. Se fôssemos a
público com o que sabemos sobre o papel de Erdoğan no caso do gás, seria um
desastre. Os turcos nos odiariam. Diriam “Não nos digam o que podemos ou não
podemos fazer”.
______________________
Notas dos tradutores
[1] A expressão original rat
line é corrente no jargão militar e da
espionagem-inteligência, em inglês. Adiante, nesse artigo, o autor retoma e
explica a expressão.
[2] Pode ser acrônimo [sigla] de System Resource Utilization Package.
A verificar.
______________________
[*] Seymour
Myron “Cy” Hersh (Chicago, 8/4/1937) é
jornalista de investigação norte-americano, ganhador do prêmio Pulitzer e
especializado em geopolítica, atividades dos serviços secretos e assuntos
militares dos Estados Unidos.
Principais feitos
jornalísticos
- Revelação do massacre de My Lai, no Vietnam, em novembro de 1969, o que lhe valeu o prêmio Pulitzer de 1970.
- Revelação do projeto Jennifer (tentativa de resgate dos destroços do submarinosoviético K-129 promovida pela CIA, também em 1969, visando recuperar, em proveito dos Estados Unidos, dados e tecnologias soviéticas).
- Revelação das atividades ilegais da CIA contra organizações pacifistas e outros movimentos políticos de oposição, nos Estados Unidos, em 1974, o que resultou na demissão de James Jesus Angleton, chefe da contraespionagem da CIA.
- Revelação da existência do Office of Special Plans (OSP) do Departamento de Defesa norte-americano, ao publicar o artigo “Selective Intelligence”, em 2003.
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