terça-feira, 21 de dezembro de 2010

EUA: O espelho cego do Estado de Controle

20/12/2010, Glenn Greenwald, Salon
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu
  
Uma das marcas registradas dos governos autoritários é a obsessão por ocultar todos os seus atos atrás de barreiras de sigilo e, ao mesmo tempo, monitorar, vigiar, controlar, invadir e preparar ‘dossiês’ sobre tudo que os cidadãos façam. Baseado no aforismo de Francis Bacon segundo o qual “conhecimento é poder”, é esse total desequilíbrio que dá à classe dominante a sensação de onipotência e aos cidadãos a sensação de impotência.

Hoje, no Washington Post, Dana Priest e William Arkin continuam a série Top Secret America, em que descrevem o gigantesco e sempre crescente Estado de Controle dos EUA que hoje já inclui agências estaduais e locais para pesquisar e armazenar quantidades sempre crescentes de informações sobre as mais inocentes atividades praticadas por cidadãos pressupostos ‘perigosos’. Como nos primeiros capítulos da matéria, também agora não há revelações nem qualquer verdadeira novidade para os que prestem atenção a esses temas, mas o quadro pintado – e o fato de aparecer publicado por jornal do establishment, como o Washington Post – sim, é informação que tem algum valor.

Hoje, os jornalistas do Post mostram como os métodos de controle e repressão dos quais os EUA são pioneiros em suas guerras e ocupações em terra estrangeira estão sendo rapidamente incorporados pela vigilância doméstica (scanners de impressões digitais, câmeras sensíveis a infravermelho de uso militar,scanners biométricos de rosto, aviões-robôs além fronteiras). Em resumo:

Unidades de operações especiais usadas além-mar para matar líderes da al-Qaeda geraram avanços tecnológicos cujo uso começa a ser expandido para todos os EUA. Nas linhas de frente da guerra, esses avanços permitiram os progressos na identificação biométrica, na captura de dados armazenados em computador e números de telefones celulares, de modo que os soldados possam sempre atacar de surpresa. Cá em casa, há o DHS [Departamento de Segurança Interna] que se dedica a recolher fotos, imagens de vídeo e outras informações pessoais sobre residentes nos EUA, na esperança de, assim, espantar terroristas.

Simultaneamente, o Departamento de Segurança Interna do governo Obama rapidamente expandiu a abrangência e a penetração (invasiva) dos programas de vigilância doméstica – tudo sempre justificado, nem seria preciso repetir, em nome do combate ao Terrorismo:

[Secretária Janet DSI] Napolitano levou sua campanha de “Ver alguma coisa, Dizer alguma coisa” muito além dos sinais de trânsito que pedem aos motoristas que chegam à capital do país que notifiquem o que lhes pareça útil no combate aos terroristas ["Terror Tips"] e que “Relatem qualquer atividade Suspeita”. 
Recentemente, obteve o apoio das empresas Wal-Mart, Amtrak, principais ligas de esportes, cadeias de hotel e usuários do Metrô. Em seus discursos, ela compara essa à luta da Guerra Fria contra os comunistas.
"Há aí uma mudança para nosso país”, disse ela a policiais e bombeiros  de New York, à véspera do aniversário do 11/9. "Em certo sentido, voltamos ao ponto no qual nos separamos da tradição de defesa e prontidão civil, separação que levou às preocupações de hoje.”

Os resultados são previsíveis. Quantidades imensas de dinheiro do antiterrorismo pós-9/11 acorreram para as agências estaduais e locais que virtualmente não enfrentam ameaças terroristas, e esses fundos são usados para comprar tecnologias – compradas sempre do setor privado que controla e opera os programas de Controle e repressão do governo – para ampliar o monitoramento e arquivamento de informes sobre cidadãos comuns sobre os quais não pesa nenhuma suspeita. A sempre crescente cooperação entre agências federais, estaduais e locais – e entre as grandes agências federais – disseminou gigantescas bases de dados que contêm informação sobre atividades de milhões de cidadãos norte-americanos. “Há 96 milhões de conjuntos de impressões digitais” na base de dados do FBI, informa o Post hoje. Além disso, o FBI usa seu programa de registro de atividades suspeitas [ing. "suspicious activities record" program (SAR)] para coletar e arquivar quantidades infindáveis de informações sobre norte-americanos inocentes:

Ao mesmo tempo em que o FBI está expandindo a base de dados de West Virginia, está também construindo um vasto repositório controlado pro pessoas que trabalham num nicho top-secret no 4º andar do Edifício J. Edgar Hoover, do FBI, em Washington. Nesse nicho arquivam-se os perfis de dezenas de milhares de norte-americanos e residentes legais que não são acusados de crime algum. São cidadãos que ‘parece’ que agiram de modo suspeito, na avaliação de um xerife municipal, um guarda de trânsito ou, mesmo, um vizinho.

