25/8/2012, Uri Avnery, Gush Shalom [Bloco da Paz], Israel
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Uri Avnery |
O nome do homem que
será indicado candidato a vice-presidente dos EUA na chapa do Partido
Republicano absolutamente não me interessava, até que surgiu, associado a ele, o
nome de Ayn Rand.
O
que se diz é que Ayn Rand é uma das fontes inspiracionais que anima o específico
pensamento filosófico de Paul Ryan, candidato a vice-presidente dos EUA.
E, dado que o mesmo
Paul Ryan está sendo apresentado não como político mequetrefe padrão, como Mitt
Romney, mas como profundo pensador de política e economia, a tal fonte
inspiracional merece algum exame.
Como no caso de
muita gente em Israel, Ayn Rand entrou na
minha vida como autora de The Fountainhead [1]
[A nascente],
romance lançado quatro anos antes do nascimento do Estado de Israel e que
rapidamente se tornou bestseller [2]. O filme baseado
no romance, com Gary Cooper no papel principal (no Brasil e em Portugal, Vontade
Indômita , 1949 [3]) tornou-se ainda
mais popular.
É a história de um
arquiteto de gênio (semelhante, nos traços gerais, a Frank Lloyd Wright) que
segue o próprio estilo individual e desdenha as preferências das massas. Quando
seu projeto arquitetônico para uma casa é modificado pelos construtores, o
arquiteto destrói os prédios e, em seguida, defende os próprios atos nos
tribunais, num apaixonado discurso a favor do individualismo.
(Honestamente:
Muitas vezes tive ímpetos de fazer o mesmo que ele a alguns prédios em Telavive,
sobretudo aos hotéis de luxo erguidos entre minha janela e o mar.)
Comecei a ler o segundo
bestseller da mesma autora, Atlas Shrugged [1957 (2008), A
revolta de Atlas, SP: ed. Ed. Sextante e Instituto Milênio [4]], no qual expõe
detalhadamente a própria filosofia. Nesse caso, tenho de confessar que, para
minha eterna vergonha, não consegui avançar e jamais concluí a
leitura.
Um dia, em 1974,
meu amigo Dan Ben-Amotz telefonou-me para pedir que eu recebesse um jovem que
ele acabava de conhecer, Dr. Moshe Kroy. “Um gênio!”, disse ele.
Ben-Amotz já era,
só ele, personagem notável. Tinha mais ou menos a minha idade e, em 1974, era
conhecido humorista e ícone da geração que fez a guerra de 1948 e criou a nova
cultura hebraica. Ben-Amotz, como muitos de nós, era self-made man; mais
propriamente dito, era autoinventado e fez-se conhecido como exemplo consumado
do sabra [israelense nativo] perfeito. Um dia, muitos anos depois,
transpirou que teria nascido na Polônia e chegara menino à Palestina, onde
adotara o nome de amplas sonoridades hebraicas pelo qual se tornou conhecido, em
substituição ao nome que trazia da Polônia, Moshe Tehilimzeigger (em ídiche,
“recitador de salmos”).
Ben-Amotz trouxe
Kroy à minha casa. Tinha 24 anos e era impressionantemente erudito, já professor
na Universidade de Telavive, com óculos grossos e conversa muito altamente
filosófica. Fiquei impressionadíssimo.
A Nascente, o filme |
Logo ficou bem
claro que era Crente Fiel dos ensinamentos de Ayn Rand, apresentados pela autora
como “objetivismo”. O objetivismo ensinava (e pelo visto, como fazem o tal
candidato Republicano à vice-presidência dos EUA e a rede Fox, ainda ensina) que
o principal e básico dever de todos os seres humanos é o egoísmo. Qualquer tipo
de envolvimento ou compromisso social é pecado contra a natureza. Só quando luta
pelos próprios interesses pessoais, limpando-se de qualquer traço de altruísmo,
o ser humano realiza o destino para o qual veio ao mundo. A sociedade só
progride quando constituída de e baseada em indivíduos assim furiosamente
egoístas, cada um lutando para promover só os próprios interesses
pessoais.
É filosofia que
pode ser irresistivelmente atraente para certo tipo de gente. Garante a esse
tipo de gente a justificativa filosófica de que precisam para ser furiosamente
egoístas, vivendo sem dar a mínima a quem que seja, além deles
mesmos.
