Postado em: 15-12-2010 | Por: Leila Brito |
NOS DOMÍNIOS DO MACHISMO
LEILA BRITO
Uma mulher não é um falo senão na medida em que está aprisionada ao homem; ela assume essa identidade na proporção da perversão masculina. Nessa medida, apenas as insígnias do “feminino” recobrem uma identificação ao falo que é, em primeiro lugar, o sinal do reconhecimento evanescente do desejo (POMMIER).
O que é machismo
O termo “machismo” popularizou-se como conceito na literatura social dos anos de 1950 e 1960, pelas pesquisas do antropólogo e sociólogo portorriquenho Rafael Luis Ramírez Vergara, sendo utilizado para definir um complexo de atitudes, um agrupamento de características ou ainda uma síndrome comportamental (NOLASCO, 1995). Segundo Fuller (1998):
El machismo ha sido definido como la obsesión del varón con el predominio y la virilidad. Ello se expressa en posesividad respecto a la propia mujer, especialmente en lo que respecta a los avances de otros varones y en actos de agresión y jactancia con relación a otros hombres (Stevens, 1977). Estructuralmente está inserto en un sistema patrilineal de parentesco y se apoya en un sistema legal que apoya el poder masculino dentro del hogar y en la división sexual del trabajo que restringe a la mujer a la esfera privada (FULLER, 1998, p. 258).
No Brasil contemporâneo, a figura do machão, advinda da tradição patriarcal, é uma importante referência masculina. Sua relevância na definição popular de masculinidade se iguala a do pai ou marido. Segundo Parker (1991, p. 75), o machão incorpora os valores tradicionalmente associados com o papel de macho na cultura brasileira – força e poder, violência e agressão, virilidade e potência sexual.
Lancaster (1992 apud Gutmann, 1998, p. 239) explica a subsistência do machismo:
el machismo subsiste porque constituye no sólo una forma de ‘conciencia’ e ‘ideologia’ en el sentido clásico del concepto, sino un campo de relaciones productivas.
Para Fuller (1998, p. 265):
Sin embargo, esto no ha quedado fijado en el tiempo. La representación de ‘machismo’ en las sociedades latinoamericanas ha retomado el concepto de ‘machismo’ y la figura del ‘macho’ para expresar cambios en curso en las relaciones entre los gêneros en estas sociedades.
Neste contexto, tem-se um sistema mais elaborado de definições sexuais, onde as noções culturalmente definidas de gênero biológico e de papel social são totalmente manipuladas e combinadas numa variedade de formas, construindo as mais diversas e ambíguas imagens da masculinidade e da feminilidade, criando, consequentemente, visões compostas do potencial do macho e da fêmea. Decorre, desse processo, um ideário de homem como um ser forte, guerreiro e poderoso, que se impõe em diferentes idades e classes sociais.
Sendo assim, conforme Nolasco (1993, p. 91), seria errôneo pensar o machismo como ideologia exclusiva dos homens, isto porque ele está incorporado tanto à visão de mundo dos homens como das mulheres, além de representar um elemento de natureza política de forte impacto no relacionamento afetivo-sexual, transcendendo os próprios indivíduos. Por isso, segundo o autor, tanto a identificação das causas geradoras e promotoras deste tipo de ideologia de dominação como o diálogo ficam impossibilitados, quando remetidos apenas ao gênero masculino.
Daí, a importância do reconhecimento pela mulher da sua contribuição na preservação do machismo, ao endossar com atitudes machistas, no plano de suas relações sociais, pessoais e de trabalho, a superioridade de gênero do sexo oposto, prestando-se ao papel de mero objeto do homem, independente da forma e do contexto da submissão que a deixa vulnerável à vitimação.
O machismo moderno
A concepção do masculino como sujeito da sexualidade e o feminino como seu objeto é um valor de longa duração da cultura ocidental, assevera Minayo (2005, p. 23):
Na visão arraigada no patriarcalismo, o masculino é ritualizado como o lugar da ação, da decisão, da chefia da rede de relações familiares e da paternidade como sinônimo de provimento material: é o ‘impensado’ e o ‘naturalizado’ dos valores tradicionais de gênero. Da mesma forma e em conseqüência, o masculino é investido significativamente com a posição social (naturalizada) de agente do poder da violência, havendo, historicamente, uma relação direta entre as concepções vigentes de masculinidade e o exercício do domínio de pessoas, das guerras e das conquistas (MINAYO, 2005, p. 23-24).
Contrapondo os valores de longa duração (estruturados na cultura ocidental patriarcal) com os valores da alta modernidade (advindos de mudanças impostas pela atual conjuntura econômico-social), numa pesquisa de caráter antropológico, Machado (2001) focaliza as relações entre as formas de viver a masculinidade e a cultura da violência, a partir de três crimes comuns na sociedade brasileira: o estupro, o espancamento de mulheres e os assassinatos e assaltos, onde se destacam os caracteres da cultura machista.
