14/12/2010, *M K Bhadrakumar, Asia Times Online
Traduzido pelo Pessoal da Vila Vudu
Pouca gente sabe que a frase-assinatura do ex-presidente Ronald Reagan dos EUA – “confie, mas verifique” [ing. “trust, but verify”] é, de fato, tradução de um provérbio russo – doveryai, no proveryai. Duas décadas de mundo pós-Guerra Fria, e Moscou reaparece para reivindicar a frase, contraditória, do repertório dos EUA, com vistas a aplicá-la ao “desligar-reiniciar” [ing. “reset”] de laços com os EUA.
A derrota “surra” eleitoral acachapante que o presidente Obama dos EUA sofreu nas eleições parlamentares de 2010; as revelações publicadas por WikiLeaks sobre os planos da OTAN para defender-se contra “possível agressão russa”; o anúncio da decisão dos EUA de instalar um esquadrão aéreo na Base Aérea de Lask na Polônia; o discurso beligerante do senador John McCain, semana passada, que pôs em questão toda a filosofia em que se baseia o “reset” das relações com a Rússia – tudo isso gerou um clima de inquietação em Moscou.
Não surpreendentemente, a mensagem que vem da reunião de cúpula da Organização do Tratado de Segurança Coletiva [Collective Security Treaty Organization (OTSC)] que aconteceu no sábado em Moscou é que Moscou deseja reforçar sua própria aliança de defesa, para que sirva como “elemento chave para garantir a segurança do espaço pós-soviético”; e dar mais destaque à imagem da OTSC no plano global. Compõem a OTSC: Armênia, Belarus, Cazaquistão, Quirquistão, Rússia, Tadjiquistão e Uzbequistão.
As eleições de meio de mandato nos EUA levaram a Rússia, como muitos outros países, a conjecturar sobre o que haveria de temerário em investir muitas esperanças investir na capacidade de Obama levar a bom termo seu “reset”. O discurso de McCain na Escola John Hopkins de Estudos Internacionais Avançados, na 6ª.-feira, sinaliza que, muito provavelmente, o “reset” enfrentará dura oposição do Congresso dominado pelos Republicanos.
McCain questionou a necessidade de “reset” nas relações com a Rússia, em momento em que “a Rússia mostra capacidade cada dia menor para ser grande potência parceira, global, dos EUA”; quando os interesses de russos e norte-americanos divergem cada dia mais amplamente; quando norte-americanos e russos não têm valores compartilhados; quando o sistema político russo é “pouco confiável e predatório”, comandado por um “sindicato de quase-criminosos” que “roubam dos, mentem aos e assaltam os próprios cidadãos, protegidos por virtual imunidade”.
Citando os desentendimentos, cada dia mais visíveis, com a Rússia sobre a questão dos mísseis de defesa na Europa; a grande superioridade da Rússia quanto a armas nucleares táticas; e as abordagens diferentes na questão dos mercados de energia, McCain conclamou o governo Obama a ser “mais assertivo na defesa dos interesses e valores dos EUA” e a condicionar a admissão da Rússia na Organização Mundial do Comércio ao retorno à legalidade.
O mal-estar que se viu mês passado em Lisboa, na reunião da OTAN, absolutamente não se dissipou. E, simultaneamente, o material publicado por WikiLeaks obriga a por um ponto de interrogação e suspeita na sinceridade da OTAN em qualquer projeto de “reset” com a Rússia. Segundo os telegramas diplomáticos dos EUA, a OTAN fez planos em janeiro para defender os Estados do Báltico contra uma possível agressão militar russa; e a secretária de Estado Hillary Clinton desejava que Moscou não fosse informada daqueles planos.
Moscou diz que esses planos foram aprovados no encontro de Lisboa, apesar de a aliança ter declarado que buscava “verdadeira parceria estratégica” com a Rússia, baseada em interesses comuns de segurança e na necessidade de enfrentar “desafios comuns, identificados conjuntamente”.
Moscou está incomodada. O ministro das Relações Exteriores Sergei Lavrov disse que “com uma mão, a OTAN negocia conosco documentos importantes que visam a uma parceria; e, com a outra mão, toma medidas para defenderem-se de nós (...). As perguntas estão na mesa e desejamos ouvir respostas. Presumo que tenhamos pleno direito a respostas.”
