quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Crônica da Urda: O movimento "hippie" passou pela minha cozinha

*Urda Alice Klueger


Às vezes, pessoas jovens com quem convivo me perguntam se eu fui hippie. Eu fico me questionando: fui? Não fui? Bem, eu não botei a mochila nas costas e fui para as estradas, como os hippies faziam, nem sentei em praças a fazer artesanato, nem vivi em fazendas comunitárias - na verdade, em todo o tempo em que as coisas estavam acontecendo, eu continuei a levar uma vida de pequena burguesa, em Blumenau, primeiro estudando, depois trabalhando e estudando, e sei que o meu pai jamais deixaria que eu botasse a mochila nas costas e saísse pelo mundo.


Por outro lado, eu estava ligadíssima em tudo o que acontecia: era adolescente quando chegaram as primeiras notícias sobre o movimento hippie, e quase fiquei adulta antes que ele terminasse. Minhas antenas estavam todas voltadas para aqueles jovens que estavam botando em xeque todos os valores pré-estabelecidos, que estavam derrubando tabus e preconceitos, e tudo o que eu queria na vida era ser como eles. Na verdade, absorvi ao máximo a filosofia hippie, e quando me perguntam se fui hippie ou não, acabo pensando cá comigo : "De uma certa forma, eu sou hippie até hoje!"


Daí, um dia, logo depois de 1970, o movimento hippie chegou em Blumenau. Os hippies tinham rotas pré-estabelecidas: do Rio desciam para a Ilha do Mel/PR, e de lá a Florianópolis, e de lá enveredavam para o Rio Grande do Sul e a Argentina, e depois iam conhecer mais coisas na América do Sul, e acabavam voltando ao Brasil via Bolívia. Em algum momento, no começo da década de setenta, eles colocaram Blumenau nessa rota, e foi lindo!


Eles chegavam sem pressa a Blumenau, e hospedavam-se num hotelzinho da Rua Ângelo Dias chamado Hotel Braz, e passavam os dias na escadaria da Igreja Matriz, fazendo os mais diferentes tipos de artesanato, e tocando violão, e compondo poemas, e filosofando e se curtindo, e eu daria um braço para poder ficar lá com eles - só que, pequena burguesa que era, tinha que ir trabalhar.


Nos finais de tarde, porém, parava diante da escadaria da Igreja, e ficava de papo com eles. Surgiram amizades daí, e os hippies começaram a ir lá em casa jantar. Meus pais tinham se mudado para a praia, e eu e minha irmã Margaret morávamos num "apertamento" na Rua XV de Novembro 1398, a principal de Blumenau. Com certeza, se morássemos, ainda, com nossos pais, as coisas teriam sido diferentes - mas em pleno movimento hippie blumenauense, Margaret e eu estávamos morando sozinhas - uma maravilha!


Nosso "apertamento" virou ponto de jantar de muitos hippies - porque eles estavam sempre indo ou chegando de algum outro lugar, e as amizades não duravam muito tempo. Estávamos, naquele tempo, num período de baixíssima inflação, e tínhamos bons salários, o que resultava em esmerados jantares feitos de camarão e outras coisas boas.


Nossos amigos andavam sempre meio esfomeados, e era um prazer cozinhar para eles. Nós entrávamos com a comida, e eles entravam com as histórias, e quantas histórias tinham para contar! A maioria deles tinha viajado muito, e contavam para nós as coisas do Brasil e da América, e alguns tinham viajado inclusive pela Europa, e era um nunca acabar de contar coisas. Discutíamos música e coisas filosóficas, falávamos mal da guerra do Vietnã e dos preconceitos da sociedade - eram noites estimulantíssimas!



Naquele tempo, porém, se dormia cedo. Meia noite era uma hora tardia, e era por essa hora que eu anunciava :

- Gente, hora de dormir! - e nossos amigos se despediam e iam escada abaixo, mas quantas coisas e quantas experiências nos deixavam! Quantas coisas, na minha vida de hoje, ainda são influenciadas por aqueles papos e por aquele tempo! Eram doces amigos que foram educados e gentis, sequer alguma vez acenderam um baseado na nossa cozinha. E como os mais velhos falavam mal deles! Acho que fui uma felizarda pelo contacto com eles.


E afirmo, hoje, com orgulho, que o movimento hippie passou pela minha cozinha!


Blumenau, 02 de Abril de 1998.


*Urda Alice Klueger: catarinense da cidade de Blumenau, nasceu em 16 de fevereiro de 1952. Seu primeiro grande sucesso foi "Verde Vale", que conta uma saga dos primeiros colonizadores de Santa Catarina. Outros trabalhos seus são "As brumas dançam sobre o Espelho do Rio" (hino à natureza, à liberdade e ao amor), "No Tempo das Tangerinas" (conta a vida dos colonizadores do Vale do Itajaí, durante a Segunda Guerra e como a vida resiste às angústias, "A guerra nunca acabava, mas o tempo das tangerinas voltava sempre."), "Vem, Vamos Remar" (sobre as enchentes de Blumenau), "Te Levanta e Voa" (sobre jovens a procura de seu destino), "Cruzeiros do Sul", "Recordações de Amar em Cuba II", "A Vitória de Vitória" (infanto-juvenil) e "Entre Condores e Lhamas". Urda escreve, com linguagem simples e objetiva, obras consistentes e seu texto tem sabor de poesia.