terça-feira, 14 de agosto de 2012

Intervenção na Síria: as perigosas consequências globais


10/8/2012, Sami Ramadani - The Real News Network, TRNN
Entrevista  traduzida pelo pessoal da Vila Vudu

Sami Ramadani é conferencista de Sociologia da London Metropolitan University


PAUL JAY (Jay), EDITOR CHEFE, TRNN: Bem-vindos à The Real News Network. Sou Paul Jay, falando de Baltimore.

Continuamos aqui nossa série de entrevistas, para entender melhor as forças em disputa na Síria. Hoje, recebemos Sami Ramadani, professor Livre Docente de Sociologia da London Metropolitan University. Ramadani foi refugiado político do regime de Saddam, no Iraque. Hoje, fala conosco, de Londres. Obrigado por nos receber, Sami.

SAMI RAMADANI: Você é muito bem-vindo.

JAY: Os telespectadores que não assistiram às primeiras entrevistas, assistam, porque aqui prosseguimos na discussão. Por que a Rússia está tão empenhada em defender a Síria, mesmo sabendo que defender a Síria implica confrontar-se diretamente com os EUA?

RAMADANI: Há várias questões que envolvem a Rússia. Acho que, depois da Líbia, os russos acordaram para o fato de que só restava a Síria, em todo o mundo árabe, com ligações importantes com a Rússia. Rússia e Síria têm ligações importantes há décadas. Os russos armam o exército sírio, no confronto com Israel, há cerca de 50 anos. Têm uma base militar em Tartus: a única base militar russa no Mediterrâneo. Sim, é uma base pequena, nada que se compare ao que os EUA têm na região, mas é uma base na qual os navios russos podem, no mínimo, ser reabastecidos. É uma presença russa importante, no Mediterrâneo.

Além disso, os russos entendem o jogo regional exatamente como os norte-americanos o entendem: se a Síria cair, o alvo seguinte será o Irã. E o Irã, obviamente, está à porta da Rússia, os dois países têm fronteiras comuns; e o Irá é aliado estratégico muito importante para a Rússia, em termos da geopolítica mundial, não só regional. Quero dizer: combine Síria e Irã, e é fácil ver que a Rússia sente-se diretamente ameaçada.

JAY: Até que ponto a Rússia levará tudo isso? Quero dizer: se os países ocidentais, particularmente esses dos quais temos falado, Turquia, Arábia Saudita, Qatar, EUA e alguns europeus pularem nesse barco, quero dizer, se decidirem intervir mesmo sem resolução da ONU, — e não sei se o farão, mas talvez... — até que ponto irá a Rússia, no sentido de... continuarão a apoiar a Síria em conflito armado direto contra o ocidente? E a que isso levará?

RAMADANI: Bem... Sou pessimista. Entendo que em cinco, dez anos, essa coisa toda pode levar a uma guerra mundial, porque, se o Irã for atacado nessa conflagração, nada garante que a Rússia, ou, quem sabe, a China, não intervirão? Infelizmente, Paul, estamos falando de um mundo extremamente perigoso.

Uma das razões pelas quais digo isso é que nós estamos também numa crise mundial da economia capitalista. A economia capitalista mundial, inclusive a economia dos EUA, está em crise profunda. E se se estuda a história, sempre aconteceu: crises econômicas profundas sempre levam a guerra. É tendência quase espontânea. Não exige longo planejamento, porque o complexo industrial militar é massivo. É provavelmente o segmento mais importante da economia, e tem considerável peso político. E se guerra significa que o complexo militar industrial ficará mais satisfeito, a guerra é inevitável. Sinto que nessa muito perigosa linha de contato em que se aproximam Síria, Líbano, Irã, Iraque, sempre se fala de um enorme potencial de conflito.

JAY: Seu argumento não é só de que a intervenção estrangeira interferirá na natureza do conflito na Síria e será desastre para o povo sírio, mas também, como você escreveu num de seus artigos, será um desastre para todo o planeta.

RAMADANI: É exatamente o que penso, por causa dos problemas regionais circundantes e a situação econômica mundial, e o fato de que a Rússia está recobrando parte do poder militar que perdeu. A situação econômica melhorou, na Rússia, nos últimos dez anos. Isso, porque, depois do colapso da União Soviética, a Rússia passou por período de desestabilização, nos anos 60s e 70s, muito pobre, economicamente. E já recuperou, pelo menos em parte, o que perdeu.

A China, sim avançou muito, economicamente e militarmente. Não acho que estejam em posição que obrigue esses dois países a aceitar um mundo totalmente monopolar, com os EUA na posição dominantes, nem, sequer, a OTAN.

Estamos falando também de outros países emergentes, e eles podem pular no barco com China e Rússia. Não sei da Índia, que ainda está oscilante. Será que os indianos se sentirão ameaçados nessa marcha rumo à guerra? Ou jogarão seu peso com a OTAN e, talvez, ganhem o Paquistão, como recompensa, e o fim da disputa pela Cachemira? Todos esses problemas são interconectados.

