terça-feira, 25 de setembro de 2012

Mulheres como uma certa Maria*



Enviado em 25/09/2012  por Urariano Motta**

Como um fenômeno de paralaxe as coisas não estavam onde pareciam estar. As estrelas miúdas de todos se deslocavam para outro lugar, distante e distinto daquele beco, longe da existência civil dos moradores, das roupas e feições apresentáveis. Era como se todos estivessem nus, mas a fazer de conta que não estavam. Havia os meninos  do sapateiro cotó, que mais pobres saíam nus para a rua, descalços, porque afinal eram filhos do cotó. Ainda assim, nus como índios, não perpetravam a desgraça descortinada por dona Maria num certo sábado, ao evitar o sexo precoce entre crianças.

Mas a desgraça, para dona Maria, era outra desgraça. Quando ela contou para a sua melhor amiga ter evitado aquilo, ela se referia à desgraça moral, não tanto a uma penetração sexual na infância, mas pelo que ficaria por toda a vida na menina Ritinha. Era um ato além do dilaceramento físico. À distância, ele considerava que ela parecia adivinhar a curta vida, quando dirigia as forças para os valores de coragem, decência e da mais rasgada generosidade. Gente assim, pensaria muitos anos depois, tem um encontro com a eternidade do ser, mesmo quando vem, age e some rápido. A sua eternidade é um rastro de atos duradouros, ainda que guardados em passos íntimos. Se fosse compará-la a uma imagem mecânica, seria como uma ampulheta que virasse todo o conteúdo de uma vez, deixando uma permanência na retina infinda. Mas não é mecânico. Seria como o compositor Mozart, diria, 53 anos depois. Com esse Mozart, ele queria dizer para si mesmo que era um homem culto, que extrai conceitos das informações do mundo, que não era mais um menino do beco. E nesse movimento de vergonha se escondia no conceito. Mas o essencial era antes, o essencial era o primário das ações de dona Maria, atos jamais vistos pelos moradores do beco, que ele sentia e sentiria muitos anos depois.

Para os vizinhos, dona Maria era o que era, e com isso eles queriam dizer que ela era a sua pessoa física apenas, carnes, ossos e roupas. Deste modo e maneiras eles a viam: mulher – e aqui vai um gênero e universo de entendimento bárbaro -, gorda, baixinha, com um aspecto, ar, que não devia ser o da sua condição. Viam como um contrassenso absoluto que aquela pessoa, digo, aquela mulher gorda e baixa, não se desse conta da sua espécie de gente. Num tempo das divas glamurosas do cinema, num tempo de massacre da beleza anônima de subúrbio, dona Maria era, não passava de “uma albacora”. Cruas, essas palavras além da redução a um peixe, pois mulheres apenas se comiam e se tornar alimento era sua razão de ser, tal definição, difamação de Maria, amesquinhava-a numa coisa aquém do que entendiam o gênero feminino, pois era, além de mulher, gorda e baixinha, larga como as albacoras, que não eram uma dieta ideal aos comedores de carne bovina. Peixe gordo, congelado, a se comer apenas nas sextas-feiras santas, em sinal de penitência.

É curioso, no entanto, como as mulheres vizinhas possuíam de Maria outra visão. Elas a reconheciam como uma senhora decidida, solidária e resguardada de merecer piedade. Ela rejeitava, “me repugna”, como dizia, qualquer piedade para a sua condição. Mulher brava, de coragem e de raiva. Do gênero e da forma daqueles bravos a quem os fracos não temem, porque sabem que essa bravura se dirige somente contra o injusto mais forte. Lídia, a sua jovem comadre, dela falaria na lembrança em 2012: “Ela era uma mulher bonita, de rostinho redondo, com os olhos pequeninos, muito vivos. Para mim, era uma boneca índia”. E com os olhos rasos d’água se balançava na cadeira, como a lembrar em silêncio a injustiça que atravessa a vida de mulheres como Maria, uma injustiça que também era feita contra Lídia, depois de passar por fracassados casamentos. A feminilidade, nelas, para elas, era um sofrimento. O que nos homens era desejo, danação, para elas era um vexame, como um dia na Ponte Duarte Coelho em que Lídia recebeu um vento tão forte, na chuva, que a impediu de caminhar, porque a saia levantou e as coxas ficaram à mostra. “Dona Maria era muito bonita, com os olhos miúdos, negrinhos”, repete. E cala, e embarga a voz. “Vocês não querem sapoti? Tá fresquinho”, oferece.

