Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Esqueçam o iPad; o ícone do consumo fetichizado é o avião-robô drone. Israel produz e vende aviões-robôs drones como pão quente. O México produz – para patrulhar o lado mexicano da fronteira. O Brasil quer produzir – para patrulhar as favelas do Rio. Os sauditas querem produzir. Os uzbeques querem produzir. Todos cantando: Let's do it [1]. Caindo de amores (pelo avião-robô drone).
Fora isso, abandonai toda a esperança vós que entrais[2] (pelas portas da des-percepção): o Afeganistão já está oficialmente definido como show de aquecimento, infestado de soldados, para a guerra do AfPak. O negócio real é a guerra ilegal de aviões-robôs dronescontra o Paquistão. Viva Richard Nixon. Assim como Dick, o Escamoso[3], anexou o Cambodia à guerra do Vietnã, assim também o governo de Barack Obama deu uma de Nixon p’rô lado do Paquistão. A grande coisa é que ninguém precisa de outra “descarga”[4] de WikiLeaks, para saber. Está aí, aberto, à vista de todos.
Os golpes de Dick, o Escamoso, pavimentaram a trilha que levou ao Ano Zero do Khmer Rouge (1975). O lance de dados de Obama pode estar pavimentando a trilha que levará a um Ano Zero para a irmandade pashtun. As 16 agências que são o establishment de inteligência dos EUA dizem que a aventura afegã está acabada e perdida. A CIA anda meio cabisbaixa, soturna. Mas a Casa Branca viciada em ‘surges’ – lembrança nua e crua dos relatórios da era George W Bush sobre o Iraque – insiste em que vai tudo bem (“o momentum dos Talibãs foi contido na maior parte do território”). Robert “O Supremo do Pentágono” Gates diz que Washington controla agora mais território afegão que há um ano; só se calcular em metros quadrados de shopping centers – e mesmo assim, já seria exagero.
“Momentum dos Talibãs”, só a expressão, já soa como coisa inventada. O que interessaria à Casa Branca seria esmagar (“obter significativo progresso”) a al-Qaeda, que se sabe que está acantonada não no Afeganistão mas nas áreas tribais do Paquistão. Sufocar os Talibãs paquistaneses, tirar-lhes o ar, com a CIA tocando “A cavalgada das valquírias”, como um remix orgiástico à moda Facebook de Apocalypse Now de Francis Ford Coppola, com todos aqueles tanques dos Marine dos EUA rolando pela província de Helmand, em lindo contraponto. Gosto do cheiro de Talibã incinerado, pela manhã. Sinto perfume de... reeleição.
Mas e o tal de “dano colateral”? Caras durões do tipo “macho que é macho combate em Teerã” dizem que dano colateral é coisa de viado (a New America Foundation diz que cerca de um terço dos mortos em ataques dos aviões-robô drones são civis; fontes paquistanesas dizem que a proporção é muito maior). A matança, seja como for, durará, com certeza, até o século 22.
O caso é que não é o Pentágono, mas a CIA, que faz Chover Morte do Céu[6] sobre as casas de paredes de barro de aldeias sujas e pobres, num país com o qual os EUA não estão em guerra. As coisas podem mudar – basta observar o frenesi alucinado para conseguir inventar meio legal para condenar o “terrorista” Julian Assange –, mas, por hora, não se pode dizer que a lei norte-americana admita campanhas de assassinato em massa.
A guerra da CIA e seus aviões-robôs drone é obviamente guerra secreta e ilegal. Mas pode-se dar jeito nisso, desde que o próximo presidente da Comissão de Serviços Armados da Câmara de Deputados dos EUA amplie a autorização que já existe, para a guerra contra a al-Qaeda. Quanto aos pashtuns que espionam para a CIA, são tecnicamente afegãos, não paquistaneses, de diferentes tribos; fazer guerra contra eles gerará séculos de disputas tribais, à medida que as famílias de cada morto ponham-se em campo para descobrir os assassinos e vingar a morte do parente.
Venha a retórica que vier de Washington em 2011, o jogo continuará a ser jogado segundo o único script que existe; os “pentagonistas” dos EUA visitam Islamabad/Rawalpindi para alertar os paquistaneses quanto à perene “impaciência estratégica” [7]de Washington, cada dia mais estrategicamente impaciente com o que os paquistaneses estão fazendo, ao mesmo tempo em que o establishment militar/inteligência aparece ao vivo para repetir que estão fazendo o possível, mas têm de zelar também pelos interesses do aliado Paquistão.
Para resumir: esperemos, para 2011, desfile infindável de aviões-robôs drones Predators e Reapers e barragens de mísseis disparados contra os “militantes suspeitos” de sempre no Waziristão Norte, no Khyber e por todos os cantos nas áreas tribais; e esqueçam aquela conversa de Islamabad/Rawalpindi mandar soldados seus para o Waziristão Norte para combater “al-Qaeda” ou tribos locais.
