Publicado por Urariano Motta * em 28/8/2012
Enviado
pelo autor
Extraído
do romance Os Corações Futuristas, Editora Bagaço,
1999
A pequena ascensão
para o cargo de escriturário, que tornou possível a compra de uma bela camisa,
não se fez sem grandes embaraços. O primeiro deles foi manter o emprego. Carlos
achava, nos primeiros dias de escritório, que dele seria exigido somente
trabalho. Sem medir esforços, afastando de si qualquer reflexão de como era
desproporcional o seu talento para o que dele se esperava, atirou-se com fúria à
máquina. Para quê?
– Seu Carlos –
disse-lhe a figura única de chefe e patrão, tendo às mãos uma correspondência
recém-batida. – Seu Carlos, isso aqui tá muito feio: é uma cagada
só.
– Pois não… – ia
dizer “chefe”, mas se conteve, para não deixar impressão de servil – …sim, o
senhor quer que eu mude o modelo?
– Que modelo? Eu tou
falando disso – e abanou o papel –, o senhor não consegue cagar mais bonito?
Olhe o pedação de branco que sobrou na carta.
– Ah, é a estética.
Eu bato outra.
– Se for igual não
presta. Só me mostre se prestar. E isso é pra ontem, ouviu? Pra
ontem.
O chefe, apesar de
baixo, ganhava altura de lhe puxar as orelhas. Carlos recomeçava, querendo ser
rápido. O diabo eram os tipos da máquina. Eles se abraçavam, grudavam–se,
agarrando-se no ar sem atingir a impressão na fita. Carlos respirava fundo e
procurava reproduzir, no que se lembrava, de um dos Cem Modelos de Cartas
Comerciais. As palavras, unidas numa frente contra qualquer inteligência,
vinham-lhe cheias, aglomeradas de letras. Não era à-toa que elas, as letras, se
grudavam promíscuas nos tipos da máquina, no ar, e no ar do que nada
expressavam: “prezado senhor, vossa senhoria, nesta, conceituada firma,
protestos de consideração, atenciosamente”. E isso era o mesmo que “prxsnh,
awtyz rtw”. Então Carlos rasgava a folha e rebatia-a. Isso não era o difícil.
Difícil era organizar a margem direita, e, pior do que isso, distribuir a
mancha, a nódoa do modelo na folha em branco. Daí a merda que o chefe e patrão
Romualdo lhe via.
Para
azar de Carlos, Romualdo era o que se podia chamar de um self-made-man. Ou seja, um produto do
laboratório da selva, uma síntese de falta de escrúpulos, sorte e obsessão por
crescimento na sociedade. Como todo homem que “veio de baixo”, e não vem ao caso
aqui zombar de sua crença de que chegou “em cima”, como todo homem que ascendeu
sem títulos universitários ou “perda de tempo com o rabo sentado no estudo”, ele
odiava os intelectuais, ainda que não os chamasse por esse nome. Reunia-os todos
num saco, sob a denominação genérica de “cambada de doutores”.
Os
seus escriturários, coitados, não passavam todos, sem exceção, de puxa-sacos dos
seus escrotos, aspirantes que eram, com seus conhecimentos de bosta, a um futuro
de doutores de merda.
Quando
lhes perguntava, na entrevista, a esses passa-fomes de camisa engomada e enfiada
no cinto, se estudavam, e lhe respondiam que sim, ele retornava, com malícia e
propósito: para quê você estuda? E se lhe devolviam, vou fazer vestibular para
direito, ou para administração, ou para contabilidade, coitados, ele os
expulsava lisos e com fome para o olho da rua.
Ah,
não lhe viessem fazer sombra. “Querem ser burros de canudo às minhas custas.
