19 de Dezembro de 2010
A revelação de documentos secretos da diplomacia dos Estados Unidos abre uma batalha pela liberdade da informação. Por Passa Palavra
1.Introdução
Desde o início de 2010, o governo dos Estados Unidos está sofrendo os maiores vazamentos de informação [revelação de segredos] da sua história. Nesse período, o site da organização WikiLeaks publicou o vídeo Assassinato Colateral, o Diário de Guerra do Iraque e do Afeganistão (391.000 e 90.000 registros) e, no final de novembro, o Cable Gate. Sob o lema de “abrir governos”, o WikiLeaks conseguiu expôr os segredos recentes da política externa do país.
O Cable Gate reúne 251.287 documentos das representações diplomáticas norte-americanas do mundo inteiro. Do Brasil foram obtidos 2.855 documentos entre 1989 e 2010. Dentre estes, há documentos classificados como secretos e confidenciais. Diferentemente da prática anterior, os documentos foram divididos em etapas de divulgação. Como o próprio site explica: “consideramos que o tema é tão importante e o alcance geográfico tão amplo que se publicássemos tudo de uma vez não estaríamos fazendo justiça a esse material”.
Outra diferença a ser notada é que desde o Diário de Guerra do Afeganistão, o WikiLeaks estabeleceu uma parceria com a mídia tradicional, como El País (Espanha), The Guardian (Grã-Bretanha), Der Spiegel(Alemanha), New York Times (Estados Unidos) e, no Brasil, com a Folha de S. Paulo e O Globo. Esses meios de comunicação recebem os documentos antes do vazamento tornar-se público, de modo que quando isso ocorrer o jornalista já terá produzido uma análise do conteúdo revelado.
No dia 22 de novembro, no twitter, o WikiLeaks avisou que começaria a vazar os arquivos em breve. Apesar do apelo feito pela Casa Branca para que não o fizessem, no dia 28 de novembro foram divulgados 243 documentos, ou seja, 0,09% do total. A Secretária de Estado, Hillary Clinton, ligou pessoalmente para os principais chefes de governo para amortecer o conteúdo dos vazamentos.
Durante uma conferência de imprensa no dia seguinte, Hillary disse que “essa divulgação não é apenas um ataque aos Estados Unidos – é um ataque à comunidade internacional” e que “para deixar claro ao povo americano e para nossos amigos e parceiros que nós estamos tomando medidas agressivas” para responsabilizar aqueles que vazaram os documentos.
Após dois dias do início da divulgação, a Interpol publicou um alerta vermelho contra o fundador e porta-voz do site, Julian Assange, por crimes sexuais na Suécia e, ao longo da semana, iniciou-se uma ofensiva virtual que derrubou o domínio principal do site wikileaks.org e bloqueou os recursos financeiros da organização. No dia 7 de dezembro, Assange entregou-se à polícia britânica e permaneceu preso durante 9 dias até ser libertado sob fiança.
A suposta fonte de todo esse material é o militar de Primeira Classe Bradley Manning, 23 anos. Sob custódia desde o final de maio, enquanto trabalhava na base de operação no Iraque, ele será julgado na corte marcial [tribunal militar] por revelação de documentos classificados e acesso não autorizado e, se culpado, pode permanecer até 52 anos na cadeia. O soldado foi denunciado ao FBI e ao CID (Comando de Investigação Criminal do Exército dos Estados Unidos) pelo hacker Adrian Lamo, com o qual manteve um breve contato pela Internet. Em julho de 2010, Manning foi transferido da base do Kuwait para Base de Quantico, na Virgina, onde é mantido em isolamento e vigilância para evitar suicídio [1]. A complexa história é discutida na matéria: “WikiLeaks sob ataque: suposto informante é preso”.
Em suposta conversa com seu delator, Bradley Manning haveria dito que os documentos classificados revelavam negociações políticas quase criminosas. “Hillary Clinton e milhares de diplomatas de todo mundo vão ter um ataque cardíaco quando acordarem numa manhã e encontrarem um repositório inteiro da política externa classificada disponível, num formato pesquisável, para o público… Todo lugar em que há um posto dos EUA, há um escândalo diplomático que será revelado… É lindo, e horripilante.” [2].
É preciso lembrar que, numa época pré-informatização, o vazamento de informação demandava um grande trabalho, pois era necessário fotografar ou tirar cópias dos documentos e, portanto, a quantidade de informação dependia dos agentes envolvidos e sua capacidade de permanecerem infiltrados ou ocultos. Esse era um desafio comum para os espiões e os denunciantes. Mas, com o avanço tecnológico da microeletrônica e das telecomunicações, as Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (NTICs) permitem a cópia de grandes quantidades de documentos e a sua divulgação de modo quase instantâneo. Um fenômeno também inaugurado pela tecnologia é o acesso remoto, isto é, os dados podem ser lidos e alterados à distância, no caso do Exército dos Estados Unidos, através da SIPRNET.