Isso significa essencialmente, que a griffe/nebula/mito conhecida como “al-Qaeda” continua livre como passarinho. Não há meio pelo qual suas poucas dúzias de jihadis invisíveis serem esmagados pela guerra aérea ilegal da CIA, nem, muito menos, por soldados de Islamabad/Rawalpindi. E ainda que fosse possível esmagá-los, as “franquias” continuariam no negócio – como já se vê na AQAP, a Al-Qaeda na Península Arábica/Iêmen.
Quem liga para “Don't Ask, Don't Tell”[9]? O mais recente de todos os sucessos no “AfPak” é “Olhar robô-drone só para héteros”. O próximo chefe do Serviço Nacional Clandestino da CIA – quer dizer, o próximo espião Top-de-linha da CIA – é John D Bennett, ninguém menos que o ex-cabeça de uma ala paramilitar da CIA infestada de aviões-robôs drones. Matéria da Associated Press diz até que dirigiu os aviões-robôs drones no Paquistão, na era Bush.
Até o vice-chefe do conselho do estado-maior general “Hoss” Cartwright, virou totalmente Olhar robô-drone só para héteros. Do ponto de vista do general, a COIN (Counterinsurgency = contra-guerrilha) já é história; a pedida do momento é “contra-terrorismo”, em guerra aérea saturada de aviões-robôs drones. Entenda a guerra dos aviões-robôs drones como o primeiro pacote de estímulos que Washington criou para a Ásia Central.
O progresso no Afeganistão super estimulado, segundo o relatório de final de ano do governo Obama, é “frágil e reversível”. Significa na prática que, para efeito de noticiário jornalístico, a Kandahar super saturada de mísseis tão cedo não será convertida em Trancoso, Bahia[10].
O roteiro do Afeganistão não vai melhorar; vai-se diluir cada vez mais na diarréia de sempre. Os afegãos continuarão a dizer e dizer e dizer e dizer que não são exatamente fãs dos Talibãs – mas muito mais odeiam Washington e a gangue do corrupto Hamid Karzai, por permitirem que seu país ocupado seja controlado por gângsteres e senhores-da-guerra.
Washington continuará a remendar sua “estratégia” fracassada de esmagar os Talibãs com máximo poder de fogo. Os Talibãs por sua vez, já afinaram sua própria estratégia de “abandonar o sul, voar para o norte”. Todas as estradas no Afeganistão levam a Kabul; não por acaso, estão todas interrompidas ou sob ataque dos Talibãs. O poder de Karzai acaba-se repentinamente na última delegacia de polícia em ruínas ao sul de Kabul, na estrada para Kandahar. É como se Kabul estivesse envolta numa bolha fantasmagórica de emoções de Titanic – na qual viajam fechados como em fraldas, mais selados-isolados-embalados do que em camisinhas, toda a troupe neocolonial de generais, diplomatas, ONGs e empresas privadas de segurança contratadas pelo governo, festejando o mais que podem antes da queda de Saigon.
Mas, de qualquer modo, logo outra “narrativa” aparecerá, dominante – o “esvaziamento” a passo de lesma da OTAN, de 2011 a 2014. Mas não significa o início do fim do jogo – acabou a guerra? Não. De fato, a história está voltando para o começo, à parte “abandonai toda a esperança vós que entrais (pelas portas da des-percepção)”. Para os aplausos tonitruantes (literalmente) de uma legião de jihadis-bomba neófitos, a Casa Branca de Obama explicitamente destacou o “continuado comprometimento da OTAN para além de 2014” .
Traço-chave desse “continuado comprometimento” é que os soldados do exército afegão e da OTAN em treinamento (suplementados por empresas privadas contratadas pelos EUA do tipo das Dyncorp/Blackwater) precisarão de nada menos que 6 bilhões de dólares por ano, todos os anos, até a consumação dos tempos, dos chamados eufemisticamente “doadores internacionais” com destaque, entre eles, para os contribuintes norte-americanos.
E é aí que o “Ano do Drone-avião-robô” mistura-se com que o grande, falecido, grande desconstrucionista Jacques Lacan apresentaria como “o indizível”: as invisíveis, perigosas relações entre a “guerra ao terror” e a “guerra por energia”, que é quando a topografia da guerra ao terror combina perfeitamente com todas as fontes de energia que são chaves para o século 21, do Oriente Médio à Ásia Central.
Isso implica um capítulo chave sobre o “Óleo-gasodutostão” – a infindável saga do óleo-gasoduto TAPI (Turcomenistão-Afeganistão- Paquistão-Índia), que sempre esteve no centro do núcleo duro do complicado casamento Washington-Kabul desde meados dos anos 1990s.
O acordo intergovernamental TAPI foi afinal assinado em meados de dezembro. Make no mistake; é Washington em carro de motor envenenado. O Banco de Desenvolvimento Asiático apoiado por Washington deve comparecer com a maior parte do pacote financeiro de 7,6 bilhões (e aumentando) de dólares. O óleo-gasoduto TAPI de dois mil quilômetros de extensão – a ser construído por um consórcio internacional – atravessará enroladíssimos 735 quilômetros do Afeganistão e 800 do Paquistão.