Puta que pariu”, dizia à massa escura de operários da oficina. Mas se lhe
respondiam, e este foi o caso e acaso de Carlos, quando lhe respondiam com voz
magoada, pesarosa, e olhos do Cristo na cruz fitando o céu, “pai, por que me
abandonaste?”, quando lhe respondiam, como Carlos, “já estudei. Não posso mais
continuar meus estudos”, ah, para estes ele decretava: “Muito bem. Eu preciso de
meio-burros. Pode começar”. E isso vinha numa entonação, que só mais tarde
descobririam: “Tirem a roupa. Vou marcá-los. Eu lhes dou o privilégio de
experimentar o meu chicote”. Porque Romualdo era um homem prático. Sem entender
uma só Lei de Faraday, e virando o traseiro para isso, gabava-se de construir
caixas para subestações elétricas cujos desenhos os doutores apenas assinavam.
“Só têm teoria. Não sabem de nada”.
Foi
esse homem que Carlos começou a entender, à custa de muitos e desaforados e
insultuosos esporros. À medida que os recebia, e calava, e com esse silêncio via
a fera tomar atitudes que se assemelhavam a afabilidade, foi compreendendo que
só o trabalho, e a fúria no bater à máquina, e os modelos de correspondência na
memória, e a hora a mais, além do expediente, e o chegar mais cedo, não lhe
asseguravam o emprego.
Era
preciso mais. Era preciso ouvi-lo, com um ar de aprendiz, ainda que tal disfarce
muito lhe custasse.
O
problema não era tanto, e era também, mas não era o principal, o problema não
era bem dobrar a cerviz. “Há necessidade de um embate de surdos? Quantas vezes
ouvimos o que não concordamos? E como é que vou responder a quem me paga o
salário? Só se fosse louco”, Carlos se dizia, repetia-se, ainda que pílulas
amargas Romualdo lhe empurrasse goela abaixo. Esse não era bem o problema. O
diabo era a figura do patrão – repugnante. Pois Romualdo não passava de um
sujeitinho a quem em outras circunstâncias
Carlos não sopraria um cumprimento, sequer um gesto. Do alto
dos ombros potencialmente hercúleos Carlos não o veria. Passou então, como
defesa, a ouvi-lo balançando-lhe o queixo, enquanto por dentro ria-se dele,
comentava-o. “Vá, eletricista, vá, analfabeto, fale. Mostre-se puro e total na
sua brutalidade”.
–
Me diga uma coisa, – o chefe lhe dizia, ao fim do expediente, enquanto Carlos
fingia não ver que suas 8 horas já estavam findas. – Me diga uma coisa, você
come carne?
–
Sim, como. Assim… O senhor conhece algum modo novo de se comer
carne?
–
Eu não como.
–
Ah, entendo. O senhor está doente?
–
Eu? Quantos anos você tem?
–
Vinte e um.
–
Pois eu tenho quarenta e cinco. Vamos ver quem tem mais
saúde?
E
antes que o chefe o chamasse para uma quebra-de-braço, e ele se visse convocado
a perder, Carlos respondia, rápido:
–
De maneira nenhuma, acredito. Então o senhor não come carne… é
impressionante!
–
Me diga uma coisa: o boi come carne?
–
Não, o boi não come carne.
–
Aí está. Veja a saúde do boi. O boi não come carne.
Entendeu?
–
É interessante. Eu nunca havia observado que o capim … não, eu nunca havia
observado a saúde por esse lado.
–
Então … veja a força do boi. – E depois de uma pausa: – Nenhum doutor ainda lhe
tinha dito isso, hem?
Carlos
assentia. “E eu sou louco?” Estava começando a ganhar a sua
camisa.
Carlos
não percebia ainda, como uma lei geral, que no trabalho não se vende só o
esforço físico. Ele não percebia que assim como existem na terra as categorias
de metalúrgicos, industriais, comerciários, bancários, banqueiros, no inferno ou
no céu também existem as categorias de almas de banqueiros, metalúrgicos,
comerciários e industriais.
Ele
julgava, como uma lei geral, que no domínio de um ofício era possível manter a
cabeça livre do espírito da gente desse ofício. Seria como se nos dedos que
batiam aquelas asneiras protocolares, no corpo que se assentava nove horas
batendo aquilo, nos ouvidos que digeriam os sons da oficina e o malho da voz do
chefe, seria como se em meio a tudo a alma e o gosto não sofressem impressão,
pois estariam resguardados de fé e concreto, bem ocultos.
