31/8/2012, Pepe
Escobar, Asia
Times Online
- Blog Roving
Eye
Traduzido
pelo pessoal da Vila
Vudu
Pepe Escobar |
Melhor
você não fazer graças com o Irmão Muçulmano Mursi.
Saído
diretamente da China “comunista” – onde foi recebido com tapete vermelho pelo
presidente Hu Jintao e pelo vice-presidente Xi Jinping – Mursi do Egito
aterrissou em terras do “Irã-do-mal” como verdadeiro líder do mundo árabe. [1]
Imagine
pesquisa feita em Tampa, Florida , com delegados
da Convenção Republicana bajuladores do sinistro duo Mitt Romney-Paul Ryan,
candidatos. As chances são de Mursi ficar abaixo de Hitler, nas preferências
(Oh, não... abaixo de Hitler já está Saddam. Talvez Osama. Ou, quem sabe,
Ahmadinejad...).
De
Tampa para Teerã. A mais recente foto da atual divisão geopolítica. De um lado,
a massa dos 1% clamando por sangue, seja sangue de Barack Obama ou de bandeja de
muçulmanos sortidos. De outro lado, o grosso da verdadeira “comunidade
internacional”, praticamente todo o Sul Global (incluindo observadores como
China, Brasil, Argentina e México) que se recusa a curvar-se ante os diktats
imperiais militares/financeiros. Reafirmando suas impecáveis credenciais
jornalísticas, a imprensa-empresa dos EUA dá de mão, e desqualifica tudo: não
passa de “baboseira terceiro-mundista”.
Seja
como for, a notícia é que o Egito voltou. A segunda notícia é que o eixo
Washington-Telavive está apoplético.
Mohamed Mursi |
É
possível que Mursi pareça estar, como o egípcio do provérbio na imaginação
popular, andando de lado. De fato, não para de avançar, nem por um segundo. A
essa altura, já é evidente que a nova política externa do Egito está focada
em repor o
Egito , historicamente o centro intelectual do mundo árabe, na
posição que lhe compete, de liderança – e que lhe foi usurpada pelos bárbaros
sauditas milionários do petróleo, nas décadas durante as quais o Egito não
passou de lava-penicos servil, dos desígnios geopolíticos de Washington.
Longe
vão (bem longe) os dias – mais de 30 anos! – quando Teerã rompeu relações com o
Cairo, quando o Egito assinou os acordos de Camp David. O fato de Mursi ter ido
à Conferência dos Não Alinhados em Teerã pode não indicar reatamento pleno de
relações diplomáticas, como anda explicando o porta-voz de Mursi, Yasser Ali.
Mas é golpe diplomático com magnitude de terremoto.
Começa
o novo grande jogo
Indispensável
uma rápida recapitulação. A primeira viagem crucial de Mursi presidente foi à
Arábia Saudita, para a reunião da Organização da Conferência Islâmica (OCI),
em Meca. A
Casa de Saud olha a Fraternidade Muçulmana com extrema
desconfiança, para dizer o mínimo. Imediatamente depois, Mursi recebeu visita
pessoal do Emir do Qatar, que levava um cheque de US$2 bilhões, sem cláusulas de
reciprocidade. E Mursi, na sequência, mandou passear o velho líder do orwelliano Conselho Supremo das Forças
Armadas (CSFA).
Fraternidade Muçulmana |
No
entretempo, Mursi já havia lançado o plano egípcio para por fim à interminável
tragédia síria: um grupo de contato em que se reúnam Egito, Irã, Turquia e
Arábia Saudita. Nenhuma solução síria será jamais alcançada sem esses atores
estrangeiros chaves – com o Egito tendo tomado o cuidado de se autoinstalar como
mediador entre os interesses de Irã e de Turquia/sauditas (que são praticamente
os mesmos: em 2008,
a Turquia firmou acordo estratégico, político, econômico e
de segurança com o CCG).
Num
único movimento, Mursi cortou a cabeça da falsa serpente que há anos estava
sendo vendida a Washington pelo rei de Playstation da Jordânia e pela Casa de
Saud, segundo os quais um “Crescente Xiita do Mal”, que iria do Irã ao Líbano
via Iraque e Síria, estaria minando a “estabilidade” do Oriente Médio.
O
que o rei Abdullah da Arábia Saudita e o Abdullah mais jovem da Jordânia temem,
de verdade, é a agitação e a fúria de suas próprias populações (para nem citar,
nem de longe, qualquer ideia de democracia). Então é hora de culpar o xiismo
rampante por tudo que aconteça, dado que Washington é suficientemente otária –
ou esperta – para comprar a tese.
O
mito do “Crescente Xiita” pode ser desmascarado de vários modos. Eis um deles –
em cena de que fui testemunha ocular, ao vivo, por bom tempo, em meados dos anos
2000s. Teerã sabe que a maioria do poderoso clericato iraquiano é totalmente
contrário ao conceito khomeinista de
República Islâmica. Não surpreende que Teerã ande tão preocupada com o
renascimento de Najaf, no Iraque, como principal cidade santa do Islã Xiita,
em detrimento de
Qom , no Irã.