Quando ele a escuta, dá uma bruta e brutal vontade de a abraçar, de lhe dizer “eu compreendo os seus sapotis, eu compreendo a sua dor, eu sei da sua infelicidade, eu sei do que você não se queixa, do que a magoa, eu sei, amiga de minha mãe”. E mais, amarga como uma proposta e uma promessa que é uma formulação de princípio: “Eu não vou calar o seu mundo”. Ele sabe, e não diz nem a si mesmo, que revê em Lídia aquela Maria que se foi tão pletórica, vermelha, no vigor e sangue farto na altura dos seus 30 anos. Ah, é da sua natureza a reencarnação, ah, é do seu gênero, gênese e ser de transmigração, como se o espírito quisesse um novo corpo para uma vida que não foi possível. Dói nele uma dorzinha doce e fina porque Lídia não é sua mãe, mas por ela será capaz de a ouvir e de lhe falar. Com a intensidade aguda de um violino em uma romanza, naquela, ele sabe, guardada em seu silêncio, naquela maldita e fina romanza número 2 em fá maior. Porque tudo então lhe recorda a senhora gorda, albacora, albacora brava e bonita como uma bonequinha índia. Ele a veria reconstruída sempre como uma mulher toda e tão só ternura. Desde 1956, passando por 1957, 1958, os anos de sua terra de felicidade, ele a guardaria nos traços e feições. Uma guarda de modo inconsciente. Era um modo retrato, daqueles no porta-retratos, em que só aparecem definidas as linhas do rosto até o pescoço, o que era um modo geral dos porta-retratos, e ao mesmo tempo, em Maria, uma exclusão, pois lhe negavam a totalidade do corpo. Ele a veria, fortalecido na lembrança por aquele retrato, como o rosto da mulher brava que para ele era só suavidade.

Depois da sua morte em 1958, ele menino a reencontraria como naquele retrato em sonhos, antes que realidades mais duras tomassem o lugar daquela vida que não aceitava o seu fim. Se fosse escrever sobre ela agora, a pena, a caneta, ficaria torta em estado de refração, porque seria vista entre a água dos olhos. Um arrepio irreprimível tomaria conta do seu braço. Como havia podido amar aquela mulher por tantos séculos num buraco de silêncio? Que covardia maldita era aquela de negar se negando? Acaso não era ele apenas um filho daquela gorda e vasta generosidade?

Então Maria, subida pelas crenças de conforto da igreja católica, alimentada pela piedade de pessoas que não queriam ver um menino órfão, então ela estava em sua camisola quando partira pela última vez para a maternidade, mas sem a agonia que a fazia gritar “eu quero morrer com meu filho, eu quero morrer na minha casa”, e naquele desespero que ironia, ela chamava aquilo a minha casa. Então ela, com essa camisola purificada, como se fosse possível Maria sem sexo e sem dor, lhe aparecia no sonho erguida nas nuvens, bela, terna e calada, porque falava a sua imensa presença. E aqui, ele não sabia se a mãe, para o menino, assimilava qualidades da mãe de Jesus. Não sabia, porque à própria mãe de Deus, pouco tempo depois, na crise aguda de carinho e sexo numa adolescência precoce, num tormento sacrílego, atribuíra à mãe de Deus uma vulva, que confundia com boceta, e clamava, numa tortura, “boceta de Virgem Maria, boceta de Virgem Maria”. Então não era possível saber, logo depois daquela morte, se atribuía à Maria mãe de Jesus características da mãe que se fora, ou se trazia para a  sua mãe identificações obliteradas, vedadas à mãe de Jesus. Aquilo que, num pecado mortal e hediondo, para ele que então nem sabia dos verdadeiros pecados mortais dos homens, aquilo que era o mais baixo da abjeção para ele, a buscada boceta de Virgem Maria, ele não sabia nem adivinhava de longe que fosse a boceta da própria mãe, que vira tantas vezes no banho com ela, ambos nus debaixo do chuveiro. Mas ali, quando estvam sob a mesma água, a boceta não tinha esse lado de miserável heresia e pecado, porque ele estava ao lado da boceta molhada de sua única Maria, e não era possível saber que com ela possuía uma relação de feto e afeto. Seria duro para ele, na maturidade, escrever tal descoberta, porque mais que um pecado “não passarás!”, tal recordação o revolvia e lhe dava uma dor a ponto de paralisá-lo. Pois como e difícil voltar à inocência de menino!

