terça-feira, 11 de setembro de 2012

“Controle fantasma”: Palestina e a burocracia da ocupação


26/8/2012, The Real News Network (11’, vídeo)
Transcrito e traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


The Real News Network – Em anos recentes, o controle de Israel sobre os palestinos que vivem nos territórios ocupados mudou. Embora a presença do exército de Israel tenha sido consideravelmente reduzida, a ocupação tornou-se mais ‘invisível’. Em seu novo livro recém lançado, The Bureaucracy of Occupation [A burocracia da Ocupação], a advogada Yael Berda lança nova luz sobre como o braço do exército encarregado de administrar a ocupação e os serviços secretos internos em Israel (o Shabak) exploram todos os pontos de contato com os palestinos, sobretudo o sistema imposto de ‘'autorizações'’ para que palestinos entrem em território de Israel, para tentar recrutar informantes para, assim, aumentar ainda mais o controle sobre a população palestina. Anan Quzmar, ativista da campanha “Direito à Educação”, da Universidade Birzeit, em Ramallah, fala a Lia Tarachansky, do The Real News Channel, sobre a eficácia desse “controle fantasma”.

Lia Tarachansky, The Real News NetworkTerritórios Palestinos Ocupados. Mais de 4 milhões de palestinos vivem na Faixa de Gaza, na Cisjordânia, que para eles é “nossa terra”. Resultado da ocupação israelense, sua liberdade de movimentos e sua economia são quase completamente controlados pelo exército de Israel. Em anos recentes, esse controle teria sido consideravelmente reduzido. Mas, para Yael Berda, advogada, essa redução foi apenas aparente. Berda é advogada de palestinos nos Territórios Ocupados. Seu livro mais recente sobre a burocracia da ocupação, foi publicado em julho.

YAEL BERDA, advogada, autora de A burocracia da Ocupação – Chamo de “soberania fantasma”, porque o controle governamental é total, onipotente, onipresente. Controlam literalmente, não apenas toda a vida, mas, inclusive, todos os movimentos físicos das pessoas. O órgão provavelmente mais poderoso, de toda a burocracia da ocupação é o serviço secreto interno, o Shabak.

Lia Tarachansky, The Real News Network – Em seu livro, Berda mostra que o modo como o Shabak obtém informações mudou, ao longo de 45 anos, desde que Israel ocupou os territórios palestinos.

YAEL BERDA – A nova ordem, decidida a partir de [os tratados de] Oslo, redefiniu as regras do próprio serviço secreto. Antes dos acordos de Oslo, os serviços secretos obtinham informações através de agentes, agentes ‘humanos’. Na nova situação, a população foi posta sob completa dependência do governo de Israel para obter documentos, sem os quais os palestinos não conseguem fazer coisa alguma, absolutamente nada, nenhum dos atos normais da vida, dos movimentos cotidianos. Assim, o governo de Israel foi posto em posição de muito, muito, extremo poder, para obter todo e qualquer tipo de informação, que lhes permite controlar completamente toda a vida dos palestinos.

ANAN QUZMAR, ativista da campanha “Direito à educação”, da Universidade Birzeit em Ramallah, CisjordâniaIsrael tenta tornar a ocupação menos visível, mas, ao mesmo tempo, trabalha para aumentar o controle sobre todos os aspectos e detalhes da vida dos palestinos. E, mediante esse controle, Israel tenta explorar todos os pontos de interação entre as autoridades da ocupação israelense e os palestinos. Sempre chega um momento em que alguém precisa ir lá, para tratamento médico, por exemplo. É quando se vê a pressão intensa e constante. O sistema permanente não é o único modo de fazer isso. Mas o sistema permanente permite que Israel atue nas vastas camadas no povo palestino, permite que Israel atinja todas as camadas do povo palestino que vive sob ocupação. Nesse sentido, se pode dizer que todos vivemos numa grande prisão, como se todos fôssemos prisioneiros, sem que se vejam as grades da prisão.

Lia Tarachansky, The Real News Network – Nesse infográfico, o militante e designer Mihail Ensler explica como isso é feito.