Essa
crença, diga-se de passagem, cairia melhor em João, que acreditava na lenda de
Spinoza polindo lentes, enquanto pensava em latim Sobre o Melhoramento do
Intelecto. Em Carlos essa ilusão recebera a variante de uma astúcia ingênua, mas
astúcia, que era o conforto de se enganar, como o indivíduo cansado e com muito
sono e que tem uma tarefa inadiável para concluir antes de dormir, mas que se
diz, “descansarei apenas 5 minutos”. O indivíduo dorme a sono solto por 100 x 5
minutos, a pedido do corpo lasso.
O
trabalho que Carlos julgava ser um custo sem embate, adaptando-se fisicamente,
por habilidades que de tanto serem feitas tornar-se-iam obra de um autômato,
alheio à sua pessoa, somente deixando no trabalho o corpo, numa migração
mecânica da alma, não se fez conforme a sua esperançosa astúcia.
A
alma regressou ao corpo, de onde nunca se havia apartado, e se entranhou nos
dedos, e se fez carne, ou mais precisamente busca de carne, ao tempo em que
ouvia histórias de bois que não a comem, e por isso têm muita força e saúde.
O
que ele não via como uma lei geral, percebia-o, no seu caso particular, embora
disso não formasse conceito, porque lhe era pesaroso o nível de adaptação a que
se via forçado. “E eu sou louco?”, a pergunta, que se fazia, evoluiu sem rastros
de percurso para um “é claro que não sou louco”, até um “longe de mim a
loucura”, quando passou a ser convidado para almoços rápidos, de 15 minutos, na
casa do patrão Romualdo.
Ora,
estava escrito que passasse a elogiar, e até mesmo a gostar (e não vem ao caso
distinguir a fronteira entre o gosto verdadeiro, sentido, e o gosto por
agradecimento), a gostar e fazer comentários judiciosos sobre legumes, frutas e
verduras. Pois a fome é onívora.
Se
lhe servem um bife suculento, muito bom. Se lhe servem um arroz com salada, não
é mau. É até ótimo, quando a digestão se faz de volta no carro do chefe, uma
sólida Rural Willys. Vontade de cochilar lhe dava, cochilar e voar para longe,
migrando, mas o matraquear de Romualdo não lhe dava trégua. Ele, Romualdo, tinha
a consciência de que lhe pagara o almoço, não fosse agora o empregado, de rabo
cheio, negar-lhe a dívida.
–
O povo não gosta de trabalhar, viu, rapaz? Não querem trabalho não. Querem só, ó
– e tirava uma das mãos do volante, agitando os dedos na boca aberta. – Esta é
que é a verdade.
E
Romualdo voltava a mão ao volante, firme, sério, cônscio da solidez do seu
patrimônio, ele próprio se vendo forte como o granito. Contente e eterno. Carlos
dirigia os olhos para a paisagem, que corria, de meio-fio, sol e gente. “Deixa
pra lá”, pensava, “isso passa. Vamos ao que importa”. E o que importava? Vácuo
como resposta.
Arrotava
o arroz com ponche de laranja. O arroto lhe era desagradável, um desagradável
que era motor de empurrar mais os olhos para longe da janela estável da Rural.
“Isso passa. Vamos ao que interessa”.
Desciam.
Era emendar o segundo expediente sem descanso.
Ora,
estava escrito que a lua-de-mel, como toda lua-de-mel, não podia durar sempre.
A
intimidade doada pelo chefe teve a contrapartida da quebra do respeito, ousemos
esta palavra, respeito que ainda havia nos momentos do esporro. Antes, Carlos
era um estranho, um objeto, podia ser executado com frieza. Agora o chefe lhe
conhecia a fraqueza, tinha-o na mão como um devedor – pois não lhe pagava às
vezes até a janta? – media-o pela medida do seu almoço.