Infância, lembrava com os olhos úmidos, fechados, com vontade de gritar: Infância, tu eras a liberdade! Agora, ao se procurar num longínquo passado ele parecia um menino que olhava por um buraco da fechadura ou espionasse por uma porta entreaberta. O menino que ele via pulava a infelicidade. Saltava acima, rejeitava todos os motivos de ser infeliz. Assim como todas as crianças, era de sua natureza pular os motivos de infelicidade. Dizendo melhor, para maior clareza, no próprio momento infeliz, no instante mesmo de desgraça, o menino não residia. Dos momentos mais trágicos ou cruéis ele retirava células de alegria. Como na distante hora do enterro de Maria, ele vestido com roupa contrabandeada, “slack”, e os vizinhos horrorizados com sua insensibilidade, porque o menino dizia, como se estivesse feliz: “Eu hoje vou andar de carro. Meu pai disse que eu vou pro cemitério num carro”. Isso foi dito já de tarde, na hora de seguir o caixão, onde estava o corpo amado da sua mãe, aquela Maria entre flores, aquela entre os cheiros nauseantes de flores, que passariam a lhe causar repugnância por toda a vida, como se flores fossem cúmplices da morte da sua mãe. Era já de tarde, ele saberia muito depois, enterraram-na antes que se cumprisse o rito das 24 horas, talvez pelo feto de nove meses que ela carregava no ventre, e essa razão prática, médica, legal, era de uma crueldade tamanha que ele e todos adultos esqueceram,  quiseram esquecer, e porque quiseram, esqueceram: o feto estava na barriguda, coberta de flores. Ocultavam-no como se oculta um dejeto – a vida de Maria -, assim mesmo, entre travessões. Tudo era tão primitivo. Tudo era tão bárbaro.

Como se podia viver sob grades tão rudes? As coisas todas conspiravam para a morte. Sem médico, sem alimento razoável, sem civilização. E no entanto, o menino mostrava um instante de felicidade, porque se grande é a desgraça do mundo, mais forte é o inconformismo com essa desgraça. Não seria, pensa 54 anos depois quando reencontra Lídia, não seria essa repulsa à desgraça onde estava o corpo, não seria uma fuga de loucura? Não seria uma fuga às avessas do pesadelo, ou dito melhor, uma saída do pesadelo para o sonho? Como se a desgraça real não passasse de um brevíssimo estágio para os campos de sol? Então ele se disse “é bom minha mãe morrer, eu vou andar de carro”, ele recordaria a frase assim, como uma lição clara da incompreensão das pessoas, pela censura que ouviu dos vizinhos, escandalizados: “Menino, tua mãe morreu!”. Mas aquela morte para ele então não era um réquiem. Era um instante feliz de andar de táxi. Era algo igual, ou pior, que ter direito a comer maçã, como ele comeu pela primeira vez, quando estava com febre e o corpo cheio de perebas. “Pereba”, ele recordava, porque ferida então era pereba, pênis era bilola, umbigo era imbigo, comer era o mesmo que bolo de feijão e farinha amassado e beijado pelas mãos de sua mãe. Sempre assim, a infância era os átomos, ou melhor, lhe dava vontade de sorrir, com aquele sorriso que aprendera, de sorrir para o ridículo da tragédia: a infância era subelétrons de felicidade. Algo assim como uma nuvem fugidia, ou, em momentos de crise, uma ausência de domínio em um corpo concreto em convulsão. Mas como nuvem não era indeterminada. Se o instante não era exato, tampouco era indeterminado.

Então lhe vinham os minutos do menino bonito que fora. Ah, partículas particularíssimas subatômicas. Grãos de pó que cresciam pela intensidade como se fossem bombardeio de nadas, porque eram invisíveis, mas estrelas poderosas fulgurantes no sentimento. Ah estrelas que são um sorriso, infinitésimos do íntimo que se guarda na gente, esses momentos passavam todos por Maria. Por que era assim? Nos anos de juventude clandestina, sob a leitura dos manuais simplificadores do marxismo, ele dizia que tal coisa era resultado do conflito subjetivo versus objetivo. Mas isso era apenas uma fórmula de apagar incompreensão, o que apagava também o entendimento. Pois a incompreensão não se resolve enquanto a gente não a encare. Esses momentos de beleza, que passavam pelo curto tempo em que estivera com Maria, eram uma felicidade que estava nela, nele e em seu breve encontro. E lhe chegavam duas ou três rosas para a memória seletiva. Uma para aquele dia em que desenhou do modo mais tosco e primitivo um avião, ou um projeto de infância para um avião, aproveitando o papel mais barato que havia na casa - uma casa, de resto, constituída de todas as coisas baratas -, um papel de cor de goiaba apagada, áspero e crespo que embrulhava pão. O lápis tentara alguma coisa semelhante a um avião, com duas asas sem perspectiva ligadas a um cilindro com nariz. Aquilo para dona Maria foi uma descoberta. O quê? então o filho era um artista. Então o seu filho era um desenhista, um pintor, e com tais revelações saiu a mostrar às vizinhas o rascunho do que poderia ser um avião. Com que júbilo a senhora gorda e baixinha exibia o fruto do seu fruto. As senhoras vizinhas, as mais piedosas, tentavam ser agradáveis no comentário “é um bom começo, não é?”. As mais sinceras, que nisso possuíam também a qualidade de ser “verdadeiras”, distinção que as pessoas do povo dão às grosseiras, apontavam a falta de rabo no avião, uma asa mais estreita e menor que a outra, o nariz pouco curvo, e diziam “ele tem que aprender a copiar”. A essas, para não ser igualmente grosseira como as comadres de Molière, que se diziam “verdades” em verdadeiros insultos, a essas dona Maria arrancava-lhes das mãos a obra do filho e passava para outra casinha, onde encontrasse admiradoras mais solidárias.