2.A SIPRNET
Os últimos vazamentos do governo dos Estados Unidos foram possíveis diante da estrutura tecno-burocrática desenvolvida pelo seu próprio exército. A SIPRNET (Secret Internet Protocol Router Network) é uma rede militar de alcance mundial – separada da internet civil – que permite o compartilhamento de informações entre os militares, oficiais da inteligência [espionagem e contra-espionagem] e outras pessoas com acesso restrito. A rede é gerida pelo Departamento de Defesa, em Washington.
Desde o início da década, as embaixadas dos Estados Unidos estão conectadas à SIPRNET para compartilhar informações. Em 2002 eram 125 embaixadas, e passaram a ser 180 em 2005. Após os ataques de 11 de Setembro, a quantidade de usuários passou a crescer, pois segundo a avaliação dos órgãos de inteligência: “eles possuíam a informação suficiente para frustrar o ataque, mas não encaixaram as peças” [3]. As estimativas feitas pelos jornalistas de The Washington Post variam entre 850 e 900 mil pessoas com acesso à SIPRNET. O acesso a informação secreta por centenas de milhares de pessoas é um típico caso de quando a solução cria um novo problema.
Entre as milhares de pessoas, uma delas era o analista de inteligência Bradley Manning, um soldado de baixa patente que teve acesso aos documentos da sua base de operação no Iraque. O trabalho de Manning era garantir que outros analistas da inteligência do seu grupo tivessem acesso informacional para tudo que eles precisassem. Além da SIPRNET, o seu trabalho lhe garantiu também o acesso ao fluxo de dados da Joint Worldwide Intelligence Communications (JWICS) – rede do Departamento de Defesa para informações Top Secret [ultra-secretas].
Na SIPRNET, através de um mecanismo de busca, o analista de inteligência pôde encontrar um vasto material da inteligência. É da própria natureza desse trabalho o download de grandes quantidades de informação e, por isso, ninguém pareceu se importar com a quantidade de dados copiados pelo jovem analista. Ao longo dos meses, Manning supostamente utilizou um CD regravável com músicas da Lady Gaga para substituílas pelos arquivos classificados.
Para prevenir vazamentos semelhantes, o Pentágono ordenou que os computadores com acesso à SIPRNET não tenham dispositivos como gravador de mídias ou outros dispositivos removíveis, comopendrives. O militar que não cumprir essa ordem passará por corte marcial.
Apesar dessas medidas, o ponto crítico persiste: quanto maior o número de pessoas com acesso a uma informação, mais difícil é mantê-la sob controle. Uma verdade simples, mas que, diante da ampliação dos serviços de inteligência, torna-se um fator de grande risco. Não à toa, entre as novas medidas implementadas está a permanente avaliação comportamental dos jovens analistas de inteligência por seus superiores.
3. WikiLeaks: a censura e a rede, o ataque e a defesa
Apesar de o WikiLeaks ter sido criado no final de 2006, só recentemente o rosto de Julian Assange esteve estampado nos mais diversos jornais e revistas, sendo retratado como o “dono” do site e responsável pelos vazamentos. Segundo Assange, o projeto – até então anônimo e coordenado por um coletivo de jornalistas, a Sunshine Press – precisava de um porta-voz, uma pessoa pública para evitar que outros se identificassem enquanto membros ou autoridades do projeto.
A exposição e personalização foi direcionada enquanto estratégia de defesa. Ela encontra eco nos meios tradicionais de comunicação, pois estes sustentam que as ações políticas são sinônimos de ações de indivíduos e suas relações. O papel de figura pública do site passou a ser uma garantia para a sua própria segurança, pois qualquer ação tomada contra ele passou a ser noticiada internacionalmente. A adoção dessa estratégia resguardou a vida pessoal dos demais colaboradores, mas há que se notar as suas fragilidades: a dependência que ela tem do respaldo da chamada “opinião pública” e o seu limite em constranger a repressão estatal, no caso, dos Estados Unidos.
Por outro lado, o culto à personalidade pode representar também uma centralização do projeto, que passa a ser identificado como a vontade de Julian Assange e não mais como uma plataforma colaborativa para a disponibilização de informações classificadas. Ainda antes do Cable Gate, uma parte dos colaboradores da Alemanha decidiu se desligar do projeto e fundou seu próprio site de denúncia, o Openleaks. Segundo o fundador, o alemão Daniel Domscheit-Berg, a personalidade de Assange estava determinando as decisões da organização.
