Publicado
em 02/08/2012 por Urariano
Motta
Recife
(PE) -
Nos escuros, angustiantes anos de 1970, do Recife a Olinda nada havia melhor do
que ir aos domingos à casa do Gordo. Era uma casa sem piscina, sem sala de
recepção para as visitas, às vezes até sem cadeiras, sem banheiro decente, sem
conforto.... só nos falta mesmo dizer se era uma casa. Era. A casa era o Gordo.
Era ele que fazia e dava alma e vida e graça e civilização àqueles dois quartos
com cozinha, com uma pequena área livre à frente, que chamávamos de terraço. Ali
nos recebia. Sentávamo-nos no chão, com muito
prazer.
Chegávamos.
Para não melindrar nem ferir ninguém, falarei de nós como se falasse de um
bloco, sem aprofundar individualidades. Chegávamos, um dos mais originais e
desesperados grupos de amigos daqueles anos.
Chegávamos
loucos por e para beber, como se já loucos não fôssemos o suficiente naquelas
loucas condições. Aprendíamos ali, sentados pelo chão de cimento, que o melhor
da espera do almoço prometido era a espera. Isso porque enquanto não vinha a
grande hora ouvíamos frevos de Capiba, de Nelson Ferreira, de Edgard Moraes, de
João Santiago, e bebíamos cachaça, e cerveja, e cachaça, que explodia, para os
desatentos, nesta alegria:
“Eu
quero entrar na folia, meu bem
Você
sabe lá o que é isso?
Batutas
de São José, isto é
Parece
que tem feitiço
Batutas
tem atrações que
Ninguém
pode resistir
Um
frevo desses que faz
Demais
a gente se distinguir.
Deixe
o frevo rolar
Eu
só quero saber se você vai brincar
Ah,
meu bem, sem você não há carnaval
Vamos
cair no passo e a vida gozar”
Quem
nos visse a gritar a última estrofe mal podia adivinhar que gritávamos “vamos
cair no passo e a vida gozar”, porque tudo que menos possuíamos na vida era o
gozo. E era de matar de emoção cinco seis homens solitários roucos e desentoados
num “Eu quero entrar na folia, meu bem...”. Que bem, que bem? E por isso
bebíamos, com sede e com volúpia, porque mais adiante vinha mais
crueldade:
“Se
eu pudesse lhe daria
o
céu, a terra e o mar
Mandaria
pratear toda a avenida
pra
ver você passar...”.
Ah
se fôssemos árabes do gênero dos pobres sheiks, o que não faríamos? De que
paraísos não tomaríamos posse? Água Fria, capital do mundo! Mulheres desejadas
na infância arrancadas das tumbas! Burguesas bonitas transformadas em gentis
cadelas! Nelson Ferreira mais amado e ouvido que Cole Porter! Poesia para todos,
para os miseráveis de tudo principalmente... Naquela hora, no entanto,
reuníamos todos os nossos haveres, a riqueza da nossa leitura mal digerida, que
não tínhamos outra.
Por
isso o Gordo nos convidava. Existia coisa melhor que uma solidão compartilhada,
uma “solidão socializada”, como poderíamos então dizer? Por isso o Gordo nos
convidava, não para que nos abrigássemos de nossas feridas, pois não poucas
vezes nos roçamos e nos sangramos mutuamente. Não para isso nos convidava. Ele
nos chamava para algo mais solar, dominical, feliz.
-
Domingo, lá em casa, bobó de camarão. Feito por mim!
Ficávamos
a olhar a promessa maravilhados. De que não era capaz o nosso Balzac? Bobó de
camarão é um prato baiano, e o Gordo, um genuíno pernambucano, ia nos dar mais
uma prova da sua versatilidade. Bobó de camarão feito pelo leitor de
Kazantzakis, servido pelo extraordinário conhecedor de frevos, pela autoridade
na arte de rir do próprio sofrer! Por isso, como se fosse por isso, chegávamos e
chegamos. Na sala, tocava Luiz de França. Aguardente no terraço, para todos.
Menos para o Gordo, que se demorava a vir.
-
Cadê o Gordo?
Está
na cozinha, a sua mãe nos responde. Então um de nós se levanta, para ver com os
próprios olhos a oitava maravilha dos nossos domingos, o Gordo em ação. E vê, e
vê, diante de um imenso caldeirão, o nosso amigo com uma colher de pau em uma
das mãos e na outra um livro de receitas. Que decepção: tudo no Gordo era
conhecimento maduro, solidificado. Isto não batia: com um livro a copiar a
comida baiana, logo ele, o Gordo, que era a anticitação livresca. E por isso,
com raiva, o amigo lhe faz a censura:
-
Gordo, cozinhando com um livro, Gordo?!
Ao
que ele responde no ato:
-
Sim... Mas o autor é marxista!
E
a raiva se desfez. E a gargalhada, no terraço, estrondou. Esse era o Gordo, essa
era mais uma do Gordo.
Bêbados
e sem matar a infelicidade à noite regressávamos. Alguns de nós sem saber para
onde ir. Mas o saldo era bom, Gordo, eterno Gordo. Saibas, graças a ti, aqueles
domingos nos davam a resistência para mais uma semana.
Enviado por Direto da
Redação
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