sexta-feira, 17 de agosto de 2012

O aceno dos sauditas na direção do Irã


18/8/2012, M K Bhadrakumar*, Asia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


A narrativa não poderia ser mais simples – a Arábia Saudita levou sua guerra fria com o Irã, que tem sido combatida na água, no ar e nas colinas do Oriente Médio, para a grande arena da Ummah [comunidade, nação] muçulmana. E, nessa virada do jogo, o Irã mais perdeu que ganhou.

Reunião da Organização de Cooperação Islâmica [ing. Organization of
Islamic Cooperation (OIC)
] em Meca, Arabia Saudita, 14/8/2012
Mas a reunião de cúpula da Organização de Cooperação Islâmica [ing. Organization of Islamic Cooperation (OIC)] em Meca, essa semana, tinha subtexto sutil, e quem conheça a política muçulmana sabe que, em ocasiões como aquela, os subtextos são invariavelmente mais significativos que a narrativa manifesta.

A narrativa é que a Síria foi banida do mundo sunita e o Irã nada conseguiu fazer para impedir que acontecesse. A notícia foi estampada em toda a imprensa ocidental. Washington chegou a manifestar satisfação por aquele “forte sinal” ter sido ouvido em Damasco.

Decisão maculada

Mas teria sido a Síria a verdadeira questão central da reunião da OIC? Mais parece que a crise síria apenas ofereceu a vitrine na qual se tornou possível expor, bem visíveis, onde todos os vejam, outros determinados subtextos.

Ninguém suponha que alguma opinião majoritária dentro da OIC e refletida na decisão de suspender o status da Síria como membro da organização venha a influenciar o futuro daquele país. No máximo, a reunião envia um sinal à Síria. Mas a Síria recebe sinais de todos os lados, de perto e de longe, e a questão absolutamente não é essa. Fato é que a OIC é conhecida como organização regional notoriamente inefetiva. Consumiu décadas fulminando a Índia a propósito da questão da Cachemira e até constituiu um Grupo de Contato sobre o tema – com Turquia e Arábia Saudita à frente. Nova Delhi decidiu ignorar o movimento. Hoje, já ninguém sabe se morreu ou se ainda existe.

Regime resistente como o de Damasco com certeza sabe que a OIC é organização que ladra mas não morde, que a Arábia Saudita sempre desejou comandar. Por ironia, a Síria costumava aconselhar Nova Delhi a não perder o sono por causa do Grupo de Contato ISI.

O xis da questão é que a crise síria já transcendeu o paradigma saudita-iraniano e metamorfoseou-se em luta de vale-tudo da primeira classe, em que potências exteriores disputam a hegemonia regional – e as disputantes mais poderosas não são sequer países muçulmanos. Não é do interesse dos protagonistas realmente poderosos em disputa – EUA, Europa, Rússia, China – dar a impressão de que sua política de segurança resume-se a apoiar sunitas ou xiitas no Oriente Médio.

Bashar al-Assad
As potências ocidentais relutam em intervir na Síria, e a via diplomática estreitou-se muito; Rússia e China cuidam de tocar a vida, depois de, por duas vezes, terem cruzado a “linha vermelha” no Conselho de Segurança da ONU; e EUA e Turquia foram deixados sós, enfrentando, sozinhos, a difícil questão de como proceder para por fim à violência, depois de a diplomacia ter fracassado e de o regime de Bashar al-Assad não se ter deixado destruir, apesar dos muitos ferimentos que lhe foram infligidos – e eis o que é, em resumo, a atual situação na Síria.

Em termos bem simples, a OIC absolutamente não tem função alguma nesses eventos. De fato, se teve alguma, deixou de ter na 4ª-feira, depois da decisão maculada que foi tomada em Meca, de traçar pontes que cheguem a Damasco – em vez de, com um pouco de imaginação, construir para a OIC uma posição de facilitator-cum-mediator em algum momento oportuno, no futuro.

Assim sendo, por que a Arábia Saudita inventou essa tão pouco oportuna iniciativa de organizar reunião extraordinária da OIC? O objetivo central da iniciativa dos sauditas foi mostrar uma frente unida contra o sectarismo no mundo muçulmano. Teerã entendeu logo, o que explica que tenham decidido participar da reunião em Meca, apesar de praticamente não haver dúvidas de que dali sairia, fosse qual fosse, algum tipo de censura ao regime sírio.

Por sua vez, o Irã também fez a necessária figura que a ocasião exigia, ao dar resposta adequada, no nível do Ministro de Relações Exteriores, à decisão da OIC de suspender a Síria.

Ali Akbar Salehi
Em Meca, o Ministro iraniano de Relações Exteriores, Ali Akbar Salehi, disse: “A Síria deveria ter sido convidada ao encontro para defender-se e também para que os presentes ouvissem seu ponto de vista oficial”. Explicou que Teerã manifestara-se contra a decisão da OIC, porque “é decisão contrária à própria Carta da OIC”. E Salehi acrescentou: “Em nossa opinião, é mais lógico [que a suspensão e] nós devemos procurar um mecanismo para sair da crise síria com oposição e governo dedicados a conversar para criar condições favoráveis” a por fim à crise.