Para termos ideia do tipo de informação que acaba por ser armazenada – a partir das mais inocentes condutas – basta ler um trecho da matéria, que comenta o Relatório n. 3.821 de Atividade Suspeita [ing. Suspicious Activity Report No 3821 O próprio FBI admite que há muito desperdício – “90% nada significa e leva a nada”, disse Richard Lambert Jr., agente especial encarregado do escritório do FBI em Knoxville” –, mas, como a história comprova conclusivamente, dados coletados sobre cidadãos sempre acabam por se comprovar úteis, mesmo que não revelem traço de criminalidade.  

Para entender o alcance do Estado de Controle, relembremos uma sentença do artigo original de Priest/Arkin:  “Todos os dias, os sistemas de coleta na Agência de Segurança Nacional interceptam e armazenam 1,7 bilhões de e-mails, chamadas telefônicas e outros tipos de comunicações.” Como Arkin e Priest noticiam hoje, há poucas salvaguardas relacionadas ao modo como esses dados são usados e abusados. Departamentos de polícia locais rotineiramente fazem reuniões com grupos de neoconservadores e insistem que todas as comunidades muçulmanas nos EUA são ameaça potencial, devem ser submetidas a controle intensivo e devem ser infiltradas. Grupos dissidentes, cujas práticas são perfeitamente legais , têm recebido atenta atenção desses programas governamentais de controle. Temos, em resumo, um vasto Estado de Controle, absolutamente sem qualquer limite ou fiscalização e cada vez mais invasivo, que tem e continua a reunir cada vez mais e mais informações sobre atividades de cada vez mais e mais cidadãos.

Mas o que torna tudo isso particularmente obsceno é que – como o comprova o conflito com WikiLeaks – tudo acontece ao lado de um muro de sigilo e segredo, atrás dos qual a própria conduta do próprio governo é mantida cuidadosamente ocultada dos olhos dos cidadãos. Basta considerar a reação do governo contra a publicação de documentos por WikiLeaks, publicação a qual o próprio governo – em momentos de transparência e honestidade – reconhece que não causou nenhum dano real a ninguém: informação divulgada que, de fato, estava protegida apenas por restrições de baixo nível de segurança, nenhuma das quais (e, nisso, diferentes dos “Documentos do Pentágono”) levava o selo “Top Secret”.

É absolutamente certo e claro que o Departamento de Justiça está empenhado em cruzada vale-tudo para encontrar um meio de calar WikiLeaks e meter Julian Assange na cadeia. Está hoje impondo tratamento inacreditavelmente desumano a Bradley Manning, para tentar forçá-lo a depor contra Assange, de tal modo que passe a ser possível processá-lo. 


Lembremos que em 2008 – muito antes de alguém ter ouvido falar de WikiLeaks – o Pentágono já maquinava para destruir a organização. No programa Meet the Press [NBC News] de ontem, Joe Biden foi perguntado se concordava mais com o que disse Mitch McConnell (que Assange seria “terrorista high-tech”) ou com os que compararam WikiLeaks a Daniel Ellsberg. O vice-presidente respondeu: “Eu diria que está mais perto de terroristahigh-tech” (...) “Um terrorista high-tech”. 

E considerem esse pernicioso pequeno ensaio assinado por Eric Fiterman – ex-agente especial do FBI e fundador de Methodvue, “empresa de consultoria que fornece serviços de cibersegurança e investigação criminal ao governo e a empresas privadas” – que claramente reflete o pensamento do governo sobre WikiLeaks (Cyberwar: Enemy Needn’t Be a Nation State):

No caso de WikiLeaks, grupo marginal liderado basicamente por estrangeiros, que opera no exterior e está ilegalmente obtendo, revisando e disseminando informação da inteligência dos EUA com a declarada intenção de agredir os EUA (o fundador de WikiLeaks Julian Assange é pessoalmente o autor dessa declaração). É declaração não só agressiva e hostil, e belicosa. É declaração de agressão frontal às posições diplomáticas e aos interesses da inteligência dos EUA, que inflige danos colaterais às nossas instituições financeiras e a provedores de serviços que já romperam relações com WikiLeaks. Isso, meus amigos, é guerra.