JAY: Por isso mesmo, eu disse, na entrevista anterior, que as coisas estão semelhantes, em vários sentidos, ao mundo de antes da Ia. Guerra Mundial, embora, se se considera a depressão, já parecem mais, também, com o período imediatamente antes da IIa. Guerra Mundial. Mas, seja como for, é situação extremamente perigosa. Voltemos à Síria. Prossiga, por favor.

RAMADANI: Só há mais um ponto a acrescentar, Paul. Uma das razões pelas quais a Rússia está-se tornando cada dia mais intransigente na questão da Síria, também como já escrevi, ao analisar a oposição síria, é a oposição democrática, cada vez mais intimamente ligada à Arábia Saudita e aos EUA. Se esses laços não fossem tão estreitos, a Rússia não teria de envolver-se tão profundamente, porque a Rússia não é aliada diretamente de Assad. A Rússia tem interesses na Síria, ou, pode-se dizer, numa Síria que não seja aliada absoluta dos EUA e da Arábia Saudita. A Rússia pode tolerar uma mudança de regime, mas não pode tolerar mudança de regime que resulte na tomada do poder por grupos armados por sauditas, qataris, turcos e norte-americanos.

JAY: OK. Nesse caso, como se sai disso tudo? Sei que nada do que se diga nessa entrevista mudará o mundo. Mas em termos do destino do que você chama de forças mais democráticas dentro da Síria... O que querem esses grupos? O que querem hoje? E o que é possível?

RAMADANI: Pelo que tenho lido deles, todos estão deprimidos. Mas não mudaram de linha. E que outra linha haveria para eles? Afinal, estão oferecendo respostas às demandas do povo sírio. Querem democracia. Querem melhores condições de vida. Mas, de fato, também já estão dizendo: Calma... Se esse conflito armado continuar, a própria Síria estará sendo ameaçada, a sociedade síria não resistirá a esse tipo de ataque, teremos aqui situação semelhante à do Iraque, talvez ainda pior. De fato... que mais poderiam dizer?

JAY: É, é o que também tenho ouvido dos sírios com quem converso, amigos – e são pessoas que não, de modo algum, foram ou são favoráveis à intervenção: são pessoas que não são favoráveis ao ocidente, desse modo. O que querem é uma Síria independente, país soberano. São simpáticos ao que você chamou de oposição democrática. São contra a militarização da oposição. Mas dizem que a única saída, agora, é que a família Assad deixe o governo – pelo menos, o próprio Assad. Que essa seria condição indispensável para iniciar negociações, porque enquanto Assad permanecer no poder, prosseguirá a militarização do regime e das disputas. Dizem também... As forças pró-militarização talvez não pensem assim, mas a sociedade síria tem meios para fazer valer sua ideia de que, agora, a luta tem de parar. Depois de Assad deixar o governo, mais ou menos como aconteceu no Egito... Não pode haver mubarakismo sem Mubarak. De qualquer modo, a situação não é semelhante à no Egito. Que lhe parece? Você acha que os sírios melhor fariam se exigissem simultaneamente o fim da intervenção e o fim do governo de Assad?

RAMADANI: Minha opinião... Bem... O caso é que eu não acho que o problema seja Assad. Assad é um símbolo. O que está acontecendo é que, porque a oposição armada deseja o fim do governo de Assad, o povo e as elites em torno do regime não deixarão que Assad deixe o governo, mesmo que decida renunciar. O que quero dizer é que... Aquela elite síria e boa parte do povo sírio já sabe que a atual oposição armada não é a legítima oposição síria. Se fosse, seria possível negociar. Seria possível negociar com qualquer tipo de oposição democrática. Se houvesse oposição democrática, seria possível, até, negociar a partida de Assad.

JAY: Tenho conversado com jornalistas que estiveram lá, e, sim, viram apenas uma mínima parte do que está acontecendo, mas falaram com membros da oposição, inclusive com grupos envolvidos na luta armada, e dizem que muitos combatentes não são islamistas hardcore e que não é só o Exército Sírio Livre associado aos sauditas, que há muitos combatentes, locais, de lá mesmo, que lutam legitimamente pelo fim da ditadura de Assad. Não se pode dizer que não sejam legitimamente sírios.

RAMADANI: Não, não. Você tem toda a razão. Não se discute. Falei da principal força militar, do pessoal que está recebendo os rifles com visão noturna e mira telescópica, do pessoal da OTAN, dos grupos que estão recebendo foguetes antitanques.

JAY: E há boatos hoje de que estão recebendo agora mísseis equivalentes aos Stingers. Parece que receberam 20, 30 mísseis capazes de derrubar helicópteros.

RAMADANI: Perfeitamente. Foi exatamente o que os EUA fizeram no Afeganistão, com os mujahideen contra as forças soviéticas, se você lembrar. 