À parte o noticiário, não há qualquer evidência de que o TAPI “estabilizará” o Afeganistão ou contribuirá para que Índia e Paquistão passem a trocar beijos em vez de insultos. AfPak são, nesse caso, países de passagem. O maior trecho afegão será subterrãneo – como o BTC apoiado pelos EUA de Baku no Azerbaijão a Ceyhan, na Turquia. Em teoria, habitantes das aldeias locais serão pagos para fazer a vigilância dos canos. Mas nada disso assegura qualquer segurança para uma serpente de aço que atravessará o oeste do Afeganistão, rumo leste, passando por Kandahar.
Mais uma vez em teoria, o óleo-gasoduto TAPI é de fato uma Rota da Seda entre o centro e o sul da Ásia. Se o chegar algum dia a ser construído – e o “se” continua realmente enorme – com certeza marcará uma encruzilhada monstro: o “Óleo-gasodutostão” cruzará o Império das Bases dos EUA. Porque nada menos que o Pentágono e a OTAN cuidarão da segurança geral. O que significa que o Ocidente Atlanticista estará para sempre enterrado no AfPak. Não é difícil imaginar o que os Talibãs dos dois lados – para não falar dos pashtuns desatinados em geral – farão disso.
E mesmo que o TAPI seja construído, não significa que seu principal concorrente, o “Óleo-gasoduto” IPI (Irã-Paquistão-Índia) de 7,3 bilhões de dólares, codinome “oleoduto da paz”, perdeu a guerra – o que horroriza e aterroriza Washington. Os indianos disseram exatamente isso – e agora procuram empresas seguradoras gigantes, tipo Lloyds. E o Paquistão, não há dúvida, quer os dois, o TAPI e o IPI.
Sempre em teoria, o óleo-gasoduto TAPI estará concluído em 2014. Surpresa! É o exato ano (pelo menos até agora) em que os norte-americanos sairão do Afeganistão. Ninguém sairá de coisa nenhuma. Afinal, todo o imbróglio AfPak aparecerá à luz, exatamente como é: uma aposta cujo prêmio é o Óleo-gasodutostão.
Até lá, curtam o Ano do Drone. Enquanto isso, aí vão notícias novas quentes. A estratégia do Pentágono/OTAN para o AfPak para 2011 está fechada: esperar que os Talibã apareçam para a ofensiva primavera/verão, para localizá-los. Depois, atacá-los com aviões-robôs-drone até reduzi-los a cinza. Pode-se dizer que é o Olhar robô-drone só contra o mal.
Notas de tradução
[1] “Let’s do it” (1928, Cole Porter). Pode ser ouvido, cantado por Ella Fitzgerald, em 1956 e por Elza Soares e Chico Buarque (letra ótima, adaptada por Carlos Rennó) em, filminho ruim, mas gravação boa (não se deve deixar passar nenhuma boa oportunidade. O resto, só a luta ensina.)
[2] Lasciate ogne speranza, voi ch'intrate. Dante Alighieri, Divina Comédia, “Inferno”, canto 3, linha 9.
[3] No orig. “Tricky Dick”, título de canção de Country Joe McDonald, cuja letra se pode ler em . Não há dúvida de que o ‘personagem’ é Richard Nixon, nascido, como o Tricky Dick da canção, em Yorba Linda, California.
[4] No original “dump”. Foi a expressão usada pelo governo dos EUA em mensagem a todos os funcionários, antes da publicação dos telegramas diplomáticos, para que ‘se preparassem’ para o que viria. Sobre isso, há matéria no Financial Times de 26/11/2010, em . Outra tradução possível é “derrama”.
[5] No orig. “Faster CIA, kill, kill”. A expressão parece fazer referência a um filme de 1965. Sobre o filme, há informação em Faster, Pussycat! Kill! Kill!.
[6] No orig. “Death for Above”. É uma banda de rock super pesado, que em 1979 lançou disco com esse título. Ouça a faixa “Dead Womb”.
[7] No orig. “strategic impatience”. É expressão usada pelo gen. Mike Mullen. Há matéria sobre isso no New York Times de 14/12/2010.
[8] No orig. “Drone Eye for the Straight Guy”. Trocadilho intraduzível com “Queer Eye for the Straight Guy” [aprox. “Olhar gay a serviço dos não gays”], título de um reality show exibido nos EUA entre 2003 e 2007 e no Brasil até hoje.
[9] Lei norte-americana que autoriza a expulsão das carreiras militares, de homossexuais e transexuais (se "descobertos"). Pode-se ler o texto da lei e boa crítica em “The U.S. Military's Discriminatory Policy: "Don't Ask, Don't Tell".
[10] No orig. “Orange county”. Orange County é título de uma comédia sobre adolescentes surfistas, de 2002, que, no Brasil, recebeu o nome de Correndo atrás do diploma. A tradução que se arriscou aqui é uma, arriscada dentre outras possíveis (e provavelmente melhores).
[11] Verso de Jumping Jack Flash, dos Rolling Stones (1968): “I was born in a crossfire hurricane. And I howled at my ma in the driven' rain (...) but it's all right. I'm jumping Jack Flash. It's a gas gas gas...”
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