(No infográfico) “Suponhamos que você esteja na Cisjordânia e queira ir até o mar. A primeira pergunta é: “Você é judeu?” Se a resposta for “sim”, você pode seguir diretamente até o mar. Mas se a resposta é “não”, o único modo de entrar em Israel é se você tiver uma autorização para trabalhar, ou se tiver indicação específica para tratamento médico, ou se se tratar de “específico caso humanitário”. Nesse caso, você deve dirigir-se ao braço do exército de Israel encarregado de administrar a ocupação e que é coordenado pelo serviço secreto, para identificar se há algum registro de que você tenha participado em qualquer tipo de movimento ou ação de resistência contra a ocupação israelense, inclusive manifestações pacíficas. Se você ou qualquer membro de sua família já esteve preso em prisão israelense, ou se você foi ferido ou se tem algum parente ferido ou morto pelo exército de Israel, ou se sua casa foi demolida pelo exército de Israel, nesse caso seu pedido de entrada em Israel será negado, sob a alegação de que “há risco de ação de retaliação”. 35% dos pedidos feitos por palestinos para entrar em Israel são negados “por razões não especificadas”. Nesse caso, você pode (a) desistir; (b) procurar uma ONG ou (c) procurar e pagar pelos serviços de um advogado. O processo pode demorar anos e em 70% dos processos em que Israel recorreu contra autorização concedida, a autorização foi negada pela Suprema Corte.

Yael Berda – Não há regras claras. As categorias e regras mudam sempre, conforme o caso, conforme as necessidades de momento. Mas tudo gira sempre em torno dessa ideia de segurança. Sempre se trata da idade da pessoa que faz o pedido, onde nasceu. Literalmente, o alvo é um grupo geograficamente demarcado, um grupo etário, esse tipo de critério.

Anan Quzmar – A base de todo o sistema é que isso não é feito sempre. Acontece muitas vezes, mas não sempre. Para que o sistema funcione, o sistema tem de fixar como alvo apenas uma parte da população, e só em determinados momentos, nunca todos e todo o tempo. Se cada vez que você pedisse autorização para entrar em Israel, alguém tentasse alistá-lo para trabalhar a favor da ocupação, ninguém mais pediria vistos, porque bastaria pedir, para que brotassem suspeitas. Os parentes, os vizinhos, olham com reservas qualquer um que seja suspeito de colaborar com a ocupação.

Yael Berda – (...) O outro tipo [de controle], a busca de informação, é diferente, só se aplica em alguns casos. Todos sabem que muitas famílias palestinas já foram atingidas pela violência do exército israelense. Essas famílias são, de início, classificadas como “risco de segurança”, porque há o fator vingança...

Lia Tarachansky, The Real News Network – Em 2008, a organização Médicos pelos Direitos Humanos recolheu depoimentos de doentes palestinos detidos e interrogados na passagem de fronteira em Eretz, e sobre os métodos de recrutamento que os serviços secretos internos de Israel (Shabak) empregaram para tentar recrutá-los para a função de informantes.

(Legendas) “Meu nome é A... Dia 14/1/2008 tentei entrar em Israel para tratamento médico. Na passagem de Eretz, fui até onde estava o soldado. Entreguei a ele meu documento de identidade e ele disse “sente-se”. Ficamos sentados durante três horas, e, então, apareceram duas pessoas em trajes civis. Levaram-me para outra sala e revistaram-se meticulosamente. Levaram-me por uma passagem subterrânea com escadas e depois por outra, também com escadas. Até que chegamos a um prédio e subimos. Entrei numa sala onde havia um homem de cerca de 40 anos, calvo, que disse: “A..., como vai você?” Respondi “Deus seja louvado”. Ele perguntou “E como está sua saúde?”. Respondi “Melhor, com a graça de Deus.” E ele: “Você é casado?” Respondi “Sim, com cinco filhos, três meninos e duas meninas.” Ele riu. Virou-se para o computador e girou a tela para o meu lado. Perguntou: “Quem é esse, nessa foto?” Olhei e respondi: “É uma foto do meu irmão.” Ele perguntou: “E o que ele faz?” Respondi: “Vende queijo.” Ele disse: “Você está mentindo. Ele está na polícia do Hamás.”  Respondi: “Sim. Meu irmão vendia castanhas, agora vende queijo. Mas o dinheiro é pouco. Está trabalhando também na polícia do Hamás, porque tem oito filhos. Trabalha como motorista.” Ele perguntou: “Ele dirige o carro de quem?” Respondi: “Não sei.” Ele disse: “Você é caso de ajuda humanitária. Você tem de nos ajudar, para que nós ajudemos você.” Eu disse: “Você sabe como me feri? Foi na minha fazenda.” Ele disse: “Eu sei. Agora você está querendo ser tratado em Israel, porque não quer que [líder do Hamas, Ismayil] Haniyeh cuide de sua saúde?” Eu disse: “Quero ser tratado em Israel.” Ele disse o nome de dois palestinos e perguntou se eu os conhecia. Respondi: “Conheço. São meus vizinhos.” Ele perguntou: “Qual deles trabalha para o Hamás?” Eu disse: “Não sei.” Então ele disse: “Você não entrará em Israel.” Tiraram-me da sala e puseram-me noutra sala por cinco minutos. Levaram-me para fora e esperei mais cinco minutos. Então um soldado chamou-me pelo nome e disse “Você tem de voltar para Gaza.”