Kroy, e também é
claro, Ben-Amotz, eram religiosamente devotados àquele novo credo, militantes do
egoísmo. (Há aí evidente oximoro, porque a própria Ayn Rand era absolutamente
não crente, condenando todas as religiões, inclusive a religião dos judeus de
sua família.) Em certo momento, apanhei Ben-Amotz com a boca na botija, fazendo
algo que, sim, bem poderia implicar benefício a outras pessoas. Ele deu-se muito
trabalho para explicar que, naquele ato, de fato, no longo prazo, visava
exclusivamente a obter vantagens só para ele mesmo.
Kroy, como já então
era bem visível, era pessoa bastante perturbada. Matou-se, aos 41 anos. Nunca
consegui definir se Ayn Rand perturbou-o além do suportável, ou se foi atraído
para ela porque já era suficientemente perturbado antes de conhecer o
objetivismo.
AYN RAND foi
pseudônimo de Alisa Zinovyevna Rosenbaum, nascida em São Petersburgo, que depois
foi Petrogrado, que depois foi Leningrado. Tinha 12 anos quando eclodiu naquela
cidade a Revolução Bolchevique. A farmácia de seus pais foi tomada pelo regime,
e a família burguesa fugiu para a Crimeia, então defendida pelas forças dos
Russos Brancos. Adiante retornaram à cidade natal, onde Alisa estudou filosofia
e até publicou um livro em russo. Em 1926, ela chegou, sozinha, aos
EUA.
Adotou o nome “Ayn”
(que rima com “swine” [suíno(a)], como ela mesma explicava).
Provavelmente recolheu a palavra do hebraico, em que significa “olho”. O
sobrenome Rand pode ser contração do sobrenome original judeu-alemão da
família.
Sua história
inicial, em certa medida, explica o ódio imorredouro que o Comunismo sempre lhe
inspirou, como todas as modalidades de coletivismo, inclusive a
social-democracia, além do ódio a todas as formas de religião ou estatismo. Para
ela, o Estado é o inimigo do indivíduo idealmente totalmente livre. Esse ideário
levou-a naturalmente a abraçar um capitalismo de laissez-faire
absolutamente desatinado (que Shimon Peres chamou de “capitalismo swinish
[lit. “suíno”] e a rejeitar toda e qualquer forma de estado de bem-estar e rede
de proteção social.
Tudo isso aparecia
bem estruturado na filosofia dela, que foi adotada por crentes adoradores em
todo o mundo. Certa vez, ela se autoapresentou como “o(a) mais criativo(a)
pensador(a) vivo.” Noutra ocasião, disse que em todos os anais da filosofia há
só três grandes pensadores, todos na letra A: Aristóteles, Santo Tomás de Aquino
e Ayn Rand.
Com toda a
probabilidade, foi também racista do tipo furioso: durante a Guerra do Yom
Kippur, em 1973, disse que “homens civilizados enfrentavam selvagens” e comparou
os israelenses aos brancos, nos EUA, enfrentando bárbaros peles
vermelhas.
Paul Ryan |
Não surpreende que,
no post-mortem, Ayn Rand tenha-se tornado leitura preferencial dos
fanáticos do Tea Party, que hoje
dominam o Partido Republicano. Não surpreende tampouco que o candidato à
vice-presidência Paul Ryan refira-se a ela, orgulhosamente, como um de seus mais
importantes mentores intelectuais. (Ayn Rand morreu em 1982, com 77 anos. Ao
funeral compareceram vários crentes devotos, entre os quais Alan Greenspan, um
dos coveiros da economia dos EUA. [E é
cultuada até hoje, no Brasil, pelo Instituto Liberal e pelo Instituto Milênio,
que co-editam seus livros, os quais podem ser lidos gratuitamente na página
Internet do IM (NTs)].
Há algo nos
ensinamentos dessa pregadora fundamentalista judeu-russa branca do egoísmo
total, que os torna sedutores aos olhos dos que cultivam os mitos
norte-americanos primitivos e o individualismo absoluto; dos que cultivam a
autoconfiança enlouquecida dos “mocinhos” sempre armados na luta contra o Oeste
Selvagem; dos que padecem de desconfiança mórbida contra o Estado arrecadador
(mitos que chegam ao Rei Eduardo III). Mas, Santo Deus! O mundo já ultrapassou o
século 18!
Nunca estudei
filosofia, mas ao longo da vida, aqui e ali, li alguma coisa. E as teorias de
Ayn Rand sempre me pareceram, digamos, infanto-juvenis.