Washington
compra essa propaganda porque está bem exatamente no coração do Novo Grande
Jogo. Seja qual for o governo de plantão, de Bush a Obama, e adiante, uma
obsessão chave de Washington é neutralizar o que é visto como um eixo xiita do
Líbano,
via
Síria e Iraque, passando pelo Irã e direto até o Afeganistão.
Mera
espiada no mapa diz-nos que esse eixo está no centro do vastíssimo deslocamento
militar dos EUA na Ásia – de frente para China e Rússia. Obviamente, a melhor
inteligência em Pequim
e Moscou já o identificou há anos.
Russos
e chineses veem como o Pentágono “administra” – indiretamente – grande parte das
reservas de petróleo da região, incluindo o nordeste xiita da Arábia Saudita. E
veem como o Irã – centro de gravidade de toda a região – só pode ser a absoluta
obsessão de Washington. A conversa “nuclear” não passa de pretexto, de fato o
único disponível no mercado. Em síntese, não é questão de destruir o Irã, mas de
subjugá-lo e reduzi-lo à condição de aliado dócil.
Ban Ki-Moon, Ahmadinejad e Mursi na Conferência de Teerã |
Nesse
jogo barra pesadíssima de poder, entra o Irmão Mursi, jogando uma mão de cartas
com a rapidez fulminante de um crupiê empregado, em Macau, de Sheldon Adelson.
Cartada que poderia ter exigido meses, talvez anos – o descarte da velha
liderança do CSFA do Egito; o Qatar privilegiado, em detrimento da Arábia
Saudita ; uma visita presidencial a Teerã; o Egito voltando ao
centro do palco como líder do mundo árabe – foi completada em apenas dois meses.
Claro
que tudo depende de como se desenvolvam as relações entre Egito e Irã, e de se o
Qatar – e mesmo o Irã – serão capazes de ajudar a Fraternidade Muçulmana a
impedir o colapso do Egito (falta dinheiro para tudo: o déficit anual é de $36
bilhões; quase metade da população é analfabeta; e o país importa metade de tudo
que come).
Levem-me
de volta a Camp David
O
problema imediato com o grupo de contato do Egito para a Síria é que a Turquia –
em mais uma instância de sua política externa espetacularmente contraproducente
– decidiu boicotar a Conferência do Movimento dos Não Alinhados. Nem isso deteve
o Egito, que propôs acrescentar Iraque e Argélia ao grupo de contato. [2]
E
entra em cena Teerã, com mais uma proposta diplomática “de amplo espectro”,
segundo o Ministério de Relações Exteriores: uma troika de Não Alinhados – Egito, Irã e
Venezuela,
plus
Iraque e Líbano, vizinhos da Síria. Quer dizer: todos querem conversar –
exceto, dadas as evidências, a Turquia. A Rússia apoia plenamente a proposta de
Teerã.
Aliatolá Ali Khamenei, Supremo Líder do Irã |
E
bem quando a cobertura da imprensa-empresa dos EUA lambuza-se com os discursos
de ódio da convenção de milionários em Tampa, em Teerã, no “isolado” Irã, o Supremo Líder, Aiatolá Khamenei recebe o secretário-geral da ONU Ban Ki-moon, e conclama a ONU a trabalhar a favor de um Oriente Médio sem armas nucleares. [3]
Não
é precisamente atitude de algum “novo Hitler” que deseje a bomba atômica, como
ainda tentava repetir, ontem, em Israel, o duo Bibi-Barak, inventadores de
guerras. Mais parece, com certeza, denúncia vinda de um sul global muito
popular, da hipocrisia cósmica de Washington, que espertamente ignora o arsenal
nuclear de Israel, enquanto tenta apertar o Irã e seu programa nuclear.
Desnecessário
dizer que nada disso foi notícia na imprensa-empresa norte-americana.
Simultaneamente,
todos os olhos do sul global estão postos em Mursi. Pelo andar da carruagem, não
é fantasioso imaginar que a Fraternidade Muçulmana, mais dia menos dia, jogue a
carta de Camp David. Nesse caso, deve-se esperar que Washington entre em modo
balístico – e talvez viaje no tempo, de volta à América Latina dos anos 1970s, e
tente (mais um) golpe militar.
Em
resumo, se a Fraternidade Muçulmana realmente articular uma política externa
independente nos próximos meses, que dê pelo menos um sinal de que Camp David
tenha de ser renegociado (movimento que terá o apoio de 90% dos egípcios), a
única saída que sobrará para o duo Bibi-Barak, inventadores de guerras, será
cair na real.
_____________________________
Notas de rodapé:
[1] 30/8/2012,
China Daily, em: “Chinese
VP, Egypt president vow to boost ties”.
[2] 28/8/2012,
Al-Akhbar, em: “The
Egyptian Initiative: Banking on Syrian Fatigue”.
[3] 29/8/2012,
PressTV, em: “Leader
urges UN to help create nuclear-free Middle East”.
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