O jornalista Glenn Greenwald, do site Salon, e o cineasta Michael Moore denunciaram que existe um “grupo demandando que Julian Assange seja assassinado sem acusações, julgamento ou processo”. A republicana Sarah Palin, líder do movimento Tea Party do Partido Republicano, afirmou em seu facebookque Assange cometeu um ato de traição e deve ser caçado igual Osama bin Laden. A reação de outros políticos conservadores foi semelhante. O senador Mitch McConnel chamou Julian Assange de “terrorista high-tech”. Ironicamente, a resposta do WikiLeaks foi: “Sarah Palin diz que Julian deve ser caçado como Osama bin Laden – então ele deve estar a salvo por quase uma década”.
Há ainda alguns setores da mídia corporativa tentando desqualificar as informações vazadas. Alguns jornalistas afirmam que os documentos não refletem nada mais que “fofocas” [boatos] e colocam a diplomacia dos Estados Unidos numa situação vexatória. Há também aqueles que se somam na retórica do governo, dizendo que a revelação dos segredos pode colocar em risco a vida de pessoas inocentes. Essas acusações perdem a sua força ao longo da revelação dos casos de violação de direitos humanos, corrupção e ilegalidade.
Longe de qualquer constrangimento, a repressão dos governos, dirigida pelos Estados Unidos, ao WikiLeaks foi escancarada. Em basicamente três movimentos, tentou deter a publicação dos documentos: inviabilização da infra-estrutura do site, a prisão de Assange e o bloqueio dos recursos financeiros da organização. Esta última sendo a longo prazo a mais grave.
Após o primeiro ataque de negação de serviço feito por um cidadão norte-americano, a equipe do WikiLeaks moveu o site para o servidor da Amazon. Pressionada por membros do governo, a empresa cancelou o serviço e o site foi obrigado a migrar para os servidores do Partido Pirata da Suécia. Em entrevista para o jornal The Guardian, Julian Assange explica que “desde 2007 temos alocado nossos servidores, deliberadamente, em jurisdições em que suspeitávamos que houvesse censura à livre manifestação de pensamento, para separar o que é retórica e o que é fato. Amazon foi um desses casos.” [4]
O ápice da ação repressiva foi então a prisão de Julian Assange, na Inglaterra, no dia 7 de dezembro. Atendendo o pedido da Justiça sueca, Julian entregou-se para a polícia britânica. A acusação feita é de crimes sexuais - especificamente da prática de sexo sem preservativo - e, de acordo com o advogado, este processo já havia sido arquivado meses antes e sem nenhuma prova ou evidência nova foi reaberto por outro promotor logo após a notoriedade do Cable Gate. As informações relativas ao processo aparecem sempre de forma confusa, sem precisar exatamente de quais crimes que Julian está sendo acusado e qual o estágio do processo na justiça sueca. Em meio a essa campanha de destruição de reputação e de desinformação, a jornalista e ativista Naomi Klein pediu para que as feministas “acordassem” e afirmou que o caso de estupro está sendo usado da mesma forma que a liberdade da mulher foi usada para justificar a invasão do Afeganistão.
A conta da organização num dos sistemas de recebimento de doações via internet – o PayPal – foi bloqueada. Desta forma, as pessoas ao redor do mundo que pretendiam contribuir para este momento de maior visibilidade do site e maior necessidade não podem fazer suas doações. O banco suíço Postfinance também bloqueou o fundo em nome de Julian Assange, sob alegação de que ele havia fornecido um endereço falso. Paralelo a isso, as redes de cartões Mastercard e Visa resolveram proibir as transferências de dinheiro para o Wikileaks, apesar de permiti-las para grupos supremacistas brancos como o Ku Klux Klan [5]. Por último, no dia 17, o Bank of America anunciou que não aceitará mais nenhuma transação financeira para o site.
Dessa forma, as grandes corporações sustentaram e apoiaram a repressão do Estado contra o Wikileaks. A ação com o claro objetivo de parar o projeto provocou uma grande reação pela internet e, em particular, da comunidade hacker [6]: o site conseguiu ser espelhado em mais de mil servidores, atendendo o pedido de apoio da organização. Também em resposta, entre centenas e até milhares de usuários participaram de ataques de negação de serviço e conseguiram retirar do ar por algumas horas os sites do Postfinance, da Visa, da Mastercard, Moneybrooks e outros alvos. Apesar da intensificação da repressão, o WikiLeaks permaneceu online e continua divulgando os documentos classificados.
A Eletronic Frontier Foundation, uma organização de defesa dos direitos digitais e das liberdades civis, condenou a censura online contra o WikiLeaks. Segundo ela, os eventos recentes estão abrindo um precedente para que os governos do mundo inteiro proponham leis que limitam o direito da liberdade de expressão e, nos Estados Unidos, os políticos elaboraram uma lei [7] que pode ameaçar a liberdade de imprensa.