No ato do estupro, segundo Minayo (2005, p. 24), realiza-se superlativamente a dissociação entre o sujeito e o objeto da sexualidade, entre o apoderamento sexual do outro e a anulação da vontade da vítima. Quanto aos estupradores:
[...] apesar de confessarem que forçaram a relação sexual (o que teria sido feito como ‘uma fraqueza’ ou ‘num momento de fraqueza’), no fundo acreditavam que a mulher queria ser violentada. Essa crença, de um lado insinua pelo menos duas coisas: 1) ‘macho mesmo’, do ponto de vista sexual, deixa-se levar pela fraqueza, pois seus impulsos são tão fortes que ele não consegue controlá-los, por isso, ‘naturalmente’ precisa ser compreendido e perdoado; 2) o ‘não’ da mulher nunca deve ser considerado verdadeiro, e sim parte do ritual de sedução. Portanto, a plenitude da macheza não admite que a mulher (em sendo objeto) possa dizer ‘não’(MACHADO, 2001 apud MINAYO, 2005, p. 24).
No caso do espancamento de mulheres, ocorrido no seio das relações amorosas e afetivas (esposo, companheiro ou pai), segundo Machado (2001):
[...] a prática cultural do ‘normal masculino’ como a posição do ‘macho social’ apresenta suas atitudes e relações violentas como ‘atos corretivos’. Por isso, em geral, quando acusados, os agressores reconhecem apenas ‘seus excessos’, e não sua função disciplinar da qual se investem em nome de um poder e de uma lei que julgam encarnar. Geralmente quando narram seus comportamentos violentos, os maridos (ou parceiros) costumam dizer que primeiro buscam ‘avisar’, ‘conversar’ e depois, se não são obedecidos, ‘batem’. Consideram, portanto, que as atitudes e ações de suas mulheres (e por extensão, de suas filhas) estão sempre distantes do comportamento ideal do qual se julgam guardiões e precisam garantir e controlar.
No mundo da criminalidade, em especial dos assassinatos e assaltos, segundo Minayo (2005, p. 24), tem-se a expansão da ação desse “macho” doméstico para além do espaço familiar. Isto porque, segundo a autora, a idéia fundante de macho violento se centra na mesma crença arraigada do masculino como o espaço da iniciativa, do poder e da imposição da vontade, pela associação dos dois planos: sexualidade e sociabilidade. A moral do macho violento é a da virilidade que se apodera do corpo, dos desejos, dos projetos, dos negócios e da vida do outro, gerando novos tipos de violência.
A partir de depoimentos de jovens infratores, Machado (2001) buscou entender os efeitos da pós-modernidade sobre a construção das categorias de masculinidade em associação com novas modalidades de violência. Ficou evidenciado, no seu entendimento:
[...] a convivência de várias lógicas temporais fortemente presentes na sociabilidade violenta dos entrevistados: (a) a permanência do machismo da ‘honra’; (b) o crescimento da consciência de direito, vivido no exagero do ‘individualismo das singularidades’, pois expressa no culto da hiperliberdade individual ‘per si’; (c) a experiência da compressão do tempo-espaço pela valorização do tempo curto e rápido e; (d) o culto do imediatismo nas vivências de prazer e sucesso.
A conclusão de Minayo (2005, p. 25) é que o machismo pós-moderno é um fenômeno novo que vive da velha cultura patriarcal e a reafirma nos ‘vícios’ e ‘compulsões’ da sociedade pós-tradicional, como lembra Giddens (1991; 1995). E é possível complementar tal inferição, com a reafirmação inovadora do machismo no espaço da Internet.
O machismo virtual
Houve um tempo, muito embora recente, pois década de 1990, que o namoro virtual ainda não havia sido seguramente contemplado como uma possibilidade de encontro da “alma gêmea”, de relacionamento sério. Como informa Paulo Querido (1998) em Homo Conexus, publicado originalmente em 1996, ele se resumia no amor em tê-xis-tê, quando milhares de cibernautas trocavam mensagens pela net à procura de parceiros, para todas as posições e combinações sexuais.
Era então que, nos chat-rooms, mais frequentado por homens, já se configurava a presença do machismo, pelas trocas de personalidade:
Entro com o meu nome masculino e, na ‘sala’, só por cortesia me dirigem a palavra. Saio e volto a entrar como ‘Nicole’ e cinco minutos depois tenho o primeiro convite. Em francês, ao que parece a língua do amor para a eternidade.
E o autor explica:
o machismo será uma constante enquanto os chat-rooms forem frequentados maioritariamente por ‘homens’. ‘Homens’ entre aspas significa uma entidade incorpórea, virtual, cuja cultura de origem é macha. No ciberespaço não há corpo, logo não há género sexual (QUERIDO, 1998, p. 139).
Como se vê, a referência à presença do machismo no espaço cibernético é justificada pelo autor como consequência de uma ausência do corpo físico geradora de uma entidade incorpórea derivada da ausência de gênero, mas que, pela predominância da presença masculina, é macha por origem cultural. Nota-se, na incoerência ressaltada por Querido (1998), que a presença das mulheres nos chat-rooms é desconsiderada, até mesmo daquelas de identidade virtual criada pelos homens (mulheres não na essência, mas na sensação gerada pelo sexo fictício), o que desmerece a representatividade feminina no referido fenômeno cibernético. Tem-se, pois, que o machismo rege as entidades incorpóreas representadas, no plano real, por homens e mulheres, ou seja, o valor da mulher é negado pelo homem também no plano virtual cibernético.