Redesenhar as regras do jogo

Em segundo lugar, os desenvolvimentos na Síria estão firmemente trazendo o sectarismo religioso para campo aberto, de um modo que não interessa a nenhum dos grandes protagonistas regionais – Arábia Saudita, Irã, Qatar ou Turquia – dado que praticamente todos eles são tão vulneráveis aos efeitos colaterais de qualquer aprofundamento das diferenças sectárias quanto a Síria hoje.

Quase 20% da população saudita é xiita, mais de 35% no Kuwait e quase 70% no Bahrain. Os alawitas são minoria com longa história de perseguição e constituem 20% da população da Turquia (além dos curdos precariamente integrados, que são outros 20%). De fato, também no Irã há uma não desprezível minoria sunita.

Em terceiro lugar, não importa o que aconteça em campo, os sunitas desempenharão doravante papel muito mais influente na vida política síria do que antes, o que, outra vez, significa que nenhum dos protagonistas regionais tem o que ganhar com qualquer escalada nas tensões religiosas. E os efeitos das tensões religiosas com certeza serão muito graves. Já há sinais visíveis de que as províncias do leste da Arábia Saudita, onde predominam os xiitas, estão em ebulição. É desafio formidável para a família real, tanto em termos geográficos como econômicos.

Membros do clã Meqdad, xiita, promovendo manifestação em Beirute
contra o sequestro de 20 sírios pelo chamado "Exército Sírio Livre"
Na 4ª-feira, quando a OIC começava sua reunião em Jeddah, viram-se sinais preocupantes no Líbano, onde o clã Meqdad, xiita, sequestrou mais de 20 sírios, em ação de retaliação contra o sequestro de um dos seus, pelo chamado “Exército Sírio Livre”. O clã Meqdad ameaçou que “a bola de neve crescerá” e os alvos serão cidadãos sauditas, qataris e turcos.

A Arábia Saudita alertou seus cidadãos para que deixassem imediatamente o Líbano. E os Emirados Árabes Unidos e o Qatar tomaram idêntica providência. Há relatos de dúzias de sírios sequestrados em Beirute na 4ª-feira, e de pistoleiros controlando ruas do subúrbio xiita em Tiro, na parte sul da cidade.

Quer dizer: embora a iniciativa da reunião da OIC talvez não tenha impacto direto nos desenvolvimentos na Síria no curto prazo, a iniciativa levou em consideração o desafio existencial que se cria com o aumento das tensões religiosas e adotou abordagem que, no longo prazo, visa a conter os vários pontos políticos potencialmente inflamáveis na região, impedindo que assumam traços excessivamente sectários.

Em suma, o ataque que resultou da reunião da OIC contra a Síria pouco significa, em termos de consequências, além do significado simbólico. Não cabia esperar que dali os sauditas e os iranianos saíssem aliados, grupos opostos cujas diferenças resultam do choque de interesses nacionais. Mas o objetivo da reunião da OIC pode bem ter sido alcançado, a saber: redesenhar as regras do jogo na Síria e “secularizar” as diferenças e conflitos políticos.

O Rei Abdullah da Arabia Saudita  fez questão de dar atenção
especial ao Presidente Ahmadinejad do Irã (ao centro)
Até que ponto a mensagem da OIC influenciará os militantes linha dura só o tempo dirá, mas o rei Abdullah sem dúvida fez importante gesto de conciliação na direção do presidente Mahmud Ahmadinejad, ao mantê-lo a seu lado, na solenidade de recepção aos líderes que chegavam para a reunião.

Como noticiou a agência Reuters:

Ahmadinejad, trajando o terno escuro e a camisa sem gravata que os líderes iranianos preferem, estava sentado à mão esquerda do rei, no traje árabe tradicional. Os dois foram mostrados conversando e, algumas vezes, rindo juntos”. 

É quanto o “subtexto” deixa-se ver como a narrativa real. Avalie-se pelo ângulo que for, o gesto na direção de Ahmadinejad foi uma abertura que o rei saudita fez ao Irã, não importa o que aconteça na Síria (ou por causa da Síria) no próximo período: “Nós dois somos muçulmanos”.

Curiosamente, uma reunião prevista para ser palco de disputa potencialmente gigante entre Arábia Saudita e Irã concluiu com a aprovação da proposta do rei Abdullah, de organizar um centro em Riad, para encontro e diálogo entre as diferentes seitas muçulmanas. Fica-se tentado a supor que a OIC, afinal, tenha entendido a que veio. 

MK Bhadrakumarfoi diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões do Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as quais The HinduAsia Online e Indian Punchline. É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante de Kerala.

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