JAY: Porque é importante distinguir, porque nem todos os combatentes envolvidos na luta armada são essa gente de que você fala aqui.

RAMADANI: Minha opinião é que os que estão na ofensiva são, principalmente, os que recebem apoio de fora. Mas há combatentes que defendem sua família, e que estão em posição mais defensiva. E há as forças democráticas na Síria, cuja literatura andei lendo. Eles referem-se a esse ‘outro povo’. Eles falam muito dessas pessoas. Dizem que conhecem os que andam armados, e que estão armados para proteger as respectivas casas e vizinhança, ou a própria família. Esses, absolutamente, não empreendem ofensivas; não desencadeiam operações repentinas em Damasco ou Aleppo. É preciso demarcar esse tipo de diferença.

Essas forças, que estarão na ofensiva, tentando ocupar vizinhanças e cidades. Conseguiram ocupar Aleppo, porque está a poucas milhas da fronteira turca – muito próxima, e controlam as linhas de suprimento que vêm da Turquia. Criarão ali uma situação semelhante à que criaram em Benghazi na Líbia, de modo que o armamento mais pesado possa entrar na Síria e estejam armados para iniciar guerra frontal em território sírio. Mas essa agenda é agenda estrangeira.Não é agenda do povo sírio.

JAY: De fato, se houver intervenção armada, a força de intervenção mais provável será turca? Não vejo outra. Quero dizer, sim, os americanos, mas é difícil que, em ano eleitoral, Obama inicie mais uma guerra ali. Quero dizer... Talvez alguma coisa aérea. Mas, se a guerra acontecer no solo, terão de ser os turcos? Talvez os sauditas?

RAMADANI: Os turcos, sim, sem dúvida. Mas isso não significa que seja o exército turco. Há ali muitos árabes que falam turco. E há sírios que vivem na Turquia, há sauditas, qataris, líbios, os quais, por falar deles, chegaram às centenas à Turquia e já se infiltraram na Síria. Hoje, combatentes de todo o planeta estão sendo convocados para luta guerra jihad na Síria. Há também mercenários, como escreveu o conhecido jornalista egípcio Mohamed Hassanein Heikal, contratados pela empresa Blackwater. São 6 mil mercenários treinados nos Emirados, que falam árabe e que já entraram na Síria. Estamos, de fato, falando de ampla e complexa campanha de desestabilização.

Acho que os EUA estão em situação semelhante à do Iraque: se não conseguirem controlar a situação, melhor que o país seja destruído. Sei que é terrível dizer isso. Mas foi ideia de um político dos EUA, terrível, que sugeriu que, se você não consegue obter o controle, melhor que o local seja destruído. Horrível que seja, é o que acontecerá na Síria. Se não conseguirem impor lá um governo que agrade a eles, destruirão completamente a sociedade síria. É solução que também se encaixa bem na agenda israelense.

JAY: Seja como for, o que você acha que a sociedade internacional, gente de fora, deveria exigir agora?

RAMADANI: A primeira demanda teria de ser o fim dos combates. Que o regime sírio retire os soldados. A oposição armada teria de parar de lutar, abrir espaço para um cessar-fogo. Mas o movimento teria de vir também da Arábia Saudita, Qatar e Turquia e EUA, que não querem o fim dos combates.

JAY: Tenho de concordar que o único modo de acontecer o fim dos combates seria se sauditas, qataris, turcos e norte-americanos cortassem o fluxo de armas que continuam a entrar na Síria. Mas nada, absolutamente nada, sugere que lhes interesse essa via de ação. Estão operando na direção absolutamente oposta a essa.

RAMADANI: Sim. Acho que se não cortarem o fluxo de armas e dinheiro, e se não acertarem algum legítimo cessar-fogo, haverá terrível guerra civil na Síria. E não só as minorias sofrerão – 40% da população da Síria é constituída de grupos étnicos e religiosos minoritários.

JAY: Mas meus amigos sírios querem o contrário disso, querem maior pressão internacional para por fim ao governo de Assad e para que se crie espaço para negociações.

RAMADANI: Entendo que a posição de Assad ficará muito, muito precária, se a oposição armada depuser armas. Não haverá mais qualquer explicação para a permanência de Assad no poder. E as elites na Síria dirão... Ei! Aqui há uma janela! A oposição armada parou porque sauditas, qataris, turcos e norte-americanos cortaram o suprimento de armas; então, podemos retirar nossos tanques. E é hora de nos livrarmos de Assad. 

Essa coisa é dinâmica e a dinâmica nesse momento é que a agenda externa não está dizendo apenas “derrubem Assad”; está dizendo também, além de “derrubem Assad”, que “aceitem um regime pró EUA, pró sauditas, em Damasco”. Se essa agenda não for alterada, o regime de Assad lutará até o último homem e as elites locais lutarão com ele e por ele. Nem as minorias farão oposição a Assad.

JAY: Entendido. Muito obrigado pela entrevista, Sami.

RAMADANI: Você é sempre bem-vindo.

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