No capítulo intitulado: Mentiras? O amor na Internet é então um campo de mentiras?, Querido (1998) responde que sim, e lembra que:
a sexualidade, em si mesma, sempre foi um campo de mentiras. Nada de novo, portanto. O que é novo?,
pergunta e responde:
Não certamente as mensagens existentes nos muitos locais de convívio. A maioria delas é igualzinha à dos anúncios de alguns tablóides e destina-se ao mesmo tipo de troca de favores [entre os sexos]. E explica: o que é novo é o facto de outros milhares de pessoas procurarem pela Internet um companheiro para assunto sério. Protegidas pelo anonimato inicial, deixam os complexos à entrada do teclado (QUERIDO, 1998, p. 139).
Constata-se nessa observação do autor que, nessa fase dos chat-rooms, verificou-se a abertura do espaço cibernético, pelos próprios internautas, para a busca e o encontro do “par perfeito”, ou seja, para um conhecimento amoroso de natureza consistente visando à união conjugal, alterando, assim, o significado original de relacionamento voltado apenas para o sexo, pois revestindo-o de seriedade, sentido este que, na sequência, foi expandido nos sites de relacionamento e nas comunidades sociais. Tal evolução tornou a virtualidade cibernética ainda mais vulnerável à realidade, já que desejosamente provisória.
Todavia, em contrapartida, a afirmativa do autor de que a sexualidade sempre foi um campo de mentiras (numa referência à problemática cultural) e sua inferição anterior de que as entidades incorpóreas produzidas no mundo virtual são todas do sexo masculino (em outra referência à mesma problemática cultural) explicam e justificam o machismo no campo cibernético, banalizando os abusos, de toda ordem, cometidos contra as mulheres, muitos deles causadores de danos morais somatizados em enfermidades psicológicas e físicas.
Neste sentido, há que se esclarecer que tais abusos masculinos, muitos deles originados em mentiras sobre o estado civil ou situação amorosa, causam danos morais não apenas às namoradas virtuais bem intencionadas, mas, também, às namoradas, noivas ou esposas reais, especialmente quando há prática de sexo virtual, o que, no Brasil, caracteriza “infidelidade” em caso de pessoa casada, segundo reza o Art. 1.566 do Código Civil de 2002 (em seu inciso I – que determina “fidelidade recíproca”, e inciso V – que determina “respeito e consideração mútuos”), e sentenças condenatórias de cônjuges infratores (como o acórdão do Juiz Jansen Fialho de Almeida, da 2ª Vara Cível de Brasília – Proc. nº 2005.01.1.118170-3 – com informações do TJ-DFT) que compõem a específica jurisprudência pátria.
Conclui-se, pois, que o machismo virtual é apenas uma modalidade do machismo real, mostrando-se mais confortável aos homens por, aparentemente, não deixar, na realidade de suas vidas pessoais, rastros das traições praticadas contra “suas” mulheres (a real e as virtuais) na tela do computador, como se fosse um modo mais seguro de traição amorosa e/ou sexual. Mas é um engano pensar que os riscos são mínimos, uma vez que a internet é um espaço de circulação livre de informações, onde qualquer um pode exercer livremente seus dotes investigativos. E como é fácil deixar pistas!…
Referências:
FULLER, Norma. Reflexiones sobre el machismo en América Latina. In: VALDÉS, Teresa; OLAVARRÍA, Jose. (Org.) Masculinidades y equidad de género en América Latina. Santiago: FLACSO, 1998, p. 258-266.
GUTMANN, Matthew C. El machismo. In: Teresa Valdés y José Olavarría (Org.). Masculinidades y equidad de género en América Latina. Santiago: FLACSO-Chile, 1998, p. 238-257.
MACHADO, L. Z. Masculinidades e violências: gênero e mal-estar na sociedade contemporânea. UNB, Brasília, 2001. (Série Antropológica. Mimeo)
MINAYO, Maria Cecília de Souza. Laços perigosos entre machismo e violência. Ciência e Saúde Coletiva, n. 10, v. 1, p. 18-34, 2005. Acesso em: 15 dez. 2010.
NOLASCO, Sócrates. A desconstrução do masculino: uma contribuição crítica à análise de gênero. In: NOLASCO, Sócrates (Org.). A desconstrução do masculino. Rio de Janeiro: Rocco, 1995, p. 15-29.
PARKER, G. Richard. Corpos, prazeres e paixões – a cultura sexual no Brasil contemporâneo. 2. ed. Tradução de Maria Therezinha M. Cavallari. São Paulo: Best Seller, 1991.
QUERIDO, Paulo. Homo conexus. Lisboa: Edições Centro Atlântico, 1998. 176 p.
Ilustração:
Surrupiada do Blog do Carmadélio
Escrito e distrbuído por Leila Brito no seu Blog Chá.com Letras
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