Ora,
era o diabo. Se Carlos houvesse tomado distância, já teria sido posto no olho da
rua. Como não se distanciara, e aí residia a fina lâmina do equilíbrio, para se
dar ao respeito em público, o que vale dizer, para evitar a descompostura com
testemunhas, deveria viver com o chefe em permanente salamaleque. “A paz esteja
contigo” deveria expressar em constante mesura. Ora ,
não se pode exigir de um jovem tamanha ciência. E de um jovem espiritualizado, o
que é um agravante, muito menos.
Um
dos problemas de um caráter espiritualizado é que ele se envolve no encanto das
formas. O que isso quer dizer: num edifício levantado, por exemplo, ele somente
vê o acabamento, o desenho no resultado final, erguido. Pior, para ele é um
choque descobrir lajes, e que uma planta do prédio pode ser reduzida a
retângulos e semicírculos.
Falando
mais, digamos, concreto: o jovem espiritualizado acredita em Talento,
Generosidade , Amor, Decência, como fenômenos puros. O que vale
dizer, fenômenos vistos no seu exterior.
Para
ele as estrelas são luzes lácteas. Ora ora. Se ao descer da Rural, voltando do
almoço na casa de Romualdo, Carlos não encontrasse ante os seus olhos os olhos
da massa escura de operários, de macacão aberto, com o riso infame insinuado nos
lábios grossos, ah, teria sido mais fácil atingir posturas próximas ao
salamaleque, mas que não o seria, misturado que estava à tapinha, ao insulto
recebido como uma característica jocosa, típica, de um patrão camarada.
“O
secretário do chefe”, “meu chefe”, começou a ouvir da oficina, e isso estava
longe de ser um elogio. Tratavam-no como um rameiro, pelo menos na tradução que
Carlos dava a essas irônicas antonomásias. “Inveja, é natural que sintam
inveja”, pensou a princípio. “Eles acham que a minha posição é importante. Como
não podem estar aqui … ” E deu de ombros. Mas não se sentiu por isso liberado.
A
possível inveja acabou por constrangê-lo. E passou a ser cordato com Romualdo,
quase pedindo desculpas à massa. O que quer dizer: às cobranças arbitrárias do
chefe deu-se ao embaraço de fazer ponderações.
–
Carlos, venha cá.
–
Pois não…
–
As guias de recolhimento do INPS de três anos. Eu quero
elas.
–
Hum… veja bem. Quando eu cheguei aqui, não me foi possível conceber a
organização do arquivo – e a ponderação de Carlos era assim, cerimoniosa – sem
um exame prévio das condições gerais…
–
Conversa mole, seu Carlos – o chefe o interrompe. – Quando o senhor chegou aqui
não sabia nem um A. Me passe as guias, ligeiro.
–
Certo. Mas veja bem. Não é totalmente justo que me seja
imputado…
–
E quem chamou o senhor de puta? Vamos. O senhor sabe ou não sabe das
guias?
–
Sinceramente, de uns três anos para cá… O senhor tinha mesmo arquivo
disso?
Aquilo
acabou por queimar o pavio curto de Romualdo.
–
Eu lhe pago pra me servir. Era só o que faltava! – Levantou-se, e se dirigindo
ao armário, arrancou de lá, às braçadas, pilhas de papéis, que jogou para o
chão. E varrendo com as mãos as prateleiras, ia exclamando: – Tá uma zona! Virou
frege!
O
chão ficou atapetado de cartas, algumas modelares, outras não, e mais notas
fiscais, faturas, algumas presas por grampos, outras por clipes, e pastas, de
guias amareladas, outras não.
–
Quero tudo separado – o patrão lhe gritou – com cada boi no seu curral. Hoje,
daqui a pouco, até a minha volta do almoço.
E
bateu a porta, saindo. Carlos ficou como um gigante faminto, sem almoço, com a
multidão de papéis nos calcanhares. “Mártir quis ser, cuidei qu’eu era. E um
louco fui, nada mais”, eram os versos de que se lembrava. E se pôs humilde,
franciscano, paciente e cristãmente a organizar os papéis sobre o
birô.
Uma semana depois
tinha camisa nova e, num protesto mudo, um tumor estourado no pé
direito.
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