Yael Berda – A procura por informações é feita só em nome de “saberem tudo”. Reúnem essa massa de informação sobre a população, sejam ou não informações relevantes, e recolhidas de gente que eles nem sabem se representam algum tipo de ameaça a Israel... É óbvio que o foco não é só encontrar terroristas, ou encontrar pessoas envolvidas em ação militar de resistência. Querem saber ‘tudo’ sobre a população, sobre a vida das pessoas. O objetivo é controlar a vida, toda a vida de todos os palestinos. Grande parte do que obtêm nesses interrogatórios é informação corriqueira, sobre a rotina da vida, sobre o dia a dia. É trabalho de vigilância, do tipo mais amplo e abrangente. Querem saber “a que horas o seu vizinho Yusouf sai de casa?” “O que se passa na casa do seu vizinho?” Durante a pesquisa que fiz para escrever, uma pessoa me disse: “Eles encontram alguém e podem dizer ‘sei que você tem tal quadro na parede de casa, que foi presente de fulano’...” Isso lhes dá a sensação de que sabem de tudo, mesmo que não saibam; que não há segredos para eles, por mais que haja. Mas isso lhes dá também mais poder no momento de tentar recrutar alguém para trabalhar como informante.

Anan Quzmar – Dentro da sociedade, a percepção é de que Israel sabe tudo. Podem grampear seu telefone, têm câmeras de vigilância clandestina em todos os cantos, também em Ramallah, que já se conhece. Mas, afinal... que informação importante se pode recolher de uma câmera que todos sabem onde está? É só para que possam dizer que “observamos sinais de agitação entre estudantes”... No início desse semestre, filmaram alguma coisa, um tipo de atividade política, prenderam alguns, foram condenados a um ano, um ano e pouco, de prisão. Definitivamente, é pouco para inibir os que queiram participar de algum tipo de ativismo político. Filmam, quase sempre, os “ativistas de vitrine”.

Lia Tarachansky, The Real News Network[inintelível] reside em Gaza. Há três anos, foi atropelado por uma motocicleta e passou por uma cirurgia. Em julho, teria de ir a Telavive para tratamento e uma segunda cirurgia. Ao pedir a autorização, foi levado para interrogatório, na passagem de fronteira em Erez.

(Legendas) “Fui preso na passagem de fronteira em Erez. Levaram-me para uma entrevista com a polícia secreta de Israel, interrogaram-se durante duas horas sobre minha casa, que foi demolida e queimada completamente, e sobre a fábrica do meu irmão que foi bombardeada três vezes por Israel. Depois me transferiram para o centro de detenção em Ashqelon onde fiquei detido por 13 dias. Fui interrogado dia e noite, sempre perguntavam se eu pertencia ao partido Hamás, e se ajudava o Hamás a produzir foguetes e explosivos. Fiquei extremamente esgotado nos interrogatórios. Diziam palavrões, me insultavam com palavras e gestos.”

Lia Tarachansky, The Real News Network – No início de agosto, a Suprema Corte de Israel ordenou uma investigação requerida por uma organização de direitos humanos, que denunciou prática de tortura de pessoas detidas pelos serviços secretos internos (Shabak) de Israel. Nos últimos dez anos, acumularam-se cerca de 600 denúncias desse tipo, nenhuma das quais levou à instauração de inquérito ou qualquer tipo de investigação. A Suprema Corte recusa-se a proceder qualquer tipo de revisão na legislação vigente.

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