Há uma lembrança
que sempre me acompanha. O falecido Ministro israelense Pinchas, contando como,
ainda adolescente, escalou uma escada do kibbutz, encontrou numa das
prateleiras mais altas um livro de Nietzsche e lá ficou, a metros do chão, horas
a fio, sem conseguir parar de ler. Se bem me lembro, foi Assim falou
Zarathustra, livro perigoso para jovens. Pois esse livro também teve
poderoso impacto sobre Ayn Rand na adolescência.
Friedrich Wilhelm
Nietzsche |
Nietzsche deblatera
contra a “moral da piedade judaica”, que infectava as adoráveis “bestas louras”.
Compaixão pelos fracos é pecado, porque mina as capacidades dos fortes em vias
de tornarem-se super-homens. Ayn Rand, no caso, sentiu rugir dentro dela as
potências da super-mulher. (...)
Na minha juventude,
também fui capturado por Nietzsche. Mas a “moral da piedade judaica” venceu. Por
isso eu, como muitos israelenses, absolutamente não conseguimos entender muitas
das atitudes sociais dos norte-americanos, algumas das quais se veem bem
ilustradas na atual campanha eleitoral.
Para mim, é
autoevidente que o Estado tem o dever de amparar os doentes, os velhos, as
crianças, os incapazes e os mais pobres. Um velho dito ensina que “cada judeu é
responsável por todos os judeus”. Pouco tempo depois de criado o Estado de
Israel, já havia constituído aqui um sólido sistema de assistência pública à
saúde e serviços sociais. A necessidade da segurança social, instituída na
Alemanha por Otto von Bismarck, político de direita, no tempo de Nietzsche, é
autoevidente para os israelenses, ainda hoje.
Benyamin
Netanyahu é direitista à moda dos Republicanos dos EUA, empenhado apoiador de
Mitt Romney. Provocou dano incalculável à rede de amparo social em Israel,
primeiro como Ministro das Finanças, depois como Primeiro-Ministro. Pois nem
“Bibi” atreveu-se a apresentar-se como discípulo de Ayn Rand.
Mas “Bibi” partilha
pelo menos um traço com Paul Ryan, crente fundamentalista da igreja de Ayn Rand:
Netanyahu e Ryan são, ambos, promovidos e financiados por Sheldon
Adelson.
Acho que não pode
haver personificação mais pura da visão de Ayn Rand, que esse bilionário à moda
Casino (o filme). Ayn o teria adorado! Sheldon Adelson é o egoísta
perfeito. Super enriqueceu explorando os vícios dos seres humanos mais fracos.
Suas práticas negociais são mais que suspeitas. Sim, mas... Mesmo assim, é
preciso perguntar se Adelson gastaria centenas de milhões em gente como
Romney , Ryan e Netanyahu em nome, exclusivamente, de promover
os seus próprios interesses comerciais. Pouco provável. O mais provável é que
haja nele um traço de altruísmo, uma crença sincera, um desejo sincero de,
através dessa gente, promover alguma ideia social que lhe seja sinceramente
cara, por pouco decente que nos pareça ser ou que seja.
Ayn Rand era ateia
e odiava tudo que não fosse doentiamente racional. Mas o Tea Party é movimento religioso (não
interessa a religião). Ayn Rand era apaixonada defensora do aborto... mas Ryan é
antiabortista fundamentalista fanático. Farejo problemas.
De
fato, não acredito nem na imagem de intelectual nem na imagem de político
“ético” que Ryan anda divulgando. Há algo de falso, no homem. Acho que nem Ayn
Rand confiaria nele. Se, pelo menos, aparecesse um Gary Cooper, para a
vice-presidência...
Notas dos
tradutores
[1] Sobre Ayn
Rand, há longo verbete em português, na página (e onde mais seria?!) do
Instituto Liberal, primo irmão do facinoroso Instituto
Milênio.
[2] Não por
coincidência, é claro, o livro “A
nascente” é acessível, em .pdf, em tradução recente para o português
[2008, SP: Ed. Landscape, trad. Andrea Neves Holcberg e David Holcberg], na
página do portal O Globo.
[3] Ver sobre o
filme “The Fountainhead”
(dir. King Vidor, 1949).
[4] A edição em
português de “A revolta de
Atlas” também foi feita em parceria entre a Ed. Sextante, de SP, e o
Instituto Milênio. Pode ser baixado em .pdf.
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