O processo em andamento é determinante no futuro da rede e no fluxo de informação, isto é, na sua regulação. A cultura hacker e seu famoso mote de que “a informação quer ser livre” têm promovido bandeiras estratégicas como a defesa da liberdade na rede que envolve questões como o direito autoral, compartilhamento de arquivos, a transparência, a liberdade de expressão, o anonimato e a privacidade. Além dos discursos, foram proporcionadas ferramentas (software e hardware) para enfrentar na prática a censura e o controle. Assim, a plataforma técnica oferecida pelo WikiLeaks é um acúmulo de experiências e ferramentas desenvolvidas pela rede em sua própria defesa.
Há uma longa batalha legislativa na criação jurídica para a tipificação de “cibercrimes”. A implementação dessas leis resultará na criminalização, vigilância em massa e até na censura da internet. No mundo inteiro essas leis estão sendo impulsionadas principalmente pelos representantes da indústria do direito autoral, como a RIAA e a MPAA. No Brasil, o Projeto de Lei 84/1999 da Câmara Federal e do Senado 89/2003, de autoria do Senador Eduardo Azeredo, sobre “cibercrimes” foi aprovado no Senado com apoio tanto do governo como da oposição e segue agora para votação no Congresso nacional. Recentemente, o presidente Lula apoiou publicamente o WikiLeaks e defendeu a libertação de Julian Assange. Pelo twitter, Azeredo comentou:“Só faltava essa! Pres. Lula defende hacker!”
Na última década a indústria do direito autoral tentou sucessivas ameaças para acabar com o livre compartilhamento na internet. O primeiro método foi o processo em massa dos infratores do direito autoral. No entanto, além de serem caros e demorados, esses processos não apresentaram os resultados esperados. O segundo método foi o processo para “dar exemplo”, no qual poucos usuários são processados numa quantia milionária. Agora, essa indústria passou a fazer lobby nos poderes legislativos dos países para aprovar a resposta gradual – ou three strike Law -, em que o usuário ou site pego [apanhado a] copiando ou disponibilizando arquivos com direito autoral por três vezes tem o acesso à internet suspenso. Para isso acontecer, o precedente técnico e jurídico necessário é que os provedores de internet do país registrem e identifiquem os donos dos IPs (protocolo de internet) por um período. As partes envolvidas na negociação da Lei Azeredo discutem se será de 6 meses a 3 anos o registro.
A Coréia do Sul é um exemplo da implementação da resposta gradual. No período de um ano (07/2009 - 07/2010) cerca de 65 mil processos foram feitos pelo Comitê de Direito Autoral e pelo menos 31 usuários foram desconectados [8]. Na França, a introdução da Lei HADOPI (Loi favorisant la diffusion et la protection de la création sur Internet) [9] em 2009 tem gerado discussão semelhante. E, nos Estados Unidos, após a aprovação do COICA (Combating Online Infringement and Counterfeits Act) em setembro de 2010, o governo sequestrou e redirecionou 82 domínios de sites [10].
O Senador dos Estados Unidos Joe Lieberman, responsável pela Lei Shield e empenhado nas restrições dos direitos digitais, não deixa dúvidas: “A China pode bloquear a internet, por que nós não?” [11]. No mundo inteiro, o que está sendo alvo de regulação e restrição é a Internet com o objetivo de desarticular e não tornar mais possível uma estrutura descentralizada, livre, anônima e colaborativa que se estabeleceu, como sintetizado no caso WikiLeaks.
NOTAS
[1] Um status utilizado com frequência para humilhar o prisioneiro para dizer que não está em sã consciência. O jornalista Glenn Greenwald escreveu um artigo sobre as condições da prisão e o advogado militar descreveu a rotina da prisão que Bradley Manning está submetido. Ela inclui acordar às 7h, não fazer exercícios, responder ou dar um sinal que está tudo bem a cada 5 minutos, almoçar na cela, não dormir com cobertor ou com roupas.
[6] A revista 2600 publicou um comunicado condenando os ataques de negação de serviço. Há uma certa discussão se o ataque é uma forma válida de “ciber-protesto”.
[7] A lei Shield tem como alvo o WikiLeaks, mas no Fórum de Governança da Internet (IGF, em inglês) da ONU já apareceu a mesma preocupação através do representante brasileiro. Leia mais aqui.
[11] Lieberman: China Can Shut Down The Internet, Why Can’t We? - 21/06/2010
Extraído do sítio PassaPalavra
Extraído do sítio PassaPalavra
Enviado pelo pessoal da Vila Vudu
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