Esse é o pensamento do governo dos EUA – os feitos do governo que tenham alguma relevância podem e devem ser mantidos longe dos olhos dos cidadãos; quem tente lançar alguma luz sobre feitos do governo é inimigo e tem de ser destruído; mas nada do que você faça estará jamais suficientemente salvaguardado do monitoramento e será imediatamente gravado e arquivado. E, o mais extraordinário de tudo – embora, dado absoluto e total consenso entre os dois partidos sobre a questão, não surpreenda – é o quando os cidadãos estão submetidos, rendidos à violência daquele desequilíbrio.  Muitos norte-americanos, de fato, já reivindicam dos governantes: exigimos que o governo saiba tudo sobre nós mesmos, e que o governo nos mantenha absolutamente ignorantes sobre o que o governo faz, e que castigue todos os que insistam em nos informar sobre o que faz o governo. Seguidamente, esse tipo de opressivo Estado de Controle tem de ser imposto a cidadãos que resistem. Mas os assustados cidadãos dos EUA – conduzido por jornalistas e personagens ‘da mídia’ que, mais que tudo, odeiam qualquer transparência – está sendo treinado como uma fila interminável de homens e mulheres medrosos, assustadiços, a pedir que lhes enfiem goela abaixo quantidades cada vez maiores de medo, medo, sempre mais medo.

Obviamente, qualquer Estado tem necessariamente poder legítimo para exercer poderes aos quais os cidadãos privados não têm acesso (o Estado pode meter pessoas na cadeia, mas cidadão que prenda cidadão comete crime: sequestro, privação de liberdade).  

O problema é que, nos EUA, o desequilíbrio entre esses poderes tornou-se tão extremo – o governo vigia os cidadãos por um espelho cego, completamente opaco numa das direções –, que os perigos do desequilíbrio de poderes entre governo e governados aparece de modo óbvio e assustador. As coisas deveriam ser o contrário do que são hoje: os funcionários públicos, eles, sim, deveriam ser obrigados a atuar sempre às claras; e os cidadãos, eles, sim, teriam pleno direito à privacidade. 

Pois nos EUA essa dinâmica está quase completamente invertida. E apesar de o 11/9 já ser velho de nove anos, as tendências só se aprofundam numa direção. 

WikiLeaks é uma das raríssimas entidades que está conseguindo furar esse bloqueio e inverter o esquema, motivo pelo qual – do ponto de vista do governo e de seus cúmplices e aliados – WikiLeaks tem de ser calada a qualquer custo.

ATUALIZAÇÃO: Dois pontos relacionados

(1)   Joe Biden não apenas votou a favor da guerra do Iraque, como, também, era presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado em 2002 quando o Senado autorizou o ataque ao Iraque que resultou na morte de bem mais de 100 mil inocentes, operação que ficou conhecida pela expressão “Choque e Horror” [ing. Shock and Awe], slogan propagandístico de criado explicitamente para aterrorizar os iraquianos e posto em prática mediante devastação urbana massiva. Julian Assange jamais votou a favor de tamanha violência – nem de qualquer tipo de violência, jamais matou alguém, jamais pregou que se mate gente aos milhares e nunca sequer ameaçou alguém de morte. Apesar disso Biden diz que Assange seria “terrorista high-tech” e poucos se manifestam indignados contra Biden – mais um sinal, aliás, de que a palavra “terrorista”, de tão manipulada que foi e é, já nada significa. Hoje a palavra “terrorista” significa qualquer um que atrapalhe qualquer projeto dos EUA, por menos que atrapalhe. 
(2)  De todos os abusos do estado de controle, um dos mais horrendos sempre será a apreensão, sem mandado ou qualquer justificativa, de laptops e outros equipamentos eletrônicos de cidadãos dos EUA nas fronteiras, onde os equipamentos são confiscados, muitas vezes indefinidamente. É prática que se vem tornando cada vez mais frequente, e visa pessoas que nada fizeram além de discordar da política do governo; pretendo voltar em breve a esse tema. Se os cidadãos dos EUA não protestarem contra o confisco e a copiagem do conteúdo de seus laptops e telefones celulares sem qualquer tipo de justificativa e sem mandato judicial, contra o quê, algum dia, protestarão?

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