Publicado
em 28/03/2013 por Urariano
Motta *
Recife
(PE) - Por
caminhos tortos, Joaquim Nabuco teve uma das suas iluminações quando escreveu:
A
escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do
Brasil.
Sim,
por caminhos tortos, porque depois de uma frase tão magnífica, de gênio do
futuro, Joaquim Nabuco sem pausa continuou, num encanto que esconde a
crueldade:
“Ela
(a escravidão) espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu
contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que
ele guardou; ela povoou-o como se fosse uma religião natural e viva, com os seus
mitos, suas legendas, seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas
tristezas sem pesar, suas lágrimas sem
amargor...”.
Penso
na primeira frase de Nabuco, a da escravidão como característica do Brasil,
nestes dias em que o
Congresso dá um primeiro passo para a superação da herança
maldita.
Não
quero falar aqui sobre as conquistas legais para as empregadas domésticas, da
nova lei sobre a qual os jornais tanto têm falado como num aviso: “patroas,
cuidado, domésticas agora têm direitos”. Falo e penso nas empregadas
que vi e tenho visto no Recife e em São Paulo.
No
aeroporto de Guarulhos eu vi Danielle Winits, a famosa atriz da Globo, muito
envolvida com o seu notebook,
concentradíssima, enquanto o filhinho de cabelos louros berrava. Para quê? A sua
empregada, vestida em odioso e engomado uniforme, aquele que anuncia “sou
de outra classe”, cuidava para que a perdida beleza da atriz não
fosse importunada. Tão natural... os fãs de telenovelas não viam nada de mais na
mucama no aeroporto, pois faziam gracinhas para o bobinho
lindinho.
Em
outra ocasião, numa terça-feira de carnaval à noite, vi no Recife uma jovem à
minha frente, empenhada em ver a passagem de um maracatu. Tão africano, não é?
Junto a ela uma senhora – desta vez sem uniforme, mas carregando no rosto e
modos a servidão – abrigava nos braços um bebê.
Os
tambores, as fantasias, eram de matar qualquer atenção dirigida à criança, que
afinal estava bem cuidada, sob uma corda invisível que amarrava a empregada.
Então eu, no limite da raiva, oferecei o meu lugar à sua escrava sobrevivente,
com a frase:
A
senhora, por favor, venha com o seu filho aqui para a frente.
A
empregada quis se explicar, coitada, morta de vergonha, enquanto a doce mamãe
não entendia o chamamento irônico, pois me olhava como se eu fosse um marciano.
Espantada, parecia me dizer: “como
o meu filho pode ser dessa aí?”
O
desconhecimento de direitos elementares às empregadas domésticas, como
privacidade, respeito, a falta de atenção para ver nelas uma pessoa igual aos
patrões, creio que sobreviverá até mesmo à nova lei.
É
histórico no Brasil, atravessa gerações e atinge até mesmo os mais jovens e
pessoas que se declaram à esquerda. É como se estivesse no sangue, como se fosse
genético, de um caráter irreprimível. Até antes delas vão a democracia e a
igualdade. A partir delas é outra história. Quantas vezes vemos nos restaurantes
jovens casais com suas lindas crias, tendo ao lado as escravas, que nem sequer
têm direito a provar da bebida e da comida? Isso nos domingos e feriados, pois
esses são os dias das patroazinhas se divertirem. É justo, não é?
O
feminismo se faz para que mulheres sejam cidadãs, mas a cidadania só alcança os
iguais, é claro.
Em
todas as situações desconfortáveis, se ousamos estranhar, ou agir com pelo menos
um olhar atravessado para essa infâmia, recebemos a resposta de que as
domésticas são pessoas da família. Parentes fora do sangue, apenas separadas por
deveres, notamos. É o que se pode chamar de uma opressão disfarçada em laços
afetivos.
A
ex-escrava é considerada como um bem amoroso, íntimo, mas que por ser da casa
come na cozinha e se deita entre as galinhas do quintal. O que, afinal, é mais
limpo que se deitar com os porcos no chiqueiro.
Não
estranhem, porque não exagero.
Não
faz muito tempo no Recife era assim. E por que estranhar esse tratamento? Olhem
os grandes e largos e luxuosos apartamentos do Rio e de São Paulo, abram os
olhos para os minúsculos quartinhos de empregadas, entrem nos seus banheiros,
que Millôr dizia serem a prova de que no Brasil empregadas não têm sexo no WC.
Não
posso concluir sem observar que os pobres copiam os ricos, e que o tratamento
dado às domésticas se estende em democracia para todas as classes sociais. Menos
para as empregadas, é claro.
Dizia
Nabuco:
A
escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do
Brasil
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Enviado por Direto
da Redação
Muito interessante. Justamente hoje, quando acidentalmente na rádio bandeirantes (a emissora dos evangélicos e psicóticos) ouvi o Jornalista José Paulo de Andrade, tendo um ataque de "sinhôzinho", considerando um absurdo oferecer igualdade a estas "ignorantes ... pois se não fossem ignorantes não seriam empregadas domésticas", disse ele; tamém tomei conhecimento do curta metragem "Vida Maria", uma resposta visual e silenciosa aos primatas da comunicação.
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