sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Procura-se um documentário sobre o Brasil




Publicado em 16/08/2012 por Urariano Motta*

Recife (PE) - Por necessidade de trabalho, procuro escrever meus livros em cima de pesquisa histórica, a partir do que o sentimento manda. No próximo romance, “O filho renegado de Deus”, há um personagem essencial, um homem negro, inteligente, de ideologia à direita. Ele, que era tido como o melhor intérprete de inglês do Recife nos anos 60, recebe o encargo de servir ao casal Edward Keneddy, que visitava a cidade. E com ele ocorre então um incidente, neste passo:

“Diziam que ele falava como um legítimo gringo, que compreendia até as gírias, tiques e elipses de falas regionais dos Estados Unidos. E compreendia tanto que, ao ser escalado como guia – ele contava que fora escolhido como intérprete, tradutor – do casal Ted Kennedy em visita ao Recife, chegou a ouvir da esposa do grande e simpático norte-americano, quando entendeu com clareza a sua gíria nesta pergunta cifrada: - É esse macaco que vai nos servir?”.

Ora, esse acontecimento não é gratuito nem falso como história ou narração.  Apontam os registros na imprensa que Edward Kennedy veio ao Recife em julho de 1961, cumprindo missão delegada pelo presidente John Kennedy. O seu tradutor foi Celso Furtado, um substituto, conforme a história que conheço. E no papel de Grande Irmão conheceu as Ligas Camponesas. Mais: depois disso se fez um documentário sobre a luta pela terra em Pernambuco, para a rede de televisão norte-americana ABC, com o nome de Brazil: the troubled land.  

Há mais de um ano, eu faço a busca por esse filme, por suas imagens de 1961. No começo, eu julgava que poderia ver as caras de Kennedy e sua mulher, que chamou um cidadão negro de macaco no Recife. E de tanto procurar no google, em comunidades virtuais, em informações fora da web, este ano descobri a professora Sarah Sarzynski, da Universidade de Nova York, que me esclareceu: “Ted não aparece no documentário”. Ainda assim é importante o filme, respondi. E continuamos a procura. A professora tem sido uma pessoa de imensa gentileza, como intérprete e autoridade acadêmica, mas as dificuldades não foram vencidas. Vence-se uma, surge outra.    

Ao fim de muitas buscas, descobri que o filme existia no endereço na Indiana University Libraries Film Archive. Agora seria fácil, pensei. Mas a resposta não tardou, no inglês que traduzo aqui livre e mal, pois não sou o meu personagem:


“Agradeço pelo contato para a pesquisa do filme Brazil: The Troubled Land. Ele pertence ao arquivo da coleção da Biblioteca da Universidade de Indiana. Reenvio para a arquivista responsável”, que respondeu:

“Para o acesso ao filme que você pesquisa, o Brazil: The Troubled Land, nós não o temos digitalizado ou em cópia para ser visto. No momento, o filme está disponível somente nesta biblioteca, ou então, se você desejar obter permissão do proprietário dos direitos autorais, nós  poderíamos fazer uma cópia em DVD para você emprestar ao escritor brasileiro. A McGraw Hill é a editora dona do filme”.

Mas a poderosa McGraw Hill, até a presente hora, nada falou sobre a liberação de uma cópia. Em desespero de causa, cheguei a solicitar, intermediado pela doutora Sarah, até mesmo a compra de um exemplar, com a ajuda, é claro, de outros jornalistas brasileiros, que também o procuram. Nada. Mais uma vez, por razões de Estado primeiro, depois por razões do capital, e mais adiante por desatenção dos acadêmicos do Brasil, que não veem a importância do documentário, o Brasil deixa de ver a própria cara, num flagrante das relações históricas de opressão em 1961.

No filme, segundo o repórter e escritor Vandeck Santiago, o latifundiário Constâncio Maranhão trava o seguinte diálogo com a documentarista Helen Jean Rogers :

“- Não dê ouvidos a essa gente. Aqui todos têm um trabalho e os que querem trabalhar estão satisfeitos- diz ele à jornalista americana.

Ela retruca falando sobre reações de descontentamento dos camponeses e da possibilidade de a situação agravar-se.

“- Nesse caso eles terão o que merecem, a força- rebate o proprietário, empunhando uma pistola e dando tiros para o ar, afirma: -Olhe aqui o que terão!”

The Troubled Land passou nos EUA, onde alcançou grande repercussão, mas nunca foi veiculado na televisão brasileira. De acordo com Furtado, que tem em seus arquivos uma cópia do programa, “o Conselho de Segurança Nacional o julgou inconveniente”.

Os tiros de Constâncio Maranhão diante da câmera mostravam bem o poder secular do latifúndio, que faria em abril de 1964 os rios correrem repletos de cadáveres de camponeses das ligas.

Quem entraria no mutirão para liberar o documentário?

Urariano Motta* é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e Os corações futuristas(Recife, Bagaço, 1997).

Enviado por Direto da Redação



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