Assim também, depois de conversações em Washington na 4ª-feira entre Obama e o presidente da Polônia Bronislaw Komorowski, os dois países anunciaram ampliação dos laços de defesa, no espírito da Declaração de Cooperação Estratégica de 2008 entre EUA e Polônia, que inclui cooperação entre as duas forças aéreas e o estabelecimento de um destacamento aéreo na Polônia.
O ministro russo das Relações Exteriores reagiu, ligando a decisão EUA-Polônia às revelações publicadas por WikiLeaks e à instalação, em 2009, de sistemas de defesa aérea “Patriot” na Polônia, “cujo real objetivo também levanta questões”. Por ironia, Komorowski hospedara Medvedev em Varsóvia pouco antes de partir para Washington. Foi a primeira visita de líder russo à Polônia em dez anos, saudada na imprensa ocidental como reviravolta histórica na segurança europeia.
Moscou disse: “Parece que estamos vendo um velho reflexo da OTAN disparado para acumular poder em detrimento da segurança de outros países – tanto mais estranho, se se sabe que acontece depois do resultado positivo da reunião de cúpula do conselho Rússia-OTAN e das declarações da aliança de que a Rússia não era considerada inimiga. (...) Nós [a Rússia] seremos forçados a considerar os planos de EUA e Polônia, quando implementarmos nossos próprios programas para as forças armadas e no trabalho com nossos aliados”.
Assim, a reunião da OTSC em Moscou no sábado aconteceu sobre um complicado pano-de-fundo político. Originalmente, a agenda deveria focar-se em melhorar os mecanismos de resposta da aliança “para aumentar o potencial da OTSC para responder a ameaças e desafios de segurança”.
Em versão simplificada, a OTSC fora virtualmente impedida pelo Uzbequistão de intervir na crise no Quirquistão em junho, e uma reunião informal da aliança em Yerevan em agosto decidira que era urgente introduzir mudanças nos estatutos da OTSC “para aumentar a eficiência (...) no campo das respostas de emergência”. Interessante que Moscou tenha conseguido persuadir Tashkent a prosseguir na revisão dos estatutos da OTSC e que o presidente uzbeque tenha participado da reunião no sábado.
A reunião endossou a declaração de cooperação na arena internacional. Moscou está claramente interessada em ampliar o papel da OTSC no plano internacional, como meio para contrabalançar a autodefinição da OTAN em Lisboa como única organização global de segurança. Também ficaram decididas a formação de uma força de defesa e manutenção da paz; e o início de operações “fora-de-área”, semelhantes às que a OTAN realiza atualmente no Afeganistão.
Os países membros da OTSC manifestaram disposição não só para assumir missões de manutenção da paz, mas, também, para “designar, sob certas condições, essas forças coletivas de manutenção da paz, para operações que estão sendo conduzidas por decisão do Conselho de Segurança da ONU”. A cúpula de Moscou deu ênfase à “coordenação de política externa” entre todos os países membros da OTSC, similar ao sistema da OTAN.
Evidentemente, a OTSC considerou, nessas decisões, os resultados da Cúpula da OTAN em Lisboa. A participação do Uzbequistão na reunião do sábado reforça o poder de Moscou. Há visível esfriamento nas relações entre o Uzbequistão e os EUA. Clinton, durante visita a Tashkent dia 2/12, repreendeu publicamente o governo uzbeque. Disse que o Uzbequistão deve “traduzir palavras em ações”, para melhorar a situação dos direitos humanos.
Falando a um grupo de dirigentes de ONGs em Tashkent, Clinton disse “é indispensável que o presidente [Karimov] mostre seu compromisso mediante vários passos, para assegurar que os direitos humanos e as liberdades fundamentais sejam realmente protegidos nesse país.” Clinton revelou que discutiu com Karimov a questão da limitação à liberdade de culto, da tortura e do trabalho infantil no Uzbequistão. “Levantamos essas questões (...) e continuaremos a melhorar o quadro dos direitos humanos no Uzbequistão, parte integrante da expansão de nossas relações bilaterais.”
Washington tem motivos para estar insatisfeita com Tashkent. Karimov uniu-se à Rússia para sufocar o movimento dos EUA para impor a organização de Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) como o fornecedor de segurança na Ásia Central. Mais importante que isso, Tashkent passou a criticar abertamente a estratégia de guerra no Afeganistão.
