quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Mundo Árabe: “Que fim levou a primavera?”


18/9/2012, Marco d’Eramo* - Il Manifesto, Itália
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

God bless you and may God bless the United States of America
Pres. Barack Obama (em todos os discursos nos EUA) [1]

Há 15 meses, o jornal Il Manifesto organizou conferência sobre as primaveras árabes, sob o mote “A esperança na rua”. Hoje podemos perguntar-nos o que foi feito daquela esperança e o que foi feito da rua. Já naquele momento as intervenções e testemunhos foram cautelosos, mas ninguém, certamente, podia prever a extensão da regressão fundamentalista. Hoje, a Irmandade Muçulmana governa o Egito, homólogos dela guiam Túnis, e integristas financiados e armados por Qatar e Arábia Saudita preparam-se para ocupar a Síria.

Para não falar de algumas derivas aparentemente marginais (embora nada tenham de marginais), como a insurgência islamista no Mali. Onde antes governavam ditadores, hoje dominam tendências teocráticas.

Robin Blackburn
Mas, será, de fato, regressão? O historiador, ensaísta e socialista britânico Robin Blackburn (1940), que foi editor da New Left Review, defende, há tempos, duas teses. Uma, relacionada à primeira revolução democrática na Europa, a revolução britânica de Oliver Cromwell e seus puritanos (1642-1651). Foi em nome do fundamentalismo cristão que, pela primeira vez na história, houve movimento popular suficientemente forte a ponto de cortar a cabeça de um rei (Carlos I, em 1648). E os pais fundadores da democracia americana foram os peregrinos do Mayflower (1620), outros fundamentalistas puritanos, que fugiam de perseguição religiosa.

Portanto, a imagem de democracia laica que se teria desenvolvido no ocidente é, no mínimo, parcial: é imagem que só se aplica talvez à versão francesa de 1789 (embora também em Paris os revolucionários tenham sentido que não derrotariam o antigo regime sem nova religião: a da “deusa Razão”). Como se revolução estrutural, virada social radical, tivesse sempre a imperativa necessidade de acolher uma dimensão escatológica, uma motivação milenarista.

Mas até quando as revoluções democráticas europeias nasceram como agitações fundamentalistas religiosas, há de fato entre o capitalismo e o fundamentalismo religioso um vínculo ainda mais ambivalente, explorado de Max Weber (A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo  [2]) em diante. Ambivalente, porque a ética calvinista transpira por todos os poros do capitalismo moderno, mas, por outro lado, a mercantilização de todos os aspectos da vida carrega nela mesma uma carga explosiva profanadora (que Marx admirava).

Daí a duplicidade do Ocidente (se essa categoria tem algum sentido) ante os fundamentalismos. Inclusive do caso da laicíssima França, os estudiosos do colonialismo falam de “paradoxo francês”: os franceses defendem de capa e espada o laicismo de seu Estado, mas suas colônias sempre favoreceram a religiosidade e fomentaram os exponentes clericais. Na mesma sintonia, o multiculturalismo inglês revelou-se, afirma Amartya Sen, como um “multifundamentalismo”, uma vez que sempre privilegiou como interlocutores os líderes religiosos das minorias. Para nem dizer que, nos últimos 30 anos, os EUA foram governados majoritariamente por cristãos fundamentalistas: da moral majority [maioria moral] de Ronald Reagan aos cristãos conservadores de George Bush Jr.

Numa acepção mais mundana, os EUA e as potências ocidentais sempre privilegiaram as suas relações internacionais com fundamentalistas e integristas, não com partidos seculares ou de esquerda. De início, Israel financiou o Hamás, para minar o prestígio de uma organização então “laica”, a Organização para a Libertação da Palestina (OLP). No Paquistão, o general Zia Ul Haq foi preferido ao laico Ali Bhutto. Na Índia dos anos 90’s, o Partido Bharatiya Janatha (fundamentalista hindu) foi usado contra o secular Partido do Congresso, da família Nehru. A mesma preferência pelo fundamentalismo manifestou-se nos Bálcãs nos anos 90s e hoje se manifesta com plena força no Oriente Próximo. Quem os muito laicos ocidentais financiaram na Líbia e na Síria, se não vários salafistas, wahabistas, a Irmandade Muçulmana e outros representantes do confessionalismo islâmico? Que faz o Ocidente, além de incitar ao “choque de civilizações” que tanto diz que evita?

Daí a segunda tese de Robin Blackburn: os povos muçulmanos não tiveram qualquer possibilidade de desenvolver democracia secular; e quando tiveram foram destruídos, como aconteceu ao burguês iraniano (nacionalista) Mossadegh, em 1953.

O único laicismo que o ocidente permitiu foi o das ditaduras, militares ou não: na Turquia (os generais epígonos de Atatürk), no Egito (os militares Nasser, Sadat e Mubarak), na Síria (o general Hafiz al-Assad e seu filho Bashar), no Iraque (o general ad honorem Saddam Hussein), na Tunísia (Ben Ali, chefe da inteligência militar, antes de ser presidente), na Argélia (Houari Boumedienne e Chadli Bendjedid, generais, e esse também ex-chefe dos serviços de segurança do exército) e na Líbia (o coronel Muammar Gaddafi).

É compreensível, pois, que os turcos entendam que já tiveram dose suficiente de laicismo com ditadura e generais; e que se tenham entregue a um partido islâmico. Além do mais, todos esses regimes foram laicos e implacáveis nas relações sociais; a única forma de assistência que o povo jamais encontrou era oferecida por organizações beneficentes islâmicas – modelo Cáritas – uma rede de segurança, contra o desespero generalizado.

Não há pois grande mistério em os egípcios e tunisianos terem optado pelo voto islamista. A pergunta é: se o presidente Mohammed Mursi (ex-dirigente da Fraternidade Muçulmana) será o Cromwell egípcio, ou uma versão árabe e sunita de Khomeini? Se os novos regimes confessionais serão capazes de reequilibrar as escandalosas desigualdades econômicas e sociais, ou se, ao contrário disso, reconstituirão a velha aliança entre o clero e o feudalismo?

Em resumo, se vão lançar o Oriente Próximo na direção de uma pós-modernidade islâmica, ou na direção de trocar um subdesenvolvimento ocidentalizante corrupto por um subdesenvolvimento islamizante beato.
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Marco d’Eramo* é físico e sociólogo italiano, correspondente de vários jornais italianos em vários países, atualmente jornalista de Il Manifesto, jornal do qual foi redator-chefe das editorias “Internacional” e “Economia Internacional”.



Notas dos tradutores

[1] Epígrafe acrescentada pelos tradutores brasileiros. Pode ser visto/ouvido, a seguir:

[2] Pode ser baixado de: A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo– Max Weber (1864-1920)

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