Tão calorosa, sanguínea ela era que, aos 30 anos de idade chorava de alegria, ou de raiva, ou de tristeza com freqüência. Ele jamais soube se aquilo não era também um sinal da sua curta vida, uma antecipação de sentimentos e emoções que fazem chorar com facilidade as pessoas de mais de 50 anos. Não sabia. As pessoas então, com seu português rude, diriam que aquilo em dona Maria era “instinto”, coisa intestina. E com isso queriam dizer alma, espírito, qualidades e fenômenos muito além das tripas. Mas ainda assim, com esse intestino, um nome precário cuja poesia remete a baço, fígado e demais vísceras, ainda assim elas queriam dizer algo que sendo íntimo também era intuição, um modo de ser que não se explica em razões concatenadas.  Então, por intestino e espírito, dona Maria chorava ao exibir calorosa o desenho do filho. Isso,que ele viu, a tomada de sua primitiva obra para divulgação entre as vizinhas, foi um momento permanente de felicidade. Isso veio de Maria, veio dele, veio do tempo e do papel de embrulho de pão. Isso era o resultado da dialética do subjetivo e objetivo, que ele repete em 1970, sem se dar conta que na pura vida estava, era o fenômeno, sem que desse tal explicação. A vida não era conceito. Ela sempre pulava, pula, no tempo de clandestinidade ele não podia adivinhar, a vida sempre pula do conceito, a vida é mais magnífica e surpreendente que o maior e melhor enquadramento dialético.

Se pudesse pintar dona Maria a carvão, a bico de pena de carvão, com um carvão pontiagudo, grosso e agudo, sem que apagasse a pintura adiante, pois não seria fácil apagá-la, diria:

“Acho que somente pude vê-la como a minha mãe depois da sua morte. Antes, ela era uma pessoa amiga, amiga mais velha, íntima, que havia me dado de mamar até os cinco anos. Sei que ela era de baixa estatura, sei porque outros disseram, sei que ela era bonita, sei porque restou dela uma foto, aquela última imagem que os pobres guardam para o retrato da sala. “A foto da falecida”, diziam ao apontá-la, e para mim, mesmo depois de tê-la visto no caixão, ela era “a falecida”. E no entanto era Maria, dona Maria, a minha mãe, de quem tive a felicidade de ser filho até os oito anos, mas a quem não dei a felicidade, ou pelo menos uma compensação, alguma coisa de arremedo de feliz, de fazê-la saber que eu fiz um desenho dela a carvão, depois de ela ter me falado no cemitério em 2011. Isso ela não soube, não pôde saber de experiência viva. Mas deve ter desconfiado pelo avião que um dia fiz, pelas letras a carvão garatujadas lá na frente do mercado público, pelos desenhos que eu fazia na areia do beco, copiados dos de Euclides, um soldado de polícia, débil, que sobrevivera a um AVC. Pois essa Maria, gorda, baixinha e bonita, era mulher de coragem, de sangue nas veias, como se dizia então, de sair com o filho de casa sem nada, por não suportar o mando arbitrário do marido.

Era mulher pobre e sem vergonha de ser pobre, que pelo exemplo ensinou a não ter vergonha de nossa condição”. E assim foi, nas primeiras páginas, o seu desenho a carvão de mulheres como uma certa Maria.
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*Do romance inédito O filho renegado de Deus.
O texto foi selecionado no Festival Internacional de Direitos Humanos, com o título de “Mulheres como uma certa Maria” e percorrerá 19 cidades latino-americanas em mostra.
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O livro de Urariano Motta** publicado pela Boitempo, Soledad no Recife, já está à venda em versão eletrônica (ebook).
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Urariano Motta** é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997). 

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