Na reunião da OSCE em Astana dia 1/12 (à qual Karimov não assistiu), o ministro das Relações Exteriores do Uzbequistão Vladimir Norov protestou contra a OSCE e suas estruturas, que “fracassaram ao não desempenhar papel positivo na prevenção e neutralização dos acontecimentos sangrentos” no Quirquistão em junho. Foi reação ao trabalho de Washington, que tentava impor a OSCE no Quirguistão, como substituta da OTSC na região.
Norov fez críticas ainda mais diretas à estratégia de Obama, de avançada (“surge”) no Afeganistão. “Torna-se cada vez mais claro que não há solução militar para o problema afegão e que a estratégia de ocupação adotada pelas forças da coalizão não estão chegando aos resultados esperados.”
Norov reiterou a proposta de Tashkent para buscarem-se soluções alternativas para um acordo de paz no Afeganistão, mediante conversas multilaterais sob os auspícios da ONU. Disse: “O contexto da iniciativa uzbeque baseia-se no reconhecimento de que os assuntos internos do Afeganistão devem ser resolvidos pelo povo afegão, com a assistência de países cujos interesses de segurança incluam necessariamente o fim da guerra e a estabilização do Afeganistão.” Destacou que as conversações devem incluir “todos os principais lados oponentes”.
Em resumo, o que emerge da reunião de cúpula da OTSC é o seguinte.
Primeiro, há suspeitas em Moscou, ainda não enunciadas, quanto às reais intenções da OTAN. A apreensão traduz-se, nesse caso, numa renovada determinação de constituir a OTSC como organização rival, para desafiar os planos da OTAN de projetar-se, ela mesma, no espaço pós-soviético, autoproclamando-se a única organização existente de segurança global.
Segundo, os países da Ásia Central estão gravemente preocupados com o Afeganistão, cuja situação degrada-se rapidamente, e com o fracasso da estratégia de guerra dos EUA. Aqueles países voltam-se na direção de Moscou, como avalista da segurança regional. Tudo isso se traduziu na prontidão com que se convocaram as forças de rápido deslocamento da OTSC e puseram-se em andamento os processos de tomada de decisão dentro da própria aliança para enfrentar emergências e situações de crise.
Terceiro, as intenções dos EUA no Afeganistão pouco têm de transparentes e não se descarta a possibilidade de presença militar americana sem prazo para acabar. O quadro continua nebuloso quanto à exata realidade em campo, sobretudo na fronteira entre Afeganistão e Tadjiquistão. De fato, a inteligência dos EUA manteve contatos secretos com militantes da Ásia Central que operam fora do Afeganistão e há vasta desconfiança nos países da Ásia Central quanto aos projetos dos EUA para implantar a democracia na Região.
Quarto, a reunião de Moscou dedicou muita atenção às atividades da OTSC nos campos da aplicação da lei, da segurança nas fronteiras e das políticas militares. A disposição para e o interesse da OTSC em garantir para ela mesma um papel no Afeganistão no pós-2014 é auto-evidente. O presidente Hamid Karzai do Afeganistão estará em Moscou na próxima semana. A OTSC também se movimenta na direção de criar vínculos com o Paquistão com vistas ao combate ao tráfico de drogas.
Por fim, a reunião de Moscou discutiu meios para ampliar o papel da política exterior da OTSC. Discutiram-se as tentativas, dos EUA, de acentuar as diferenças internas na Ásia Central e fazer o papel de ‘sapador diplomático’, para boicotar todos os processos de integração na região liderados por Moscou. É indispensável que os países membros da OTSC coordenem suas políticas exteriores, se aspiram a assumir operações de manutenção da paz em regiões globais em conflito. Até aqui, a OTSC está reproduzindo a cultura da OTAN.
Em suma, a Rússia confia na necessidade de um “desligar-reiniciar” nos laços com a OTAN, mas está sob a compulsão de “verificar” até que ponto a OTAN seria confiável. Nas palavras de Lavrov, as tendências da OTAN em relação à Rússia geram “dúvidas sérias”. Moscou decidiu manter a OTSC como contra-aliança efetiva – para o caso de a escola de pensamento de McCain vir a ganhar espaço em Washington.
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